"Se tirarem o plano de Lorenzo, ele morre", diz mãe após Amil cancelar convênio; entenda
Criança de 12 anos com doença rara é um dos 30 mil afetados após operadora de saúde interromper contratos alegando prejuízo financeiro
Lorenzo levava uma "infância normal" até os 6 anos de idade com sua mãe, Cristiane Ferraz, na zona sul de São Paulo. Em 2018, de repente, o garoto passou a apresentar comportamentos agressivos na escola, e a mãe foi orientada a procurar ajuda profissional.
Primeiro, psicólogo; depois, neurologista. Diagnóstico: Coreia de Huntigton, uma doença neurodegenerativa rara, que afeta o sistema nervoso central, causando alterações nos movimentos, no comportamento e na capacidade cognitiva da criança.
Quatro anos depois de ser diagnosticado, aos 10 anos, Lorenzo passou a necessitar de assistência médica e hospitalar 24 horas.
Hoje, aos 12 anos, o menino vive acamado, tem uma traqueostomia (respira pela traqueia), se alimenta por uma sonda colocada no nariz e toma diversos remédios ao longo do dia. Tudo isso em casa, com o serviço de homecare (internação domiciliar) oferecido pelo plano de saúde.
A vida do menino mudou no dia 30 de abril deste ano, quando Cristiane, que é vendedora, foi pagar a mensalidade de R$ 5.300 do plano Amil Qualicorp. Ela foi surpreendida por uma mensagem do convênio pelo Whatsapp informando que o plano de saúde de Lorenzo seria cancelado poraue o contrato firmado entre Amil e Qualicorp estava gerando "prejuízo acumulado à operadora".
"Se tirarem o plano de Lorenzo por um dia, ele morre", alega Cristina
Prejuízo financeiro pode ser um argumento para cancelamento?
Segundo o Código de Defesa do Consumidor, os convênios só podem romper o contrato por fraude ou pela falta de pagamento superior a 60 dias, no período dos últimos 12 meses, independentemente se o atraso na mensalidade foi consecutivo ou não.
A história de Lorenzo e Cristiane ilustra uma realidade vivida por alguns milhares de brasileiros. Segundo levantamento exclusivo do SBT News, com dados do Conselho Nacional de Justiça, o Brasil registrou um aumento de 115%, em 2023, comparado com 2022, na quantidade de processos contra convênios por causa de atendimento de homecare. Foram 2.643 ações judiciais para 5.706.
Veja:
O Brasil também registrou, em média, 125 processos por fornecimento de medicamentos por dia, em 2023, segundo CNJ. No total, foram 45.121 ações, alta de 19,46%, comparado com 2022.
Segundo o advogado especialista em Direito do Consumidor Anis Kfouri, o aumento no número de processos revela a ineficiência do Estado no combate às práticas abusivas contra o direito não só do consumidor, mas ao direito à vida e à saúde, assegurados na Constituição de 1988.
"A falta de atuação protetiva coletiva do Estado coloca como última esperança do cidadão socorrer-se na importantíssima atuação do Poder Judiciário, que evita um colapso ainda maior da situação. Sendo o fiel garantidor da população em seu direito básico à dignidade, à saúde e à vida, o Judiciário acaba mais uma vez sobrecarregado pela ineficiência do Estado na garantia de direitos do cidadão", analisa Anis Kfouri.
Ao receber a notificação, Cristiane ficou indignada e entrou na Justiça contra a Amil. Uma liminar determinou que o plano de saúde deveria ser mantido pela operadora, para que o tratamento do menino continue assegurado além do prazo estabelecido, de 31 de maio de 2024. Caso descumpra a medida, o convênio deverá pagar multa de R$ 10 mil por dia.
“Os planos de saúde não podem considerar o resultado de lucratividade por beneficiário, excluindo os que têm maior despesas e ficando somente com aqueles que pagam e não usam o sistema. É justamente esse equilíbrio que o sistema deve operar, sendo responsabilidade do gestor, e não do beneficiário”, afirma o advogado especialista em Direito Consumidor Anis Kfouri.
Procurada, a Amil disse que a decisão judicial ainda não chegou ao departamento jurídico da empresa, mas que "respeita todos os contratos e cumpre integralmente todas as decisões judiciais, regulamentos e leis brasileiras".
Mais de 30 mil pessoas foram afetadas
Para o especialista, as operadoras de planos de saúde estão criando dificuldades a fim de não prestar atendimento, com restrições ilegais ao acesso a serviços e coberturas, como a lista taxativa da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Em 2022, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que os planos de saúde não seriam obrigados a cobrir procedimentos além dos que foram estabelecidos em 1998 pela Agência.
A decisão revoltou familiares de pessoas com doenças raras ou que recebem atendimentos específicos em saúde. A condição de Huntington e Transtorno do Espectro Autista (TEA), por exemplo, não estão na lista da ANS. Apenas no caso da Amil, mais de 30 mil pessoas foram afetadas pela revisão dos contratos firmados pela operadora de saúde.
Nesta quarta-feira (22), dezenas de manifestantes se reuniram em frente à sede do plano de saúde, em São Paulo, para protestar contra as decisões.