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Brasil

Como a ditadura se apropriou do futebol para se popularizar

Médici estreitou relação entre futebol e política num dos momentos mais violentos do regime; entenda como Pelé e Tostão reagiram à pressão dos militares

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“Uma pátria se torna mais concreta quando onze pessoas estão vestindo as cores do país”, diz o pesquisador do Museu de Futebol, Marcel Tonini, doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP). A citação ilustra como a ditadura militar usou o esporte para propagar uma imagem patriótica, de união nacional e triunfos.

Há 60 anos, o Brasil era um país dividido. O golpe militar tinha seus simpatizantes, na luta contra o comunismo, e seus desafetos, que pediam eleições democráticas após o avanço de tropas e tanques pelo país.

Tomada do forte de Copacabana. Evandro Teixeira - IMS
Tomada do forte de Copacabana. Evandro Teixeira - IMS

Neste cenário, os militares viam no futebol, principalmente, uma oportunidade de uma união nacional, atraída pela euforia que somente a conquista de uma Copa do Mundo seria capaz de causar. “Em meio a esse contexto de resistência, os militares utilizariam o possível tricampeonato do Brasil, na Copa do Mundo de 1966, na Inglaterra, com Pelé e Garrincha, como um outdoor da vitória da própria ditadura para se afirmar, para se popularizar”, afirma Tonini.

Copa de 66

Faltou combinar com os ingleses. O Brasil teve um de seus piores resultados na história dos mundiais e não passou da primeira fase. Derrota em campo e para os generais da ditadura, que viram a estratégia de uma imagem em um triunfo ser derrotada em campo. O sentimento de frustração para os brasileiros poderia gerar um gatilho de ainda maior resistência da sociedade civil e políticos.

Passeata dos Cem Mil - Evandro Teixeira - IMS.jpg
Passeata dos Cem Mil - Evandro Teixeira - IMS.jpg

Para o pesquisador do Museu do Futebol, o momento de opressão se refletia nas relações institucionais vigentes. Os militares consideraram necessária uma intervenção na seleção de futebol do país e, em seguida, tomaram o poder da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), antiga Confederação Brasileira de Futebol (CBF), dando o controle da delegação a militares.

Veja a relação de militares que passaram a integrar a CBD:

“O objetivo era tanto demonstrar a força do golpe militar internacional quanto nacionalmente, apoiando-se na imagem da seleção e, na mesma época, criando slogans com mais de um sentido, como a Semana da Pátria, a Marchinha Para Frente Brasil, Brasil: Ame-o ou deixo-o, entre outros”.

No campo político, os Atos Institucionais de repressão foram intensificados, chegando em seu auge com o AI-5, em 1968, que legitimou a censura e a tortura como práticas aceitáveis.

Conquista de 70

Em 69, às vésperas da Copa do Mundo de 1970, o treinador João Saldanha tinha a base da seleção que conquistaria o mundo. Mas os resultados não eram empolgantes. O presidente em exercício, Emílio Garrastazu Médici, resolveu colocar a farda de lado e dar os seus pitacos.

Médici queria que Saldanha, um comunista convicto, convocasse o ídolo do Atlético Mineiro Dadá Maravilha para a Copa. Em plena repressão da ditadura, o treinador peitou os militares e respondeu: “Eu não escalo os ministros do presidente e o presidente não escala meus jogadores”.

Saldanha foi demitido e deu lugar a Mario Jorge Lobo Zagallo e, claro, a Dadá Maravilha. Em campo, o que se viu foi o desfile tupiniquim nos gramados mexicanos. Médici estava ainda mais poderoso.

Com a vitória mágica de Pelé, Jairzinho, Gerson e Rivelino, o presidente não só chamou os jogadores para comemorar em Brasília, mas toda a população. Tostão foi o único a se negar a ir. Marcel Tonini lembra que política e futebol sempre estiveram lado a lado, mas não houve momento mais nítido na história brasileira quanto este. Médici estreitou essa relação em prol da ditadura.

Médici ao lado de Carlos Alberto Torres comemorando Copa do Mundo, em Brasília.jpg
Médici ao lado de Carlos Alberto Torres comemorando Copa do Mundo, em Brasília.jpg
“Não só a vitória da seleção, mas o modo artístico que foi se somou ao chamado momento do milagre econômico que o Brasil vivia, em meio à censura à oposição contra qualquer manifestação relacionada ao governo. O tricampeonato, para a ditadura, teve um resultado significativo em termos de popularidade”, conta Marcel Tonini.

Jogadores poderiam utilizar o espaço para se posicionar contra a ditadura? Pelé é culpado?

Dos jogadores 22 que venceram o título no México, 21 deles, incluindo Pelé, carregam a crítica de não terem se posicionado contra a ditadura naquele momento.

No entanto, Marcel Tonini pondera:

“É evidente que procuramos olhar o passado com os olhos de agora. Pelé teve algumas oportunidades de se manifestar – ele passou a carreira inteira sendo cobrado por atender Médici e outros ditadores. Mas o melhor atleta de todos os tempos também vivia o período mais severo da ditadura. Então, a gente tem que refletir se o Rei podia se manifestar, se ele, às vezes, só estava tentando limpar sua própria barra”.

Tonini lembra que Pelé foi o mesmo que, após a Copa, inaugurou uma praça chamada Brasil, no México, a pedido da ditadura.

E, ao mesmo tempo, o que se recusou a se curvar diante dos militares que queriam o jogador na Taça da Independência do Brasil, em comemoração aos 150 anos da independência do país. Além disso, em 1971, o rei foi aquele que se despediu da seleção brasileira sem receber nenhuma reverência, se recusando a vestir a camisa da Seleção em 1974 e 1978, também sob a ditadura. “Veja a postura corajosa" aponta.

Contra o fluxo

O SBT News entrevistou um dos poucos jogadores que atuou nos quatro maiores clubes do Rio e também fez história fora de campo em plena repressão.

Afonso Celso Garcia Reis, mais conhecido como Afonsinho, foi o primeiro jogador a conseguir os direitos de seu próprio passe esportivo, em 1971.

Na época, a Lei do Passe definia que a transferência para outros clubes só era permitida com aval do time anterior. Foi somente em 1988, quando Pelé era secretário do Esporte, que os jogadores passaram a ter independência em suas carreiras.

No entanto, Afonsinho conta que a procura por seus direitos foi uma consequência da perseguição política que sofria, não a causa. Na época no Botafogo, ele foi afastado dos treinos e emprestado para o clube Olaria por não seguir as ordens do clube.

Com uma personalidade característica, barba e cabelo longos, que mantém até hoje, Afonsinho cursava medicina e até chegou a ser sondado para entrar na luta armada contra a ditadura, “mas meu objetivo era ser jogador e ser médico”, defende Afonsinho.

Afonsinho - Arquivo pessoal.jpg
Afonsinho - Arquivo pessoal.jpg
"De origem, sou filho de ferroviários e, com o sindicalismo da época de Vargas, eu entendia desde criança a importância da minha cidadania. Sempre fui, como sou hoje, interessado na política e na questão social. Humana, sobretudo", afirma Afonsinho.

A perseguição política não considerou isso e esteve na porta do jogador ao menos três vezes. Duas vezes por meio de dossiês e outra por meio de um jornalista.

Documento cedido pelo professor e pesquisador Lucas Pedretti.jpg
Documento cedido pelo professor e pesquisador Lucas Pedretti.jpg
"Na minha passagem no Santos, tinha um jornalista que sempre acompanhava as excursões do time. Eu não canso de agradecer e louvar ele. O jornalista me procurou e falou ‘olha, eu fui abordado pelo órgão de repressão política. Querem saber quais foram suas ações em uma das viagens à embaixada de um país aliado da ditadura’. Eu esclareci e nunca mais fui abordado”, relembra Afonsinho.

Questionado se sente orgulho da trajetória, Afonsinho argumenta que sua carreira foi muito prejudicada pelos militares. Ele confessa que carrega consigo uma dúvida sobre a influência dos militares para sua não convocação na Copa do Mundo de 1978.

“Além de ter jogado no período de exceção, acabei conseguindo a liberação do passe em um momento de 'obedece quem tem juízo'. Foi algo ainda maior para a minha categoria de trabalho. Mas, do que tenho maior orgulho e meu maior ganho na carreira foi ter uma resposta tão boa dos torcedores pelos clubes onde passei, mesmo sendo rivais. Parece que tinha esse gosto popular.”
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