União pode ser responsabilizada por tragédia no Vale do Javari
Em ação, MPF, Defensoria e Justiça alertam desde 2018 sobre violência, omissão e riscos de mortes, onde Dom e Bruno foram mortos
SBT News
O risco de mortes na terra indígena Vale do Javari, como as do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, foi alertado reiteradas vezes, nos últimos quatro anos, por autoridades e entidades civis à União e à Funai, que podem ser responsabilizadas na Justiça pela tragédia.
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A União e a Funai são réus em processo da 1ª Vara Federal Cível do Amazonas, aberto em 2019, a pedido do Ministério Público Federal, por omissão na obrigação de proteger a terra indígena Vale do Javari, seus povos e servidores que ali atuam.
Nesta 3ª-feira (5.jul), os assassinatos de Bruno e Dom completam um mês. A Polícia Federal pode concluir o inquérito contra os assassinos até o final do mês - mas os motivos e eventuais mandantes do crime, devem seguir sob apuração.
A "escalada de violência" contra indígenas e servidores da Funai, a omissão do governo e o risco de mortes na região do Vale do Javari - extremo oeste do Amazonas - estão registrados em documentos do processo.
O SBT News consultou o material, ouviu autoridades, investigadores e fontes ligadas ao caso. Os relatos são de invasões e ataques na terra indígena, aos índios e servidores da Funai, "alto potencial de ocorrência de genocídio", "situação de fragilidade e o coletivo sentimento de insegurança", "ataque na base Ituí/Itaquaí", "tentativa de homicídio", "tiros de espingarda, pela sétima vez neste ano", "presença de ilegal de norte-americanos na área atuando como missionários sem cumprir as leis", entre outros.
Um quadro de tensão e risco, registrado na ação civil pública, que é o pano de fundo do brutal assassinato de Bruno e Dom, no dia 5 de junho, em Atalaia do Norte (AM), numa das entradas da terra indígena Vale do Javari.
"Não tem como desvencilhar o que aconteceu com Bruno de uma questão federal, isso para mim, enquanto defensor público federal, é muito evidente. O Bruno não foi assassinado por uma briga pessoal. Pelado não gostava do Bruno, naturalmente, em virtude do trabalho que ele fazia como servidor da Funai e depois como assessor da Univaja", afirmou o defensor público da União Renan Sotto Mayor, que atua no processo. Para ele, a ação registra os alertas de omissão do Estado e as mortes estão inseridas no contexto da ação.
A Defensoria Pública da União e a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) - para quem Bruno trabalhava desde 2019, após ser exonerado da Funai - integram o processo, ao lado do MPF. A ação cível pública - que ainda vai ser julgada - prevê, entre outras coisas, que a União seja condenada em R$ 50 milhões, por danos morais coletivos - caso permaneça omissa.
A DPU cobra no processo a manifestação e a ação da União imediata, para impedir que novas tragédias ocorram no Vale do Javari, e apresentou nova manifestação à Justiça Federal, contextualizando os novos fatos.
Velho problema
A ação mostra que o problema de esvaziamento da Funai e falta de proteção devida às terras indígenas suas comunidades e em áreas fronteiriças, como a do Vale do Javari, na tríplice fronteira do Brasil com o Peru e a Colômbia, antecedem o governo Jair Bolsonaro (PL).
Em uma das decisões, a magistrada registra: "os servidores da FUNAI que trabalham na área que vem sendo alvo de ataques denunciam também o grave perigo que estão correndo, clamando pelo socorro das autoridades".
"Todos os documentos que acompanham a petição do Ministério Público Federal comprovam à exaustão tanto o gravíssimo risco de genocídio porque passam os índios isolado (...) e todos que vivem e habitam o ethos da Terra Indígena Vale do Javari, quanto o claro descumprimento da decisão judicial que determinou às requeridas (União e Funai) há cerca de um ano apenas o cumprimento de seus deveres legais de proteção às populações indígenas, sua cultura, modo de vida e tradição", registra a juíza federal Jaiza Maria Pinto Fraxe, da 1ª Vara Federal do Amazonas.
Em pelo menos três decisões liminares, a Justiça Federal no Amazonas atendeu a pedidos feitos pelo MPF na ação, determinando que a Funai realizasse a reestruturação física dessas frentes e a contratação de pessoal. Praticamente todas as medidas emergenciais da juíza foram anuladas no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1).
Responsabilização
As mortes de Dom e Bruno aumentam as chances de a União e Funai serem responsabilizadas, pela omissão em seu dever de estado de promover a segurança dos povos indígenas e a da terra demarcada.
Bruno e Dom foram executados por um grupo de pescadores locais, que são investigados por elo com esquema de pesca e caça ilegais na região e vínculos com narcotraficantes da rota Colômbia, Peru e Brasil.
Os assassinatos de Bruno e Dom, na área criminal, serão processados em ação à parte a ser ainda aberta na Justiça. No caso do processo cível contra a União e a Funai, o caso passa ser parte do processo, como mais uma elemento da eventual omissão e responsabilização buscada pelo MPF e partes associadas.
Desde 8 de junho, quando a juíza Jaiza Freixo ordenou que a União mobilizasse as forças de segurança para uma ação conjunta e massiva para localização dos desaparecidos, o fato integra a ação, que ainda vai ser julgada. Foi nesse processo que a Funai foi ordenada a apagar uma nota pública que ameaçava a Univaja.
"Vamos esperar decisões judiciais posteriores e a gente espera que o Estado brasileiro perceba a situação do Vale do Javari e que não haja mais omissão estrutural", disse o defensor público da União."
O defensor público da União Renan Sotto Mayor chegou na semana passada de Atalaia do Norte e Tabatinga. "Os povos indígenas relatam 'nós estamos sendo ameaçados de morte', 'estamos como alvo'. Amanhã pode ser um de nós ou dos nossos parentes isolados."
Para ele, "é um assassinato claramente conexo a todas essas questões federais". "O Bruno havia denunciado, assim como a Univaja havia denunciado, inclusive o Pelado, por crimes federais, crimes praticados em terra indígena."
Eliésio Marubo, procurador da Univaja, o governo, como protetor das terras indígenas e dos povos, foi omisso nessa garantia. "Nós consideramos que é uma omissão do estado brasileiro, uma vez que é papel da Funai realizar ações de fiscalização na terra indígena. Também é responsabilidade dos órgãos que tratam da fiscalização na região, sobretudo do exército e da Polícia Federal, realizar essas atividades", disse, ao SBT News.
A Univaja, para quem Bruno Pereira passou a prestar serviços, após sua exoneração da Funai em 2019, também é parte no processo contra União e Funai, ao lado do MPF e da DPU.
"A responsabilidade de fato é do governo federal, que nos últimos anos tem atuado contra o fortalecimento dessas instituições na região e certamente deve ser responsabilizado nesse sentido", ressaltou.
Funai
A Funai informou em nota que "realiza ações permanentes e contínuas de proteção, fiscalização e vigilância territorial na Terra Indígena Vale do Javari, em conjunto com órgãos ambientais e de segurança pública competentes".
"Entre as medidas, estão ações de combate a ilícitos, tais como extração ilegal de madeira, atividade de garimpo e caça e pesca predatórias. A instituição investiu quase R$ 10 milhões em ações na região nos últimos 3 anos", informou a Funai, em nota.
"As ações são realizadas por meio de 152 servidores das unidades descentralizadas Coordenação Regional Vale do Javari e Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari, que possuem em sua área de atuação cinco Bases de Proteção Etnoambiental (Bapes): Curuçá, Ituí-Itaquaí, Figueiredo, Jandiatuba e Korubo e uma estrutura de quarentena para entrada na Terra Indígena."
Segundo o órgão, as Bapes "funcionam em escala ininterrupta e são responsáveis por diversos trabalhos que ocorrem de forma contínua, como controle de ingresso nas áreas indígenas e ações de localização e monitoramento de grupos isolados e de recente contato".
"Com o objetivo de garantir a proteção das comunidades indígenas, a Funai prorrogou a contratação de aproximadamente 640 servidores para atender a necessidade temporária de atuação em barreiras sanitárias e postos de controle de acesso, para prevenção da covid-19 em Terras Indígenas. Do total, cerca de 100 profissionais atuam no Vale do Javari."
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O presidente da Funai, Marcelo Xavier, e integrantes da diretoria da Funai, se reuniram na 5ª-feira (30.jun) com o procurador-geral da República, Augusto Aras, e outros membros do MPF, em Brasília. O órgão infirmou uma série de dificuldades logísticas e financeiras, que foram elencadas, e pediram ajuda para viabilizar providências.
Uma delas, segundo informou o MPF, a "realização de concursos públicos para o órgão, além de garantir que tem aumentado o valor investido na região bem como ampliado as contratações de seguranças". Eles admitiram a gravidade da situação e a necessidade de novas providências.
"Acho que a palavra de ordem deve ser sinergia entre todos os órgãos porque a questão é complexa", afirmou o presidente da Funai.
Na reunião, Aras defendeu "medidas emergenciais para aumentar a segurança dos servidores e colaboradores da Funai que atuam na região do Vale do Javari". Um dos presentes foi a procuradora da República Nathalia Di Santo, que atua em Tabatinga (AM), cidade próxima de Atalaia do Norte, onde o indigenista e o jornalista foram assassinados.