Os senhores das armas no Brasil
Comerciantes revelam disputas, trocam acusações e contam bastidores de um mercado que triplica a cada ano
SBT News
Filho de um general italiano, Piero Ruzzenenti desembarcou sozinho no Brasil, em 1977. Tinha então 27 anos, alguma experiência militar -- ele chegou ao posto de tenente-paraquedista -- e o sonho de ganhar dinheiro com a indústria de armamentos. Passados 45 anos, Ruzzenenti, com ainda forte sotaque natal, é um dos mais bem-sucedidos negociantes de armas do mundo. O homem que vive entre Roma e Rio de Janeiro, foi o responsável por levar a Beretta, uma fábrica da Lombardia, fundada em 1526, a ganhar a maior licitação para a compra de 159.493 pistolas para forças brasileiras de segurança. A venda rendeu à empresa 40 milhões de euros -- cerca de R$ 238 milhões. Nos últimos dois meses, a reportagem do SBT News entrevistou os principais lobistas de um negócio que triplica a cada ano -- tudo estimulado pelo governo federal. Os mercadores da morte, como alguns desses personagens são chamados pelos próprios companheiros de terno e de farda, contam segredos do comércio que sempre atuou nas sombras, e que só agora é revelado.
Hoje, em atuação no Brasil, há pelo menos 12 empresas estrangeiras de armamentos disputando o mercado civil e estatal e quatro são brasileiras, são elas: Taurus, Imbel, vinculada ao Exército, Boito e Rossi. Na lista das companhias multinacionais, além da Beretta, estão a Israel Weapon Industries (IWI), de Israel; a Smith & Wesson, a Springfield Armory, a Strategic Armory Corps LLC, as três dos EUA; a Sig Sauer, da Alemanha; a CZ, da República Checa; a Glock, da Áustria; a Canik e a Kale Kalip Makina, ambas da Turquia; a Arex Defense, da Eslovênia; e a FN Herstal, da Bélgica. O SBT News chegou aos nomes a partir de informações obtidas por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), licitações abertas para compra de armas em órgãos de segurança, além de indicações dos próprios lobistas. Com o número de armas vendidas no Brasil nos últimos três anos -- e autorizadas em pregões públicos de forças militares e policiais --, o mercado pode chegar, em cifras conservadoras, a 500 milhões de dólares por ano.
Militares
O trabalho do italiano Ruzzenenti no Brasil começou na associação com um general brasileiro, ainda no final dos anos 1970. A relação de militares e policiais com os lobistas de armas é tão antiga quanto a Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC), criada nos anos de 1930. O órgão ligado ao Exército é o responsável por liberar autorizações para armas, munições, clubes de tiros e de caçadores, atiradores e colecionadores (CACs). Na prática, os militares controlam a demanda e a oferta. Além disso, quando na reserva, parte deles - e também dos policiais - passa a atuar como lobistas das empresas. "É natural que os representantes das empresas sejam originários das forças de segurança", diz Ubirajara Rosses, que trabalha para a Kale Kalip, uma fabricante de fuzis com sede na Turquia. O comerciante é militar da reserva da PM do Amazonas. A entrada da empresa no mercado brasileiro se deu pela venda de 248 armas -- entre carabinas 5.56 e fuzis 7.62 -- para a Polícia Militar do Distrito Federal, no início de 2020. O valor: R$ 2,5 milhões.
Um dos pontos em comum entre os comerciantes de armas é a defesa do governo de Jair Bolsonaro. "Com a candidatura do atual presidente, veio o tema da liberação das armas, da liberdade. Antes mesmo de ele assumir, a população começou a entender que tinha o direito de comprar armas. O que acontece é que os órgãos dificultavam ao máximo. Bolsonaro passou a devolver para o cidadão o direito à legítima defesa", afirma Salesio Nuhs, presidente da brasileira Taurus, a empresa que vende sete em cada 10 armas compradas por civis no país. A posse de Bolsonaro trouxe o temor para as fábricas nacionais de que a indústria estrangeira engoliria o mercado por causa da suspensão de regras de monopólio, que favoreceu a Taurus durante as últimas duas décadas. Um decreto de 2000 proibia a importação de armamentos estrangeiros na hipótese de haver similar nacional, com desconfianças de interferência da própria empresa -- a Taurus (e a CBC, que é a controladora da empresa) ao longo de anos financiou campanhas de políticos. Além disso, as taxas de importação elevavam os preços das armas nacionais. Decretos de Bolsonaro -- válidos ou ainda sub judice -- quebraram tais restrições.
Vendas
Mas, se as empresas estrangeiras conseguiram avançar no mercado, os negócios aumentaram tanto que a Taurus foi no embalo. E disparou -- sem trocadilhos -- de 2019 para 2021. Se nos primeiros 12 meses do governo Bolsonaro foram vendidas 221.051 armas da empresa no mercado civil, no ano passado os números chegaram a 766.3228. Com tamanho crescimento, a empresa despejou no mercado nacional 22% da produção nos últimos meses, contra 10% de anos anteriores. A produção de armas, segundo números festejados pelo próprio Nuhs, é de 9,6 mil armas por dia. Apenas em 2021, a Taurus vendeu 767 mil armas -- a soma dos sistemas de controle do Exército e da Polícia Federal. A comemoração atual contrasta com o ano de 2014, quando começaram a vir à tona falhas em modelos de pistolas da empresa, que apresentavam problemas no gatilho, capazes de serem acionados com simples movimentos. Os fabricantes estrangeiros, como a austríaca Glock, aproveitaram a oportunidade e conseguiram autorização para participar de licitações públicas de forças policiais.
Acusações
A onipresença da Glock nos pregões públicos foi interrompida poucas vezes, em uma delas justamente na licitação da Senasp, de R$ 238 milhões, em que a Beretta levou a melhor. Representantes de empresas nacionais e estrangeiras acusam a fábrica austríaca de usar um artifício para conseguir preços mais baixos a partir de uma representação no Uruguai, que diminuiria custos tributários na importação dos armamentos. "A Glock é uma companhia engraçada, porque quem vende a Glock no Brasil é uma empresa que chama Glock América, situada no Uruguai. Os editais estabelecem que o vendedor tem que ser produtor da arma, e que a subcontratação é proibida. Em teoria essa empresa não poderia participar, porque é um jogo de imposto que não é muito limpo", diz Ruzzenenti, da Beretta. "Por isso quando estou em concorrência com a Glock América, eu não dou o certame como concluído porque vou recorrer em todos os tribunais." Hoje, a briga judicial entre as empresas italiana e austríaca está aberta nas licitações feitas para as polícias Civil e Militar de São Paulo.
O general de divisão Aderico Mattioli, diretor-presidente da Imbel -- uma estatal brasileira -- reclama da falta de isonomia tributária entre as empresas nacionais e estrangeiras, e cita a Glock diretamente. "Armas entram no Brasil com desoneração de impostos federais e, em alguns casos, dos estaduais", afirma Mattioli. A entrevista com o general foi feita por e-mail. "Já os fabricantes nacionais terão que recolher os impostos, fazendo com que o produto estrangeiro tenha considerável vantagem competitiva, pela ausência ou redução expressiva da carga tributária. Exemplo: pistolas Glock adquiridas pela Polícia Militar de São Paulo e por outras corporações." A Imbel foi criada ainda em 1808 e hoje tem sede em Brasília e fábricas em Piquete (SP), Rio de Janeiro, Magé (RJ), Juiz de Fora (MG) e Itajubá (MG). Mais discreta e sob a sombra da letargia estatal, a companhia também cresceu na gestão de Bolsonaro. Nos registros da PF, a Imbel de 2019 a 2021 comercializou 18.368 armas. E conseguiu manter os números de venda entre caçadores, atiradores e colecionadores, fechando o ano passado com 12.453 pistolas, carabinas e fuzis vendidos para esse grupo.
Desde o último 3 de janeiro que o SBT News tenta contato por mensagens com o atual representante da Glock no Brasil, Franco Giaffone. Naquele mesmo dia foram enviadas, por um e-mail indicando as questões feitas aos demais empresários do setor. Em 12 de janeiro houve um novo contato e, segundo Giaffone -- que também é piloto de corrida de carros --, as perguntas teriam sido enviadas para a Áustria. Na última 3ª feira, de maneira definitiva, a Glock estabeleceu que não se pronunciaria. A empresa tem defendido em fóruns competentes que atende na integralidade as legislações do Brasil, do Uruguai e da Áustria.
Mercadores
Um dos comerciantes mais experientes no comércio de armas no Brasil é Luiz Antônio Horta, que foi presidente da Glock e representante da CBC e da Taurus, e hoje chefia o escritório brasileiro da Springfield Armory, uma empresa norte-americana criada em 1794. Com um número de armas pequeno vendido no Brasil, Horta acredita na expansão do mercado. Ex-atirador esportivo, ele foi o responsável pelo início da quebra de monopólio nos anos 2000, quando trabalhava na Glock. A estratégia do lobby era emular grupos de estudos e trabalhos dentro das próprias polícias. "Isso tudo é foi um trabalho antigo, de 2004, dentro da Polícia Militar de São Paulo, levando eles (policiais) para o exterior, para conhecer fábricas, não só a fábrica da Glock, mas outras fábricas, para ter mais acesso e informação atualizada". O comerciante também critica representantes que não são vinculados a uma só empresa. "No mercado, esse cara é um multi-pirata, trabalha para diversas marcas. Porque para ele só vale vender o produto e ganhar a comissão dele."
Os representantes das empresas -- com exceção de Piero, da Baretta -- defendem a reeleição de Bolsonaro como forma de crescimento do mercado. "Sem dúvida uma derrota do atual presidente vai frear os investimentos das companhias, incluindo a brasileira Taurus. Isso sem falar na própria demanda dos caçadores, atiradores e colecionadores, incluindo os empresários dos clubes de tiros. Todo esse mercado vai perder." Ubirajara Rosses, da Kale Kalip, que fez campanha para Bolsonaro e se candidatou ao cargo de vereador de Manaus em 2020, diz que haverá uma queda no mercado. "Existem grupos que querem o retrocesso, a volta do monopólio. Com a liberação das armas, abre-se possibilidades para vendas de acessórios e equipamentos." O general Mattioli, da Imbel, concorda que o atual momento é favorável para a indústria de armamentos: "Há um ambiente favorável para a consolidação e desenvolvimento do mercado, com reflexos positivos no Brasil". Ruzzenenti, da Beretta, afirma que, para ele, pouco importa quem vai ganhar a eleição de outubro. "Hoje o governo tem facilitado a compra de armas, mas para mim é indiferente porque eu não participo desse mercado privado", diz o italiano, que só disputa concorrências abertas para compra de armas por forças policiais ou militares. "Os maiores programas militares foram iniciados no governo Lula", afirma Ruzzenenti.
O lobby
A proximidade entre o governo e os mercadores de armas é algo invisível. Além da descrição com a qual lobistas costumam agir, informações sobre representantes de empresas são afastadas do público também pelos órgãos públicos. O Comando do Exército, por exemplo, negou por três vezes pedidos do SBT News sobre encontros entre lobistas e militares no Quartel-General, em Brasília. Por Lei de Acesso à Informação, a reportagem questionou reuniões da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados. A resposta veio meses depois, após a medida ser levada à última instância, e determinada pela Controladoria-Geral da União.
+CGU determina que o Exército divulgue nomes de lobistas de armas
Inicialmente, a decisão do Comando do Exército em não divulgar o nome de representantes que frequentam o espaço responsável pela fiscalização de armas de atiradores e concede licenças de importação -- interessantes para mercadores de armas ? veio sob alegação de que o pedido esbarrava na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Um argumento não justificado. Pelos fins jornalísticos, o Exército deveria, de início, ter apresentado as informações solicitadas acerca de lobistas.
"A LGPD não se aplica ao processamento de dados para fins exclusivamente jornalísticos, artísticos ou acadêmicos, que representam parte significativa dos pedidos realizados por meio da Lei de Acesso à Informação", explica Juliano Maranhão, professor do Departamento de Filosofia e Teoria do Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Governo Bolsonaro
Durante os três anos à frente do Executivo, o presidente Jair Bolsonaro facilitou o acesso à armas de fogo e até a fuzis. Atualmente, o número de atiradores, colecionadores e caçadores, os CACs, supera a quantidade de militares da ativa do país. Juntas, as três categorias têm mais de 695 mil armas. Até o final de agosto de 2021, o Brasil registrava 409.689 CACs, frente a 356.281 militares, somados aos dados do Ministério da Defesa para o Exército, Marinha e Aeronáutica. O número fica pouco atrás do efetivo das polícias militares em estados -- são 416.923, segundo os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Mas a proximidade de números se mostra longe de uma disputa: o Exército se tornou o principal órgão para quem tem interesse em adquirir uma arma no Brasil. Outro levantamento do SBT News, publicado no último ano, mostra que, entre janeiro de 2018 e julho de 2021, o Exército recebeu mais de 79 mil solicitações de armas do que a Polícia Federal. Nos três anos anteriores a 2018, as armas do Exército representavam apenas 61% do total da PF.
+ Decreto de Bolsonaro liberou 45 mil armas pesadas em 26 meses
Mais da metade dos clubes de tiro em funcionamento no Brasil também foram autorizados para funcionar durante o governo do presidente Jair Bolsonaro. Dos 1.644 clubes ativos, até janeiro deste ano, 871 receberam certificado de registro durante a gestão dele. A informação foi dada à reportagem pelo Exército, responsável por expedir os registros. O número, obtido pelo SBT News, equivale a 52% do total de clubes de tiro no país.
Em 2019, primeiro ano do mandato do presidente Jair Bolsonaro, 232 certificados de registro de clubes de tiro foram expedidos pela Força. O número, com o passar dos anos, só cresceu. Em 2020, foram 291 novas entidades registradas e em 2021 a quantidade ultrapassou três centenas, chegando a 348 clubes de tiros registrados no país. Ou seja, quase um clube sendo registrado a cada dia no Brasil.
Como uma das principais bandeiras de campanha, o chefe do Palácio do Planalto facilitou o acesso a armas de fogo e trabalhou para ampliar o mercado armado no país. Uma série de decretos foi assinada por Bolsonaro flexibilizando as regras de aquisição, registro e porte de armas no Brasil e está em análise do Supremo Tribunal Federal (STF), sob risco de ser avaliada como inconstitucional.