Especialistas explicam regressão do Brasil em metas contra desigualdade
Dados de relatório da ONU mostram que problemas já existentes foram agravados pela pandemia da covid
Desigualdades sociais e pobreza cresceram no Brasil no último ano. Dados do Relatório Luz 2021, que apura a progressão do país em relação aos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Organização das Nações Unidas (ONU), apontam que 54,4% das metas, encontram-se em retrocesso e as áreas mais afetadas são aquelas que tratam da erradicação da pobreza no país.
A pandemia do novo coronavírus foi um fator decisivo nesse contexto. No entanto, está longe de ser a causa. Thiago Gehre, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) e membro do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030, responsável pelo levantamento, acredita que a raiz do retrocesso é anterior ao estado de saúde mundial atual. "A gente (o grupo de trabalho) destaca muito a Emenda 95, que tem uma relação direta com esse estrangulamento nos gastos dedicados a setores e áreas tão importantes como saúde e educação", explica.
A Emenda Constitucional número 95, também conhecida como a Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos, ou ainda como Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Teto, alterou a Constituição brasileira de 1988 para instituir o Novo Regime Fiscal. A mudança prevê uma limitação ao crescimento das despesas do governo brasileiro durante 20 anos.
"A volta a extrema pobreza, o quase retorno do Brasil ao Mapa da Fome Mundial, grande parcela da população vivendo em insegurança alimentar, a queda na qualidade de vida em termos de saúde e bem-estar, uma série de restrições em relação ao acesso à água, saneamento, energia, aumento da violência de gênero e dificuldade de acesso de mulheres e garotas às políticas públicas e seus direitos. Tudo isso está muito vinculado aos cortes orçamentários para essas áreas que são básicas", lista.
Pandemia
O cenário de desigualdade estrutural no país agravou-se ainda mais devido aos impactos de mais de um ano da pandemia de covid. Segundo o relatório, o efeito do surto do vírus atingiu duas vezes mais pobres do que ricos, além da população negra ter a maior taxa de mortalidade por conta da doença (41,5%) quando comparada com a população branca (33,7%).
"A pandemia teve um impacto muito grande sobre o aumento das desigualdades no Brasil. Era de se esperar, porque a experiência mostra que as situações emergenciais sempre atingem em primeiro lugar as populações e grupos mais vulneráveis", destaca Damien Hazard, representante da Associação Vida Brasil.
Com a crise econômica desencadeada pela pandemia no país, houve uma alta no desemprego e na vulnerabilidade da população. Este aspecto, no entanto, não foi o único responsável pelo atraso no processo da erradicação da pobreza. "A pandemia foi, na verdade, um acelerador da pobreza, mas é um processo que já vem acontecendo desde 2016", ressalta Rodrigo Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania. "Esse retrocesso é causado não apenas por questões políticas, mas pela destruição das políticas públicas ao longo dos anos que estavam em vigor", analisa.
O auxílio emergencial, por exemplo, propiciou condições de sobrevivência para uma grande parte da população que teve a renda privada ou diminuída, suspendendo temporariamente o que poderia ter sido, segundo o relatório, a crise social mais aguda já vivida pelo país. Contudo, em 2021, algumas famílias sentiram fortemente o efeito das mudanças do benefício. Além da redução no valor inicial do pagamento, os critérios também sofreram alterações, contemplando apenas dois terços dos beneficiários de 2020.
"Com a pandemia, toda a energia acabou se voltando para tentar superar esse desafio e, com todas as escolhas feitas pelo governo em relação ao combate a pandemia, pessoas foram ficando para trás. Quando há demora a pensar no auxílio emergencial, é instituído de maneira equivocada, é cortado no meio do caminho. Decisões equivocadas são piores que a pandemia em si", afirma Thiago Gehre.
Insegurança alimentar
Com isso, algumas famílias voltaram a registrar situações de necessidade. O país chegou a 2021 com cerca de 113 milhões de brasileiros e brasileiras em situação de insegurança alimentar. No total, quase 60% da população passou os últimos 13 meses sem saber se teria o que comer no dia seguinte e 19 milhões de pessoas vivenciaram situação de fome.
Para Rodrigo Afonso, a falta de apoio das autoridades governamentais e as ações anti-ambientais contra pequenos agricultores também colaboram para esse fator. Segundo ele, a prioridade na exportação dos alimentos em vez da distribuição local resulta na quebra de safra, o que acaba encarecendo os produtos consumidos no dia a dia, dificultando o acesso dos mais carentes.
Além desse cenário, as violações de direitos humanos em geral também cresceram. Os dados apontam que a violência contra mulheres e meninas, por exemplo, foi objeto de mais de 105 mil denúncias em 2020 -- cerca de 12 registros por hora. Os registros de violações contra crianças e adolescentes passaram para 95 mil, enquanto contra pessoas idosas somaram quase 88 mil. Também em 2020, 175 mulheres travestis e transexuais foram assassinadas no país, um aumento de 29% em relação a 2019. Os casos de intolerância religiosa somaram 500 registros (1.056 violações) apenas no primeiro semestre de 2021, uma alta de 41,2% em relação ao mesmo período de 2019.
Ações
Em nota, o Ministério da Cidadania declarou que o "governo federal tem trabalhado sistematicamente para fortalecer os programas sociais e estabelecer uma rede de proteção para a população mais vulnerável do país sobre a qual ainda persistem situações de insegurança alimentar". Destacou também estratégias da pasta como Programa Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o auxílio emergencial para a redução da extrema pobreza no país.
"Até o momento, 39,3 milhões de famílias foram contempladas com o benefício em 2021, e o governo federal ainda trabalha no processamento de cadastros a partir das informações mais recentes disponíveis nas bases de dados governamentais. O repasse alcança R$ 26,47 bilhões."
A pasta destacou, ainda, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) como estratégia de enfrentamento à pobreza, indicando que em 2020 mais de R$ 247,6 milhões foram repassados pelo programa com mais de 54 mil famílias atendidas.