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Brasil

"Restrição indevida", diz procurador sobre exclusão de obras da Palmares

Decisão da fundação de reduzir seu acervo pela metade é alvo de críticas e de ação na Justiça

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Presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo segura relatório sobre livros a serem excluídas de acervo (Reprodução/Twitter)
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O anúncio feito pela Fundação Cultural Palmares de que 54% das obras de seu acervo serão excluídas provocou reações por parte de diferentes entidades, ao longo desta semana, e até mesmo a mobilização do Governo do Distrito Federal para receber o material. Como justificativa para se defazer do conteúdo, o órgão disse -- em relatório -- que nele foram encontrados "sexualização de crianças", "ideologia de gênero", "manuais de guerrilha" e "bizarrias".

Em entrevista ao SBT News na 6ª feira (18.jun), porém, o procurador da República e diretor da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Julio José Araujo Júnior, disse que trata-se de "uma decisão que preocupa, porque ela não tem justificativa, e ao contrário, representa uma restrição indevida ao acesso à informação, ao acesso à cultura, ela tem um caráter de expurgo que é muito preocupante". 

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Segundo Julio, para a ANPR "é grave, é preocupante alguns sinais na condição da gestão de instituições importantes, como a Fundação Palmares, em que as suas pautas mais relevantes, no caso o combate ao racismo, muitas vezes a certificação do reconhecimento de territórios quilombolas, e a promoção e a valorização da cultura e história afro-brasileira, justamente não só são deixadas de lado, mas pior, muitas vezes, há toda uma atuação contrária à efetivação dessas pautas".

"Fora isso, qualquer sinal de censura, de restrição, de complicações, significa um sinal bem negativo para o rumo dessas instituições e mostra, certamente, não apenas uma violação dos deveres delas, mas uma violação na condição da própria gestão de um acervo que muitos vezes foi doado, é um patrimônio da entidade, que merecia todo um cuidado e preservação", ponderou. Ainda segudo ele, "no Brasil inteiro, o Ministério Público acompanha e vem cobrando posturas em relação à Fundação Palmares".

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Na última 4ª feira (16.jun), o Conselho Federal de Biblioteconomia (CFB) publicou uma nota de repúdio à decisão sobre os livros. Para a autarquia, "ao pretender justificar a eliminação do acervo construído pelas gestões anteriores valendo-se de uma linguagem depreciativa e infundada, a Fundação Palmares expõe a ingerência ideológica numa atividade que deveria primar pela técnica". Na mesma data de divulgação da nota, a Coalizazão Negra por Direitos, que reúne entidades do movimento negro de todo o país, entrou com uma ação civil pública contra o presidente da Fundação, Sérgio Camargo.

O documento afirma que Camargo "promove ações deliberadas que podem ensejar a perda irreversível e imensurável do patrimônio cultural e histórico da população negra". Também segundo a ação,  "a honra e a dignidade da população afro-brasileira e também de patrimônio público e social serão violados caso obras sejam retiradas do acervo".

Mais críticas e mobilização

Outra entidade que se posicionou contrariamente ao anúncio da Fundação Palmares foi a Associação Nacional de Advocacia Negra (ANAN). Ao SBT News, a advogada Mylena Matos, sub-coordenadora jurídica da associação, disse que esta entende a exclusão dos livros como um "retrocesso". "Nós sabemos que a gente precisa estar em um país no qual todas as posições ideológicas têm que, de certa forma, estar à disposição da população, para que, depois de fazer estudos, cada um saiba para qual ideologia você vai ou não seguir", pontuou.

"A justificativa que ele [Sérgio Camargo] deu de que não corresponderia à temática negra também acaba não sendo uma justificativa plausível, no ponto de que a própria Constituição Federal fala sobre a questão da cultura em todas as suas formas de expressão e também fala sobre essa liberdade de aprender, de ensinar, de estudar. Sobre o pluralismo de ideias", acrescentou.

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O Governo do Distrito Federal começou a agir para tentar levar as obras à Biblioteca Nacional de Brasília. Em vídeo gravado para a reportagem, o secretário de Cultura e Economia Criativa do DF, Bartolomeu Rodrigues, disse que a área "está devidamente equipada, preparada, com equipamento de conservação, de armazenamento desses livros, de higienização".

"É óbvio que a ideia é que ficasse na própria Fundação, mas já que foi manifestado o desejo de se desfazer do acervo, então queremos receber. Não podemos perder essa oportunidade, porque acreditamos que é um acervo riquíssimo, obras importantíssimas, e nenhum livro pode ser descartado. Pelo contrário, preservado, porque o descarte é perder um pouco da nossa história. Então vamos preservar e ficará à disposição da sociedade, do público em geral", afirmou.

O que diz a Fundação Palmares

No relatório em que expõe os livros que serão retirados do catálogo, a Fundação Palmares informa que as obras serão doadas. A instituição argumenta que "não houve julgamentos subjetivos na triagem". "Foram aplicados critérios rigorosamente técnicos e legais, os quais conduziram à identificação e separação do material inadequado."

O presidente, Sérgio Camargo, tem feito diversas publicações nas redes sociais rebatendo as críticas à decisão de excluir os materiais. Entre as postagens, ele diz que "os livros marxistas estão sendo muito bem cuidados e serão doados a outras instituições" e que eles "encontrarão um lar que os acolha, nem que sejam cursos de humanas das federais".

Procurada pela reportagem, a Fundação Palmares ainda não se manifestou. O espaço segue aberto.

Leia a íntegra da nota do CFB e da ação da Coalização Negra por Direitos:

"O Conselho Federal de Biblioteconomia repudia a decisão da Fundação Palmares de eliminar parte de seu acervo bibliográfico, ignorando, para isso, os critérios técnicos e científicos da Biblioteconomia e dos princípios que regem a Administração Pública.

Embora valendo-se do intitulado "Retrato do Acervo: três décadas de dominação marxista na Fundação Cultural Palmares", tal documento não se caracteriza como uma política de desenvolvimento de coleções, o que seria esperado de qualquer biblioteca, particularmente se vinculada a um ente federativo.

Afora a ausência da participação de bibliotecários e da comunidade servida em sua elaboração, o documento supracitado estabelece critérios pessoais, insólitos e descabidos, o que pode gerar lesividade ao patrimônio bibliográfico do País.

Ao pretender justificar a eliminação do acervo construído pelas gestões anteriores valendo-se de uma linguagem depreciativa e infundada, a Fundação Palmares expõe a ingerência ideológica numa atividade que deveria primar pela técnica.

Ademais, a medida em questão se torna ainda mais gravosa por se tratar de uma biblioteca financiada com dinheiro público, submetida, portanto, aos princípios da indisponibilidade do interesse público pelos administradores do Estado, bem como o da impessoalidade, que devem afastar de seu seio afinidades ou animosidades políticas ou ideológicas.

Este Conselho Federal permanecerá atento em sua missão de garantir bibliotecas acessíveis e plurais, combatendo, assim, toda forma de discriminação e ignorância.

Marcos Luiz Cavalcanti de Miranda - CRB-7/4166
Presidente do Conselho Federal de Biblioteconomia"

**Atualização - 23/06/21

A Fundação Palmares se manifestou, em nota, dizendo que a doação das obras ainda "está na fase dos trâmites internos, respeitando todos os procedimentos legais". Além disso, afirma que o levantamento temático daquelas que seriam excluídas do acervo "balizou-se na Lei Federal de agosto de 1988". "Essa Lei ordena que a Fundação Cultural Palmares zele, produza e divulgue cultura de temática negra. Toda e qualquer obra com relação com o conhecimento de matriz negra será mantido", completa. 

O órgão acrescenta que o acervo será renovado, "adquirindo obras fundamentais para a compreensão das questões negras e da cultura de matriz negra no Brasil e no mundo. Para se ter uma ideia dessa necessidade de atualização do acervo, ele não tem nenhuma das obras da cultura de matriz negra publicadas nos últimos 30 anos. É um acervo defasado e órfão de autores contemporâneos como o franco-senegalês Tidiane N'Diaye, o brasileiro Laurentino Gomes e o americano Thomas Sowell".

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