Por que comportamentos autodestrutivos têm crescido entre crianças e jovens?
Taxas de suicídio e autolesão têm aumentado no Brasil; especialista da Sociedade Brasileira de Pediatria explica o que está por trás disso e como ajudar
Alerta: tema sensível
O crescimento das taxas de suicídio e autolesão em crianças e jovens é uma realidade que acontece há pelo menos 10 anos no Brasil. É o que mostram os dados do Ministério da Saúde e de um estudo feito pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
O número de suicídios entre pessoas de 10 e 25 anos cresceu 6% ao ano, de 2011 até 2022, segundo a Fiocruz. O aumento anual é quase o dobro do observado na população em geral, de 3,7%. O número de atendimentos ambulatoriais por automutilação é 1925% maior em 2023, na comparação com 2014, quando considerada a faixa-etária de 7 até 19 anos. Os dados foram compilados pelo Ministério da Saúde a pedido do SBT News.
Luci Pfeiffer, presidente do Departamento Científico de Prevenção e Enfrentamento das Causas Externas na Infância e Adolescência da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), aponta que a automutilação precisa ser levada a sério, já que pode ser o primeiro passo para atentar contra a própria vida Segundo ela, alguns fatores contemporâneos podem contribuir com o aumento nas taxas e é preciso reconhecer as razões que podem levar à " gota d'água", ou seja, a fazer com que as pessoas dessa faixa etária se cortem ou tirem a própria vida.
"O que mais chama atenção é a automutilação. Quem procura se cortar, procura a dor. E quem procura a dor, está procurando o castigo", alerta Luci
Veja alguns fatores de atenção
Culpa e desrespeito à infância
O sentimento de culpa, que está por trás de comportamentos autodestrutivos pode estar relacionado a uma percepção de fracasso nos relacionamentos, seja com os pais ou com os amigos. O bullying e a sensação de não conseguir dar conta de múltiplas atividades também podem ser fatores importantes. Por isso, Luci ressalta que o primeiro passo para prevenir uma piora pode ser entender de onde vem esse sentimento que levaria a uma necessidade de autopunição. Isso pode ser feito numa conversa dos pais com os filhos ou em terapia.
Luci, que é pediatra e psicanalista, vem observando em seu consultório um crescimento das queixas de cansaço nessa faixa etária. Ela ressalta que a cobrança excessiva de desempenho vem, inclusive, gerando diagnósticos "distorcidos" de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) e Transtorno do Espectro Autista (TEA). Ela diz que, em muitos casos, "é apenas o tempo da infância que não está sendo respeitado".
"Temos que pensar no que estamos oferecendo a crianças e adolescentes. Muitos são mini-executivos aos seus 4, 5 anos de vida. Se perdeu muito da liberdade da infância, que é poder criar, imaginar, fantasiar, de forma livre, sem estar sempre comandados por demandas, cobranças dos pais, aulas extras, uso de tecnologia descontrolado", alerta
+ TDAH: vivemos uma epidemia ou subnotificação de casos do transtorno? Entenda
Um dos motivos para os sentimentos de insatisfação e culpa, segundo ela, pode vir da tentativa da criança e do adolescente de conseguir satisfazer os pais e, com isso, conquistar o amor deles.
"É importante demonstrar afeto para a criança, com palavras de amor e gestos carinhosos. Afirmar o quanto é bom que ela tenha nascido, que é um prazer estar ao lado dela", ressalta.
O importante, segundo a especialista, é que as demonstrações de amor não sejam atreladas à execução de alguma tarefa ou à obtenção de algum resultado.
Uso de tecnologia
Segundo a especialista, o uso de tecnologia nessa faixa etária "invade" o período da infância e adolescência e devia ser regulado pelo Estado, com uma legislação que proponha limites do que poderia ou não ser consumido.
"Hoje, qualquer um que tenha acesso a tela, a uma possibilidade de teclar, pode ter acesso a qualquer meio de autoagressão — até sobre suicídio", pontua
Ela ressalta que alguns conteúdos virtuais, apresentados como "desafios" e "brincadeiras perigosas", podem incentivar as crianças a se machucarem e, em alguns casos, podem levar à morte. Isso pode acontecer também na escola, onde a criança, na expectativa de pertencer a algum grupo, acaba se submetendo a desafios que podem ser nocivos para sua saúde mental e física.
Os pais devem tomar cuidado redobrado com o conteúdo e as interações de crianças e adolescentes nas redes sociais. Uma das maiores dificuldades com a internet, segundo a especialista, é a identificação de agressores em potencial, já que muitos se escondem atrás do anonimato no mundo virtual.
Ela elenca outros efeitos prejudiciais da tecnologia:
- Desfavorece o diálogo;
- Dificulta a capacidade de leitura de textos mais longos;
- Aumenta a probabilidade de comportamentos violentos pelos conteúdos assistidos;
- Prejudica o desenvolvimento da visão. Toda a criança e adolescente precisa ter contato com a luz natural pelo menos duas horas, diariamente;
- Atrapalha o horário do sono, já que algumas crianças passam madrugadas na frente da tela e a luz artificial dificulta dormir.
Alienação parental
Outro fator que pode influenciar na saúde mental da faixa etária são as separações entre casais em que a criança é privada do contato com um dos pais por causa de conflitos entre os adultos. A única exceção é se houver algum desvio de comportamento e risco de violência por parte do pai, da mãe ou do familiar responsável.
"A criança nunca pode deixar de amar aquela outra pessoa que não é mais amada em uma relação romântica, isso afeta seu desenvolvimento", diz
Controlar tempo e conteúdo das telas pode ajudar
Sobre o uso de tecnologia, a recomendação da SBP é de que até os dois anos de idade a criança não deva entrar em contato com telas. Depois dos dois até os cinco anos, o limite é uma hora por dia, com supervisão parental. Na adolescência, o ideal é no máximo duas horas, também sob monitoramento e nunca à noite, antes de dormir. "A tela excita, estimula vários tipos de atividades cerebrais e, com certeza, vai causar um sono agitado e pesadelos".
"O ideal é que as telas nunca substituam completamente ou parcialmente o lazer natural, como correr, brincar, trocar abraços, conversar e se divertir ao ar livre", finaliza
Onde procurar ajuda?
CVV (Centro de Valorização à Vida) - Atendimento por ligação gratuita, 24 horas por dia, pelo número 188. Há também as opções de atendimento físico, chat e e-mail.
Pode falar - Canal de atendimento da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) criado para ajudar pessoas de 13 a 24 anos a lidarem com questões de saúde mental.
Além disso, pela rede pública, o atendimento para questões de saúde mental pode começar via atendimento pelas UBSs (Unidade Básica de Saúde) ou pelos Caps (Centros de Atenção Psicossocial) Infanto-Juvenil espalhados pelo Brasil.