Quanto vale uma morte?
As tragédias esquecidas do Mediterrâneo fazem agonizar o que nos resta de humanidade
Sérgio Utsch
Pense nos milhares de civis ucranianos sob constante bombardeio russo. Lembre-se dos palestinos que enfrentam a força brutal e desproporcional das ações militares de Israel. Pense no Sudão, na Etiópia e em todas as injustiças que, com razão, são condenadas nas mais altas instâncias governamentais da Europa.
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Mas prepare-se para uma verdade indigesta, que não merece a mesma atenção dos europeus. Uma das maiores e mais cruéis tragédias deste século acontece no quintal deles e com a conivência dos mesmos governos e instituições, cujos representantes ocupam as tribunas para dar lições de civilidade ao restante do planeta.
Há quase um mês, no dia 13 de junho, o barco pesqueiro Adriana afundou na costa da Grécia. 104 pessoas foram resgatadas (47 sírios, 43 egípcios, 12 paquistaneses e 2 palestinos). 81 corpos foram encontrados.
O Adriana levava cerca de 750 pessoas. Entre as centenas de desaparecidos, estão aproximadamente 100 crianças e muitas mulheres, algumas grávidas, que viajavam no porão da embarcação, onde os traficantes de seres humanos colocam aqueles que pagam menos.
Uma das primeiras medidas tomadas pela Guarda Costeira da Grécia após receber os sobreviventes foi isolá-los, principalmente dos jornalistas. Todos os migrantes foram levados do porto de Kalamata para o campo de refugiados de Malakasa, na periferia de Atenas e estão agora sob a guarda do Ministério da Imigração e Asilo.
Um conglomerado de organizações jornalísticas (El Pais, Lighthouse Reports, Reporters United, Monitor, Siraj e Der Spiegel) conseguiu vencer as barreiras impostas por autoridades gregas para entrevistar 17 sobreviventes separadamente. 16 deles apresentam uma versão assustadora sobre o que aconteceu naquele 13 de junho.
Quando o motor parou de funcionar, segundo os depoimentos, a Guarda Costeira da Grécia decidiu rebocar a embarcação até águas italianas. Foi quando o barco virou. O sírio Hassan, de 23 anos, é uma das testemunhas. A entrevista dele é um dos destaques da reportagem publicada no espanhol El Pais.
"Eles (guardas costeiros) disseram que nos levariam até um navio de resgate italiano que estava 2 horas a Oeste. Eles nos rebocaram como um carro. Primeiro, nosso barco quase virou, mas acabou se estabilizando. Depois, a barco inclinou-se para a direita e virou. Eu não tive tempo de decidir se ia pular na água ou não. Depois que a corda foi cortada, o barco da Guarda Costeira foi embora".
Autoridades gregas negam essa versão, acusam ONGs e advogados de influenciarem o depoimento dos sobreviventes, mas tem no histórico de sua Guarda Costeira ações semelhantes para "despachar o problema" para o país mais próximo. A Frontex, Agência Europeia de Fronteiras, chegou a cogitar a tirar seus agentes do país após a tragédia, segundo reportou o francês Le Monde.
A Organização Euromediterrâneo, que monitora a violação dos direitos humanos na região, classificou como "chocante e imoral" outra revelação contida na investigação. A Guarda Costeira grega teria retirado dos depoimentos oficiais os trechos no qual os sobreviventes narram como o barco virou e a decisão dos guardas costeiros de abandonarem as vítimas em alto mar.
A Grécia é um dos países mais afetados pelo contínuo fluxo de migrantes pelo Mediterrâneo e segue reclamando que não recebe ajuda suficiente da União Europeia. A maior parte dos que fazem a travessia quer seguir para países mais ricos, onde teriam mais chances de prosperar, mas após abordados ou salvos no mar, passam a ser responsabilidade das autoridades que os encontraram.
Uma das soluções encontradas pela União Europeia foi transferir bilhões de Euros para países como Turquia e Líbia para reforçar suas patrulhas de fronteira e impedir a saída dos barcos. Funcionou por um tempo, mas o número de pessoas que fazem a travessia aumentou nos últimos 3 anos, assim como o número de mortes.
SITUAÇÃO DOS REFUGIADOS NA EUROPA - 2023 | |
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CATEGORIA DO DADO | Nº DE PESSOAS |
Total de chegadas em 2023 | 87.956 pessoas |
Chegadas marítimas em 2023 | 85.558 pessoas |
Chegadas de terra em 2023 | 2.398 pessoas |
Mortos e desaparecidos em 2023 (estimativa) | 1.859 pessoas |
Dados da ACNUR no Portal de Dados Operacionais - https://data.unhcr.org/en/situations/mediterranean |
Mais do que personagens da maior crise humanitária deste século, os migrantes que se arriscam na travessia do Mediterrâneo foram transformados numa trágica moeda de troca. O dinheiro que a União Europeia despeja em países que estão na rota migratória não garante a manutenção mínima dos padrões de direitos humanos defendidos pelo próprio bloco europeu.
Antes da travessia no mar, milhares de africanos e asiáticos são submetidos a prisões ilegais, trabalho forçado, extorsão e até a execuções sumárias pelas redes que, indireta ou diretamente, lucram tanto com o desespero de quem quer chegar à Europa quanto com o dinheiro que a Europa manda para não ter que lidar com os desesperados.
Vidas humanas valem pouco nesse jogo de xadrez diplomático. Dificilmente saberemos os números exatos e, mais importante, as histórias por trás da contabilidade nefasta e imprecisa da tragédia recente na costa da Grécia e das outras que a precederam.
O mundo se acostumou não somente a essas mortes, mas sobretudo ao (não) esforço cínico das autoridades internacionais em encarar esse problema de verdade. Afinal de contas, não são cidadãos ricos, nem europeus.
As vidas que viram números incertos e perdidos no mar são uma parte da humanidade que agoniza diante de olhares acostumados e sem muito interesse com a sua própria decadência.