Varsóvia-Kiev: uma viagem no tempo
"Percurso entre as capitais da Polônia e da Ucrânia dura quase 20 horas. Espaço aéreo ucraniano continua fechado"
Partimos de Varsóvia no trem das 5:49 da tarde, noite nesta época do ano. Escolhemos a opção mais rápida, que dura quase 20 horas. É um trem com leitos. Nossa cabine é pra 2 pessoas, mas também caberiam 3. Neste caso, quem dorme embaixo fica a uma distância de pouco mais de um palmo para o colchão de cima.
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Deixamos pra trás um país onde a grande maioria da classe política e da população enxerga Volodomyr Zelenskyy como o líder da resistência contra um inimigo comum: Vladimir Putin. Em um café de Varsóvia, as bandeiras da Ucrânia se misturam às caricaturas do presidente russo com o aviso de "procurado".
Nas ruas da capital polonesa, voluntários recolhem doações para refugiados e para o exército ucranianos. O hotel onde nos hospedamos tornou-se um centro de apoio para quem deixou a Ucrânia no fim de fevereiro do ano passado, quando a Rússia começou a sua grande ofensiva contra os vizinhos.
O taxista que nos leva pra estação é ucraniano. E nos diz que a mãe dele estava nessa leva, mas decidiu voltar para sua cidade natal, no oeste da Ucrânia, quando a guerra tomou outro rumo e os russos concentraram seus ataques no leste e no sul do país. Centenas de milhares fizeram o mesmo. Ainda assim, há mais de 1 milhão de ucranianos se refugiando apenas na Polônia.
Carro e trem são as únicas possibilidades de viagem para a Ucrânia. E a segunda opção é também uma viagem ao tempo. O trem que nos leva é velho, barulhento e já fez parte dos comboios da ex-Alemanha Oriental. E não há restaurante a bordo. É preciso levar comida e bebida.
Lá fora faz 3 graus, mas o aquecimento, ainda à base de carvão e fogo, funciona bem. Tudo lembra muito a década de 80. Até as funcionárias do trem parecem ter saído de um daqueles filmes que retratam os anos da cortina de ferro.
Com 4 horas de viagem, chegamos à fronteira. Sem avisar, as "ferromoças" percorrem o corredor abrindo as portas de todas as cabines. Eu já estava sem calças, mas a que abriu a nossa porta nada sutilmente tratou a cena com tanto desprezo que não deu tempo nem pra ficar constrangido.
Os oficiais da imigração polonesa entraram no trem pra carimbar os passaportes. Olham pra mim e para o videojornalista Edrien Esteves e perguntam "Jornalistas"?. Como nós, centenas de profissionais da imprensa de vários países do mundo fazem este mesmo percurso nos 2 sentidos. Nos últimos dias, a presença de jornalistas aumentou por causa do marco de primeiro ano do início da invasão.
Depois do passaporte carimbado, ficamos 2 horas às escuras. Por algum motivo, a luz das cabines é cortada. Há uma certa tensão no ar, cujo motivo eu não consigo identificar. Há também muito silêncio, quebrado apenas pelo ronco que vinha da cabine vizinha.
Estamos na porta da Ucrânia e não muito longe da fronteira com Belarus, principal aliado de Putin no momento. Dias atrás, os 2 países faziam exercícios com suas forças aéreas não muito longe daqui. Também há poucos dias, os poloneses decidiram levar para a capital Varsóvia os seus Patriot, sistema de defesa antiaéreo que compraram dos Estados Unidos.
A viagem para a Ucrânia é um mergulho em páginas da história que julgávamos terem ficado em capítulos passados. Nesta parte do mundo, no entanto, elas estão tão escancaradas, que são capazes de assombrar o mundo todo.
O trem roda menos de 10 minutos e para do outro lado da fronteira. Já estamos no país que Putin diz não existir. O ritual de abertura de portas se repete, mas depois quem ganha os corredores são militares do exército ucraniano. Ao contrário dos poloneses, não é um carimbo rápido.
Primeiro, vem algumas perguntas sobre quantas vezes estivemos na Ucrânia e em que lugares exatamente. É a minha terceira. E quando eu digo Criméia, onde estive em 2014, sinto que a informação desperta a atenção. A península foi anexada pelos russos naquele ano. E os ucranianos a querem de volta.
Também nos perguntam sobre as credenciais emitidas pelo Ministério da Defesa ucraniano. Só com este documento é possível trabalhar no país com a aprovação do governo, especialmente nas zonas de combate. Nossos passaportes são devolvidos uma hora depois, com mais um carimbo da Ucrânia, mas nós ficamos parados por mais 2 horas.
É o momento em que os ferroviários ucranianos fazem a adaptação dos trens para as ferrovias do país, que são diferentes das polonesas. Todo vagão tem que ser adaptado pra continuar a viagem.
Chegamos a Kiev já no início da tarde de terça-feira. Conto depois sobre a cidade, que está bem diferente daquela que deixei no início do ano passado. Lembro-me da Turquia e da Síria, da cobertura intensa e das cenas horríveis que testemunhamos nos últimos dias. É preciso virar a chave de uma tragédia pra outra.