Melancias e metralhadoras: meu dia com os Talibãs
Sérgio Utsch, enviado especial a Cabul, conta os bastidores da entrevista que fez com um grupo de Talibãs
Cabul -- A ideia era ter uma boa vista de Cabul para entrada ao vivo para o SBT. Seguimos para Wazir Akbar khan, um bairro nobre no norte da cidade, onde há um mirante que se tornou um ponto de observação estratégico para o Talibã. Na porta, havia vários carros equipados com armas e com a bandeira do grupo. É um cenário intimidador.
Nafees, o afegão que me ajuda com a tradução, seguiu adiante com a autorização para trabalho em Cabul emitida pelo Ministério da Informação e que só vale quando há interesse e boa vontade de quem está nos muitos comandos que o Talibã mantém pela cidade. Descobri hoje que a demora, muitas vezes, é porque muitos não sabem ler e têm vergonha de não saber o que está escrito no documento emitido pelos comandantes.
Seguimos caminhando para o mirante, mas antes de chegar, um outro grupo de 9 talibãs que estava sentado em volta de um tapete notou a nossa presença. Nos chamaram. Achei que seria mais um interrogatório. Era também. Mas primeiro eles queriam nos oferecer melancia. Aceitei o primeiro pedaço ainda em pé, até que eles insistiram para que sentássemos com eles. Todos tinham armas. Não achei prudente recusar o convite.
Sentei e comi mais melancia. Estava doce e era cortada por um canivete que eles usam na cintura e que, pensei comigo mesmo, poderia ter perfurado bem mais que melancias. Eles foram receptivos. Me perguntaram sobre o Brasil e sobre o que eu achava do governo deles. Dei respostas evasivas e fiz muitas perguntas. Queria mais ouvir do que falar.
Um deles gostou dos meus óculos escuros. Pediu para experimentar e para que eu tirasse uma foto dele. Também não achei prudente negar o pedido. Precisei de um pouco mais de coragem para dizer o primeiro não. "Você fica com os meus (quebrados) e eu fico com os seus." Eu já tinha perdido um par de óculos e os que ele gostou não foram exatamente baratos. Achei que valia a pena mostrar um pouco de personalidade, apesar da metralhadora de que ele carregava. Acho que ele não ficou muito feliz, mas eu só daria os meus óculos se eu sentisse que estava realmente ameaçado, o que não era o caso.
O papo prosseguiu e eles pediam para tirar fotos com o meu celular, onde havia dezenas imagens dos últimos dias, que podiam interromper o tom amigável da conversa. No fim das contas, a impressão que eu tive é que eles queriam que eu levasse uma lembrança positiva do Talibã e que, na cabeça deles, aquela demonstração de sorrisos, melancia e armas era uma delas.
Naquele grupo, metade aparentava ser bem jovem. Três deles tinham 18 anos. Nasceram com o Afeganistão sob domínio da coalizão liderada pelos Estados Unidos e sob um governo, em tese, democrático e atolado em denúncias de corrupção. Eles cresceram com o discurso de que era necessário libertar o país dos invasores, dos corruptos e implantar um regime islâmico no país.
Darwish e Mansoor, os dois que pedem para que eu tire uma foto ao lado deles, são de Candaar, cidade afegã que já foi considerada a capital do Talibã. Os dois me disseram que tiveram familiares mortos por bombardeios das forças da Otan. No Afeganistão, o número de vítimas da chamada "Guerra ao Terror" chega a quase 170 mil. A grande maioria era civil e não tinha ligação nem com o Talibã nem com grupos terrorista.
No mundo de Darwish, os terroristas são os estrangeiros que mataram parte da família dele. Apesar da cicatriz que carrega desde sempre, ele sorri para me contar que queria aprender inglês. Com uma metralhadora na mão, divertia-se toda vez que conseguia pronunciar uma palavra no idioma do país que aprendeu a odiar. "Quero aprender para me comunicar e viajar o mundo. Quero conhecer as pessoas e outros países." Mal sabe ele que a ligação com o Talibã pode ser uma espécie de condenação a passar a vida inteira no guarda-chuva do grupo e sem chance de sair do país.
Ele e Mansoor não presenciaram as barbaridades do Talibã quando o grupo comandou o país entre 1996 e 2001. Tampouco veem problema no papel reservado às mulheres na sociedade que defendem. Eles nasceram e cresceram com a mentalidade de um grupo fundamentalista. Não tiveram outra chance.
O discurso dos mais velhos diferencia-se pouco daquele que ouvi dos mais novos. Samilluah me diz que "o povo afegão é muito amável e acolhedor e que eles queriam que o mundo e o Brasil compreendessem bem o que era o Talibã. Queremos que as pessoas venham aqui fazer negócios, mas não aqueles que querem destruir nosso país islâmico e nossa sociedade islâmica".
Sobre as mulheres, o fundamentalista de 52 anos me disse que elas são autorizadas a trabalhar, desde que as leis islâmicas sejam respeitadas. Oficialmente, o novo governo ainda não definiu o que isso quer dizer na prática. Samilluah acha que "elas poderão mostrar os olhos". Ele me conta sorrindo, como se fosse uma grande concessão do Talibã depois da imposição do uso da burca no passado, quando mulheres também só podiam andar acompanhadas por um responsável da família.
Ao contrário daqueles que nos abordaram na rua, os últimos talibãs que encontrei foram gentis. Eles falam sobre o país e a sociedade que querem com a convicção de quem passou uma vida inteira sob constante processo de radicalização. Onde nós vemos desrespeito a direitos fundamentais e muitos absurdos, eles enxergam o cumprimento aos princípios do Islã, visão questionada inclusive por muitos muçulmanos.
A guerra que os Estados Unidos e aliados europeus perderam não foi apenas aquela das cenas finais no aeroporto de Cabul. A coalizão da Otan teve 20 anos e trilhões de dólares para mostrar aos afegãos que há um caminho em que direitos fundamentais, as culturas das diferentes tribos que formam a sociedade afegã e o Islã podem ser respeitados e conviver juntos. A consagração do Talibã no poder e o apoio que o grupo tem de parte dos afegãos, inclusive milhares de jovens, é uma das faces mais incovenientes da derrota imposta às forças do Ocidente.