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A batalha dos mares que travou o Brexit

Disputa opõe Boris Johnson a Macron e alimenta simbolismos

A batalha dos mares que travou o Brexit
Boris Johnson no Grimsby Fish Market. Foto: Reprodução/Instagram
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"Britânia, domine as ondas! Os britânicos nunca serão escravos" é um refrão patriótico que embala o orgulho de milhões de pessoas na Grã-Bretanha desde 1740, quando o poema "Rule, Britannia" de James Thomson foi transformado em música. Os tempos são outros, mas esse sentimento ainda está ancorado no imaginário popular.

A indústria da pesca representa apenas 0,12% do PIB do Reino Unido e emprega 0,1% da mão de obra do país. Nas negociações do Brexit, no entanto, os números estão acompanhados de uma carga emocional suficiente pra travar um acordo entre o Reino Unido e a União Européia.

Apoiadores do Brexit veem o domínio exclusivo das águas britânicas como um símbolo de soberania que agora será reconquistada. Não são só os peixes que eles querem de volta, mas também um gostinho dos tempos que o Reino Unido dominou boa parte dos mares do planeta. "Essa questão é fundamental para nosso futuro como um país independente", disse o primeiro-ministro Boris Johnson.

Hoje, embarcações da União Européia podem pescar nas águas da Grã-Bretanha, obedecendo a quotas estabelecidas todos os anos, que variam de acordo com alguns fatores, como o tipo de peixe, a época e o país onde o pescado será processado. Há décadas, os pescadores britânicos reclamam da quota a que tem direito, cujas bases foram definidas na década de 70 e nunca mudaram.

Mas se os mares da Grã-Bretanha voltarem a ser apenas dos britânicos, eles passam a ser autosuficientes, certo? Errado. Por trás da retórica de reconquista dos mares, há o mundo real. Os britânicos importam 80% do peixe que consomem e exportam 70% de tudo o que pescam. O bacalhau é um dos preferidos no país e uma das melhores opções para o tradicional "Fish and Chips", o peixe com batatas, tradicional prato da culinária britânica. A maior parte do bacalhau importado (70%) é pescado no Mar de Barents, no norte da Noruega e da Rússia.

Além da geografia, há as consequências fiscais de um divórcio sem acordo. Impostos internacionais passariam a ser cobrados dos dois lados. Os peixes dos outros ficariam mais caros para os britânicos, assim como os peixes dos britânicos ficariam mais caros e menos atrativos para os outros. O Reino Unido já está tecnicamente fora da União Européia desde 31 de janeiro, embora ainda tenha que respeitar a legislação do bloco até o dia 31 de dezembro, quando termina o período de transição.

A disputa pelas águas geladas dos mares do norte nunca teve temperaturas tão elevadas. Em Bruxelas, o presidente do Conselho Europeu, o belga Charles Michel, subiu o tom: "O Brexit não foi nossa decisão e não foi decisão de nossos pescadores. Impedir acesso às águas britânicas causaria um dano imenso à nossa esquadra de pesca. Sim, queremos acesso às aguas do Reino Unido pra nossos pescadores, exatamente como o Reino Unido quer acesso ao nosso imenso e diversificado mercado para as empresas do país".

Se vários países europeus sinalizaram que podem ceder, a França não abre mão de ter os mesmos direitos que tinha antes do Brexit sobre as águas do vizinho. O presidente Emmanuel Macron tem sido irredutível no compromisso que firmou com os pescadores franceses. Assim como no Reino Unido, a indústria da pesca representa apenas 1,6% do PIB francês. No caso da França, o cálculo é feito juntamente com a agricultura. A ajuda dos peixes para a economia, portanto, seria ainda mais modesta.

Os números pouco substanciais não são a única coincidência. Assim com Boris Johnson, Macron também encara a batalha pelos mares como algo muito mais emocional do que prático. Ceder pode soar como perder a queda de braço para os britânicos, o que poderia diminuir ainda mais o seu capital político para a corrida presidencial de 2021, quando deverá enfrentar forças populistas do outro lado.

"Avante, filhos da Pátria, o dia da glória chegou! Contra nós da tirania, o estandarte ensanguentado se ergueu", diz o refrão de "La Marseillaise", o mundialmente famoso hino da França. No seu quintal, também há muitos eleitores que se deixam levar pelo canto da sereia, desde que seja em francês.

Macron e Johnson sabem que pequenos ajustes, com ambos os lados cedendo, resolveriam o impasse. Mas o duelo não é para resolver o problema dos seus países, nem o impasse do Brexit, mas pra animar uma platéia ávida por simbolismos e ainda presa à soberba de suas próprias histórias.
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