"Cultura da raiva" leva à hostilização de ministros do Supremo, diz especialista
Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes já foram hostilizados
Guilherme Resck
O episódio envolvendo o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), no Aeroporto Internacional de Roma, em 14 de julho, está longe de ser o primeiro caso em que um ministro da Corte foi hostilizado por brasileiros. Luís Roberto Barroso, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes já passaram por situações semelhantes. E, para especialistas, entre os fatores que contribuem para a ocorrência desse tipo de caso envolvendo integrante do órgão máximo do Judiciário, está a disseminação de fake news.
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De acordo com Doriam Luis de Melo, doutor em sociologia e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o que leva uma pessoa a hostilizar um ministro do Supremo, como ocorreu com Moraes, é o fato de a sociedade brasileira estar vivendo, nos últimos cinco anos, "uma cultura da raiva e uma cultura da raiva que libera a pessoa a agir de forma violenta e ter pessoas como inimigas".
"Gera um comportamento, na verdade, de luta contra o inimigo. E esse inimigo é qualquer indivíduo que pense diferente. E aí, por exemplo, a gente está falando de questões relacionadas à ideologia política".
Ainda conforme Doriam, as fake news potencializam e foram "uma das chaves importantes para a construção ou formação dessa cultura da raiva". "Porque as notícias são transformadas, são criadas, são novas verdades, que estão construídas dentro de um arquétipo alucinógeno e que estimula as pessoas".
O doutor em sociologia ressalta existirem estudos mostrando como o comportamento do ser humano pode ser alterado em função de ações externas, como a música ou um texto, "e as fake news têm esse tipo de efeito, um efeito transformador. Um efeito que traz novas emoções, novos sentimentos, que leva a pessoa a sentir raiva. Então, as fake news e a forma como elas são disseminadas e trabalhadas, construídas, têm contribuído para essa cultura da raiva".
Na visão do especialista, para reverter essa cultura, é preciso haver um trabalho de médio a longo prazo, "que deve ser desenvolvido a partir de uma nova transformação e de construção de um capital político na sociedade". "A nossa sociedade precisa realmente entender a função das instituições, a sua própria função, o poder que cada pessoa tem e, na verdade, voltar a se discutir com clareza os limites da democracia", complementa.
A democracia, diz Doriam, "tem sido questionada todo o tempo, sobretudo no sentido de que 'eu posso fazer o que eu quiser, isso é democrático, eu posso fazer e falar o que eu quiser'". "Então, eu acho que é necessária uma nova reflexão, uma nova discussão, um novo aprendizado. Acho que a nossa sociedade precisa passar por uma nova transformação para aprender mais sobre o que é política e o que são e para que são as instituições".
As pessoas que hostilizam ministros do Supremo, avalia, não compreendem o papel dos Três Poderes e "a articulação que dá a importância, por exemplo, do Judiciário como uma instituição que vai ajudar na manutenção da democracia". "E tendo o entendimento somente a partir da perspectiva das suas ideologias políticas. Então, qualquer pessoa, qualquer ator político que venha no sentido contrário dentro dos seus ideais se torna um inimigo".
Destruição da institucionalidade
Na avaliação de Luis Carlos Fridman, doutor em sociologia e professor da área na Universidade Federal Fluminense (UFF), quando cidadãos comuns num espaço coletivo, como um aeroporto, hostilizam um ministro do Supremo Tribunal Federal "significa que essas pessoas não têm mais a noção de que a instituição tem relevância, dentro da mentalidade delas".
"E isso eu acho que tem a ver com uma espécie de processo dos últimos anos no Brasil que foi uma espécie de arquitetura da destruição da institucionalidade. A institucionalidade em geral foi desvalorizada, atacada ou menosprezada, inclusive pelas forças governamentais".
Então, diz Fridman, houve por exemplo o descrédito da ciência, e "isso é uma erosão da institucionalidade. O descrédito do Supremo Tribunal Federal, isso é erosão da institucionalidade. O descrédito da cultura e das realizações artísticas culturais no Brasil".
Para o especialista, para evitar que os casos de hostilização de ministros do STF ocorram é preciso haver "o fortalecimento institucional e ação institucional exemplar em relação a cada caso". Em sua visão, as fake news contribuem para ocorrer esse tipo de situação de hostilização, porque difundem "a iniciativa histórica de erosão institucional. E isso acaba morando dentro das pessoas. Isso acaba se tornando sentimento".
De acordo com ele, as pessoas que hostilizam membros do Supremo "assimilaram a erosão institucional como um comportamento naturalizado".
"Derrotamos o bolsonarismo"
Questionado sobre se declarações, por parte de ministros da Corte, como o "nós derrotamos o bolsonarismo" de Barroso contribuem para que os casos de hostilização de membros do STF ocorram, Doriam Luis de Melo disse acreditar que sim. "Porque ele, enquanto um ator político extremamente importante, precisa medir muito as palavras".
Derrotar um grupo ideológico, ressalta o professor, não é o papel do Supremo. "O papel do Supremo, entre outras coisas, é garantir a manutenção da democracia".
Já na visão de Luis Carlos Fridman, não contribui. "A hostilização é difundida e alimentada há quatro anos. Não é uma declaração do Barroso que vai provocar tudo isso. Isso é um processo prévio, tenso, histórico e alimentado".
Por outro lado, ressalta, a declaração dada pelo ministro em 12 de julho pode ser chamada "de uma espécie de deslize institucional". Isso porque "é melhor um juiz do Supremo exercer os poderes da Justiça na sua sobriedade. Não precisa falar que nós derrotamos o bolsonarismo, apesar de eu achar que é correto que muitas forças da sociedade brasileira se juntaram para derrotar o bolsonarismo, inclusive com o apoio do Supremo Tribunal Federal, que foi sucessivamente atacado pela erosão da institucionalidade e ameaça evidente ao Estado Democrático de Direito".