Lei de conflito de interesses, as joias sauditas e o combate a corrupção
O fenômeno não é privilégio de uma determinada localidade, mas é difuso podendo apresentar-se tanto em países desenvolvidos quanto em desenvolvimento
*Corrupção em Debate é uma coluna do Instituto Não Aceito Corrupção (INAC).
A corrupção, nas suas mais variadas possibilidades, está presente na história humana desde antiguidade. O fenômeno não é privilégio de uma determinada localidade, mas é difuso, podendo apresentar-se tanto em países desenvolvidos quanto em desenvolvimento. Seu ambiente catalisador se estabelece no espaço entre intercâmbios de interesses, sobretudo, econômicos e políticos. Isto posto, provavelmente durante nossa trajetória de vida demos e recebemos presentes de alguém.
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Essa simples ação, que é comum no dia a dia dos cidadãos brasileiros e de outros países, em diversas situações não se constitui um ato ilegal ou de corrupção. Entretanto, a ação de presentear ou receber um presente pode ser considerada uma das variadas possibilidades de corrupção quando existir subjacente uma intenção de se obter alguma vantagem particular em detrimento ao interesse público.
Quando abrimos mão do Estado de natureza para vivermos em sociedade, por sua vez, expõe que dentre os pressupostos presentes na liberdade, a corrupção não é uma virtude e nem é bem quista no âmbito público.
Neste aspecto, o seu combate é uma preocupação de regimes democráticos, que, por sua vez, é desafiado pela característica metamórfica dos atos corruptos. Podemos assumir que a corrupção é um fenômeno em constante mudança.
Em termos conceituais, a definição utilizada pelas célebres Susan Rose-Ackerman e Bonnie J. Palifka, autoras de livros como "Corruption and Government: Causes, Consequences and Reform", da Transparency International (TI), é que corrupção é "o abuso de um poder delegado, com a finalidade de obtenção de ganho privado", seja por ganhos econômicos ou políticos. Por esta síntese, vê-se a associação entre a corrupção e a prática costumeira de obter ganhos próprios na administração pública brasileira.
Neste aspecto, soma-se no Brasil distintos exemplos para ilustrar os conflitos de interesse existentes na relação público e privado. Por sinal, Rose-Ackerman e Palifka mencionam conflitos de interesse (conflicts of interest) como um tipo de corrupção, que é definido como "poder usufruir uma vantagem pessoal a partir dos efeitos de políticas de cuja decisão participa".
Caso das joias apreendidas pela Receita Federal
Recentemente, o caso da tentativa do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) de trazer, de forma ilegal, um conjunto de joias -- colar, anel, relógio e um par de brincos de diamantes, certificadas como autenticas pela marca Chopard -- cujo valor estimado seria em torno de 3 milhões de euros, o equivalente a R$ 16,5 milhões.
Essas joias foram entregues à equipe do então presidente Jair Bolsonaro, em outubro de 2021, que estavam em visita oficial a Arábia Saudita, e seriam um presente do governo Saudita para naquela ocasião a primeira dama Michelle Bolsonaro.
As joias estavam na mochila de um assessor do ex-ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque sendo retidas por agentes da alfândega da Receita Federal, no aeroporto de Guarulhos, devido à legislação aduaneira brasileira exigir ao passageiro o pagamento de imposto de importação de 50% do valor do produto, cujo valor seja acima de R$ 1 mil para entrar no Brasil.
Além disso, no caso de o passageiro omitir o item será acrescido de uma multa de 25% do valor do imposto, como foi o caso do assessor do governo à época. Escancarou-se um evidente conflito de interesses no caso.
Sobre este assunto, a Lei n.º 12.813, de 16 de maio de 2013, definiu como conflito de interesses a "situação gerada pelo confronto entre interesses públicos e privados, que possa comprometer o interesse coletivo ou influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função pública".
Dentre as situações que configuram conflito de interesses destaca-se: "Intervir em favor de interesse privado, direta ou indiretamente, perante órgão ou entidade em que haja ocupado cargo ou emprego ou com o qual tenha estabelecido relacionamento relevante em razão do exercício desse mesmo cargo".
Complementarmente a essa Lei, o Decreto nº 10.889, de 9 de dezembro de 2021, no seu capítulo V, artigos 17 e 18, estabelecem os parâmetros para o recebimento e tratamento de presentes recebidos pelo agente público.
Assim, quando pressionou a cúpula da Receita Federal ao encaminhar um militar de Brasília à São Paulo para reaver as peças, o ex-presidente feriu a lei de conflito de interesses. E este fato é apenas para dar base a reflexão que se faz neste texto.
Qual é a legislação para o combate a corrupção?
Mas, se existe legislação estabelecida de combate a corrupção, então, até que ponto essas leis, decretos, normas e regras são efetivamente capazes de trazer moralidade para a gestão pública contemporânea no Brasil?
Até que ponto se pode, a partir do arcabouço legal proposto, confiar que esta lei será aplicada e de fato um mecanismo de precaução no processo de combate a corrupção?
A construção coletiva de uma sociedade que se estabelece em arcabouços normativos efetivos é elementar para uma gestão pública mais profissionalizada. O caso das joias sauditas é mais um dos casos que escancaram a necessidade de revermos o debate sobre a moralização dos agentes públicos no Brasil. Sobretudo, no que tange a uma atuação anticorrupção.
Nessa perspectiva, esse caso revela que se faz necessário discutir o aspecto de formação de nossos representantes públicos, além da necessidade de se ter um arcabouço contemporâneo que combata de fato a corrupção.
Sem essa questão, voltaremos aqui mais vezes para ilustrar a corrupção à brasileira com mais um novo caso. Que comecemos um manifesto pela moralidade na administração pública. Que nossas leis se estabeleçam e se efetivem na construção de uma gestão pública que de fato atendam os interesses coletivos.
*Corrupção em Debate é uma coluna do Instituto Não Aceito Corrupção (INAC).