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Justiça

É preciso mudar leis para melhorar combate às fake news? Especialistas divergem

Alexandre de Moraes defendeu que legislação passe a considerar plataformas como empresas de comunicação

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Pessoas mexendo em celulares (Adam Fagen/Flickr)
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Importante para impedir que a formação da opinião pública sofra a interferência de crenças prejudiciais (ao próprio cidadão e/ou à sociedade) em realidades paralelas, o combate às fake news, segundo declaração dada na semana passada pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Alexandre de Moraes, ainda pode se tornar mais eficaz no Brasil, e uma das formas de melhorá-lo é mudando a legislação do país. Segundo o magistrado, existe a necessidade de alterar esta para aprimorar o enfrentamento às notícias falsas. A análise é compartilhada por outros especialistas do direito, mas não é unânime na classe.

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Em entrevista ao SBT News, o doutor em direito do Estado Vitor Rhein Schirato, professor da área na Universidade de São Paulo (USP), disse que é preciso mudar a legislação, "porque nós não temos hoje ferramental claro para lidar" com as fake news. "Imagina o seguinte: a gente está com um carro de última geração numa oficina construída dos anos 70, então a gente não tem ferramenta para lidar com isso. A gente precisa resolver esse problema com ferramentas capazes".

Ao defender a alteração das leis na semana passada, Alexandre de Moraes acrescentou que "o avanço que deve ser feito legislativamente é a equiparação [das plataformas a empresas de comunicação] para todos os fins, porque isso facilita exatamente a responsabilização e elas terão a mesma liberdade de colocar o que elas quiserem, mas a liberdade com responsabilidade que toda mídia tradicional, rádio, televisão, tem". Schirato concorda com o posicionamento: "Eu acho que a posição do ministro Alexandre é correta, porque da mesma forma que a imprensa não pode mentir ou não deve contumazmente mentir, as plataformas não devem ser instrumental para divulgação de mentiras". "A gente tem hoje um problema que é a construção da verdade a partir de mentiras. Eu até costumava dizer que a gente vive hoje uma revisão do processo nazista. Se a gente for olhar, o processo nazista se constrói a partir da manipulação da verdade".

O professor relembra que no nazismo a verdade era construída por meio da manipulação dos fatos nos instrumentos oficiais de comunicação e que hoje isso não é possível porque não há "um único instrumento oficial de comunicação que você manipule", mas a construção é realizada "via redes sociais, via impulsionamento, via divulgação contínua de informação falsa". "Você acaba construindo uma verdade paralela, o que é extremamente perigoso."

Dessa forma, acredita que caberia uma lei ainda para regulamentar o que é possível fazer para combater as fake news diante do direito à liberdade de expressão, "limitando o direito de manifestação, porque liberdade de expressão não é liberdade de mentira, não é liberdade para você fazer o que você quiser".

Nas palavras do doutor, "todas as liberdades são de alguma forma limitadas quando elas competem com outras liberdades fundamentais". "Então aqui eu acho que a gente chegou num ponto em que não dá mais para ficar olhando caso a caso o que eu restrinjo, o que eu não restrinjo. Eu preciso ter uma regra mais geral, inclusive imputando responsabilidade em quem dissemina [fake news] e em quem propaga". De acordo com Schirato, não se pode permitir que mentir, caluniar e inventar situações sejam direitos subjetivos ao de liberdade de expressão, porque senão estaria admitindo-se que esta é a liberdade para fazer o que quiser.

A advogada Tayná Carneiro, mestre em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e CEO da Future Law, concorda haver a necessidade de alterar a legislação brasileira para que o combate às fake news seja aprimorado.

"Com certeza é necessário realizar mudanças. Inclusive a gente tem um Projeto de Lei em curso, que foi proposto em 2020 pelo Senado Federal, é o PL 2.630, mas a nossa discussão vai muito além da proposta regulamentar jurídica do ponto de vista público, mas também passa pelo âmbito privado, é o que a gente chama de meta-regulação. Então a gente precisa pensar regulação do ponto de vista público, que é ultranecessária, é urgente que a gente produza uma regulação eficaz, sobretudo diante do aumento do uso da tecnologia para obtenção de informação e sobretudo diante do cenário político que a gente vive hoje no Brasil. Mas os meios privados também já podem realizar uma autorregulação", pontuou a especialista.

Conforme Tayná, a produção de notícias falsas gera prejuízo para os usuários e para as próprias plataformas, porque leva a uma crise de confiança nas informações em circulação nelas, e, por isso, é bastante importante dar seguimento ao PL, que cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet e, portanto, regula as plataformas digitais; e incentivar a autorregulação por estas. Entretanto, ela reforça que é preciso ainda equilibrar o combate às fake news com o respeito à liberdade de expressão e considera este "um grande desafio". Para a advogada, ao se pensar em regulação no âmbito governamental, "a gente precisa entender, por exemplo, quem que vai averiguar a fidedignidade da informação".

"Então quais órgãos vão ser apontados como responsáveis pela verificação daqueles fatos. Isso também é um ponto de análise, porque a gente precisa pensar, assim como aconteceu com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, como que a gente cria uma estrutura que seja equânime, para todos os entes, para todos os emissores. E aí, sim, a gente garante a liberdade de expressão, porque todos os agentes envolvidos naquela verificação do fato vão participar e a gente vai poder gerar um equilíbrio. Porque muitos fatos às vezes são meras opiniões, opiniões políticas principalmente", complementa.

A respeito da fala do presidente do TSE defendendo a equiparação das plataformas a empresas de comunicação, Tayná concorda, porque as enxerga como tal, mas afirma que elas não são apenas isso. "O grande ponto é que elas não são tão somente de comunicação. E aí essa é a grande questão. A gente está falando de plataformas em que as informações são produzidas não apenas para realizar a comunicação conforme a função jornalística, mas também para o compartilhamento de opiniões, compartilhamento de ideias, o compartilhamento inclusive de aspectos pessoais, das viagens que as pessoas fazem, do que elas pensam sobre a vida, de manifestações que não necessariamente podem entrar nesse crivo de análise de infração de informação verdadeira ou falsa", pontua.

Tatiana Coutinho, advogada de privacidade e proteção de dados pessoais, regulação e novas tecnologias no Lima Feigelson Advogados e mestre em direito pela Universidade de Lisboa, por sua vez, avalia que não é necessário alterar a legislação brasileira para melhorar o combate às fake news no país, mas existe, sim, como aprimorar esse enfrentamento: em sua visão, é preciso ser elaborado um projeto "para que se possa educar a população e criar novas medidas para combate à fake news". Essas medidas, defende, deveriam ser adotadas pelo governo em conjunto com a sociedade civil, academia, juristas, setores técnicos e empresas de tecnologia, num modelo de governança multipartes, porque assim "a gente conseguiria atingir toda a camada da sociedade, envolver todos os indivíduos, todos os atores da sociedade, garantindo inclusive o direito de expressão e também uma sociedade democrática de direito, envolvendo todos os atores da sociedade". Além disso, elas não partiriam da ideia de regulação.

Ainda conforme a advogada, as leis que tratam do tema da desinformação no Brasil são suficientes e, por isso, não há necessidade de mudar a legislação. "No que diz respeito ao combate da disseminação de conteúdo ilegal, discursos de ódio ou incitação à violência, há um conjunto de normas específicas e diversos tipos previsto no Código Penal Brasileiro, além do Marco Civil, Lei 12.965/2014 da Internet que, em certa medida, dispõem sobre a responsabilização civilmente do provedor de aplicações", afirma. Ela relembra também que, o artigo 16 da Lei de Imprensa (5.250/1967) proíbe a publicar ou divulgação notícias falsas ou fatos verdadeiros truncados ou deturpados.

A especialista ressalta ser "muito importante" que ao analisar a responsabilização por divulgação de notícias falsas, inclusive das plataformas, se tome o cuidado de respeitar o direito à liberdade de expressão. "Por quê? Porque no calor ali das emoções no meio do processo eleitoral, se optar por regular as fake news, esse tipo de informação, informações dessa natureza, isso pode abrir aí de repente uma brecha para a censura. Então hoje o que me preocupa muito é que a intenção pode ser legítima, mas é necessário cautela, para que a gente não desencadeie aí em um processo autoritário", acrescenta.

Ela não vê com bons olhos a equiparação das plataformas digitais a empresas de comunicação para todos os fins, por diferentes motivos: "Primeiro sobre essa questão das medidas tomadas esbarrarem em censura. Essa é a maior preocupação da sociedade que estuda o tema. O segundo ponto é que em maior parte o grande financiamento desse tipo de notícia não acontece através de plataformas, de redes sociais, elas são criadas ali na deep web. Então medidas como esta poderão inclusive promover a retirada de publicações legítimas. Então é necessário muito cautela. E outro fato: é importante perceber que o direito acompanha a sociedade. Nós não estamos falando da mesma natureza jurídica de empresas de comunicação e de empresas de tecnologia".

O perigo das fake news

A doutora em sociologia Leda Gitahy, coordenadora do Grupo de Estudos sobre Desinformação nas Redes Sociais (EDReS) da Unicamp, alerta que fake news são prejudiciais de várias formas. Entre elas, convencendo pessoas a não usarem máscaras na pandemia, a tomarem medicamentos comprovadamente ineficazes contra a covid-19 e, portanto, não se protegerem corretamente contra a doença; fazendo as pessoas temerem vacinas e, assim, pararem de levar crianças para se vacinar; e levando pessoas a atacarem as instituições e a democracia.

Para ela, como disse o ministro Alexandre de Moraes, é importante que o Brasil tenha uma legislação em que as plataformas sejam consideradas empresas de comunicação, e não de tecnologia, porque são do primeiro tipo e, consideradas como tal pela lei, a responsabilização seria facilitada. Outra medida importante em prol do combate às fake news, de acordo com Leda, é a promoção de educação midiática.

A coordenadora do EDReS acrescenta que as plataformas digitais poderiam fazer mais coisas para combater as notícias falsas, como colocar pessoas para moderar o conteúdo (em vez de algoritmos), mas não fazem, e "o modelo de negócio dessas empresas é ganhar dinheiro com isso, com visualizações". "Quanto mais enganoso, quanto mais conspiratória, quanto mais emocionante, quanto mais mentiroso, parece que atrai mais, dá mais público".

Outros países

De acordo com Vitor Rhein Schirato, atualmente, a legislação da Alemanha é a mais avançada no que diz respeito ao combate às fake news. "Existe uma lei de responsabilidade na Alemanha que coloca prazos para que se saque das redes determinado conteúdo", pontua. Para ele, seria um bom referencial para o Brasil.

Na Alemanha ainda, segundo Tatiana Coutinho, foi dado "o pontapé num projeto de autorregulação, de tentar fazer com que as plataformas se organizassem ali nesse ponto de um enfrentamento mais educativo, um ponto mais educativo". Porém, afirma, "desde o início na verdade a ideia era regular" e, portanto, não funcionou "muito bem, porque quando já se "chega com uma ideia de regulação, a gente já põe ali alguns limites, algumas barreiras que impedem que o projeto funcione de maneira próspera". Além dos alemãos, a União Europeia (UE) também possui regulação específica para o combate às fake news.

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