Crise dos refugiados vai muito além de cruzar fronteiras
Riscos no percurso e possíveis discriminações na fronteira se adicionam aos traumas da guerra
Perto de completar um mês, a guerra na Ucrânia já deixa marcas irreparáveis no país, sobretudo em seus habitantes. O número de refugiados ultrapassou 3 milhões. Desses, 1,5 milhão são crianças. A escalada no conflito causou a destruição de infraestruturas civis, causou mortes, e forçou as pessoas a fugirem de suas casas em busca de proteção e assistência.
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Segundo o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), à medida que a situação continua a se desenrolar, cerca de 4 milhões de pessoas ainda podem fugir da Ucrânia. É o mais rápido êxodo no continente europeu desde a Segunda Guerra Mundial. A fuga é traumática e envolve riscos. Para que o refugiado tenha a mínima capacidade de se recuperar, é preciso garantir que ele tenha acesso não só a abrigo, mas também a todas as assistências previstas no Direito Internacional, ressalta a porta-voz do órgão da ONU no Brasil, Samantha Federici.
"Ninguém é um refugiado por escolha. A proteção do refugiado vai além da proteção física, por isso é muito importante que, uma vez refugiado, essa pessoa e sua família tenham acesso aos mesmos direitos que outros indivíduos no mesmo país, justamente por causa dessa situação. Apesar de a grande maioria desejar retornar ao país, enquanto não houver uma situação de segurança, essas pessoas são impedidas de voltar, o que significa que elas precisam começar a viver ali. Estamos falando de acesso a trabalho, acesso à assistência médica -- até porque muitas vezes toda essa jornada é bastante traumática --, acesso à escolaridade. Em especial, quando a gente compara essa crise da Ucrânia com outras crises de refugiados, o que a gente observa é uma característica muito preocupante que a vasta maioria é de mulheres e crianças, inclusive casos de crianças desacompanhadas, e por isso que é muito importante que esse direito não seja só uma proteção em que a pessoa está abrigada, e, sim, que exista esses direitos de acesso à assistência básica, direitos econômicos, escolaridade, para que essas pessoas consigam recomeçar suas vidas", afirma.
Além dos horrores da guerra, denúncias de xenofobia e segregação na fronteira passaram a ser frequentes. Ao Conselho de Segurança, representantes de três nações africanas condenaram a discriminação contra cidadãos africanos nas saídas do país. O ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, usou as redes sociais para pedir mais solidariedade aos refugiados. "Africanos buscando a evacuação são nossos amigos e devem ter oportunidades iguais de retornar aos seus países natais de forma segura", escreveu.
Questionada sobre o posicionamento da Acnur em relação a episódios xenófobos na fronteira, Federici disse que agência observa e acompanha esses episódios com bastante preocupação: " A proteção internacional garante que a proteção seja oferecida para pessoas que se veem em condição de risco e estão buscando o refúgio de maneira indiscriminada. O Filippo Grandi, alto-comissário da Acnur, está em contato com as mais altas instâncias dos Estados que estão ali envolvidos para garantir que a proteção internacional seja realmente aplicada. Ao mesmo tempo, a gente entende que atos xenofóbicos e racistas vêm de desinformação. Então, uma grande parte do nosso trabalho é o fortalecimento, por meio de campanhas de comunicação, de abordar a questão da solidariedade e empatia".
Coordenadora da Human Rights Watch no Brasil, a mestre em direito internacional Maria Laura Canineu classifica casos de xenofobia durante a fuga de um país em guerra como "uma violação dentro da violação".
"Passar por um processo de discriminação quando você está tentando sair de uma situação tão grave é muito, muito dramático. É uma violação dentro da violação, é mais um drama dentro de uma situação que já é dramática. Então, o que a gente tem dito é que quaisquer estrangeiros que busquem evacuação devem ter oportunidades iguais, não só no que se refere à abertura das fronteiras, mas à sua real integração, porque dentro do direito internacional também existe uma obrigação dos Estados, não só de abrir as fronteiras numa situação como essa -- para pessoas que legitimamente fogem de um conflito armado -- , mas também promovam a sua integração. O que é a integração? Todas as oportunidades de saúde, educação, de adaptação de língua, trabalho. A gente esquece que parte do direito internacional também é obrigação de facilitar a integração dos refugiados à sociedade civil."
Até o momento, a Polônia é o país que mais abriga refugiados ucranianos, com 1.975.449, com a Romênia, com 508.692, na sequência. O território romeno, no entanto, não é o destino final, como contou Adrian Bolohan ao SBT News. Recém-chegado de um intercâmbio na França, o romeno que está trabalhando como voluntário em um centro de acolhimento do país, comentou que, dos 15 mil refugiados que já passaram pelo local, por volta de 70% tinham como destino a Alemanha, seguido de Itália, Espanha, França e Bélgica.
"Nós somos um centro de transição. Os refugiados que chegam aqui são registrados e ficam por uma noite, às vezes duas, depende do caso. Enquanto eles descansam, nós temos um time 24 horas por dia para encontrar transporte para eles. O destino mais desejado é, com certeza, a Alemanha. Por volta de 70% dos refugiados querem ir para a Alemanha, seguido de Itália, Espanha, França e Bélgica", conta. Bolohan também comentou que, conforme o confronto foi se prolongando, muitos passaram a ficar mais tempo na Romênia, com o objetivo de retornar à Ucrânia assim que a guerra terminasse.
"No começo, eles não mencionavam retornar para a Ucrânia. No entanto, mais recentemente, nós temos cada vez mais refugiados que querem ficar na Romênia por um período maior e retornar para a Ucrânia assim que a guerra terminar e, para mim, isso só faz sentido porque aqueles que tinham parentes em outros países deixaram a Ucrânia logo nos primeiros dias e aqueles que não tinham ficaram (na Ucrânia) mais tempo, esperando que o conflito fosse terminar logo. Quando os bombardeios começaram a ficar muito próximo deles, eles não puderam mais ficar e fugiram para a Romênia para aguardar o fim."
Por não ser possível prever o fim da guerra é tão importante garantir que a proteção internacional seja aplicada. A porta-voz da Acnur, Samantha Federici, e a coordenadora da Human Rights Watch, Maria Laura Canineu, são categóricas ao explicar que a proteção dos refugiados vai além de oferecer um abrigo, deve acontecer também de forma que integre esses indivíduos à sociedade.
"Exatamente porque não dá para fazer essa previsão que existe essa obrigação de não só abrir as portas, mas de fato você integrar à sociedade, justamente porque você não tem uma condição de estabelecer o prazo. Obviamente que as pessoas querem, eu imagino que muitas delas querem voltar, mas a situação do país é completamente catastrófica também. Em relação à destruição dos bens, destruição de suas residências, casas, então muitas vezes nem é possível uma volta imediata, e muitas vezes também muitos querem voltar para ajudar. É muito dramático, de novo, toda essa situação. A gente precisa pensar que já são 3 milhões refugiados, então eu acho que é preciso lembrar da obrigação de integração dessas pessoas para que elas possam realmente viver vidas dignas onde quer que elas estejam." comenta a coordenadora da Human Rights Watch
"Quando as pessoas cruzam a fronteira, a reconstrução da vida nesses outros países, ele passa por um atendimento psicossocial muitas vezes também. É um trabalho que envolve um atendimento especializado e nesse sentido o Acnur ele busca e tem trabalhado nessa linha de não só oferecer assistência médica, mas também atendimento psicossocial, mas as pessoas, elas geralmente cruzam a fronteira e chegam, em geral, em uma situação de vulnerabilidade muito grande", conclui Federici.