Ataques a hospitais, civis e tortura: o que são crimes de guerra?
Braço do Direito Internacional Humanitário, a regulação cria regras e limites para um conflito
Giovanna Colossi
Em março, Biden chamou a atenção e causou ainda mais tensão com a Rússia ao chamar Putin de criminoso de guerra, o que o Kremlin considerou como "imperdoável". Na última 4ªfeira (30.mar), a alta comissária dos Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, também alertou para o fato de que crimes de guerra estão sendo cometidos na Ucrânia. Parte de diversos tratados que estabelecem padrões legais internacionais para o tratamento humanitário durante uma guerra, a regulação é uma tentativa de proteger combatentes, prisioneiros de guerra e civis nos conflitos, como explica a especialista no assunto, a professora do Departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Claudia Alvarenga Marconi.
"A guerra é uma prática internacional possível e ela precisa ser feita dentro de alguns limites, dentro de alguns parâmetros, e a ideia dos crimes, da tipificação de crimes internacionais, é dar parâmetros para que essa guerra aconteça sem produzir um volume de dano demasiado e sobre aqueles que não estão envolvidos de uma forma direta no conflito. Os crimes de guerra podem ser divididos em crimes de guerra contra pessoas, que vão exigir uma proteção particular. Por exemplo, em uma guerra, os civis precisam ser protegidos de uma maneira distinta porque eles não estão envolvidos na linha de frente do conflito, eles são assumidos como partes inocentes e precisam ter essa proteção garantida. Também, os crimes de guerra são crimes praticados contra aqueles que vão assistir humanitariamente os que precisam, por exemplo, evacuar uma área de guerra por meio de um corredor humanitário, e também os crimes de guerra se constituem como formas de ataque contra determinadas propriedades, a proibição de determinados métodos de guerra (como bombas cluster) e determinados meios de guerra como violações sérias, violações graves, do Direito e dos Costumes dos conflitos armados internacionais e também dos conflitos armados que não são considerados de caráter internacional", explica.
O conceito, segundo a professora, foi desenvolvido entre o fim do século 19 e o começo do século 20, como braço fundamental do Direito Internacional Humanitário, e como direito também de regulação dos conflitos armados. "Ele vai sendo codificado desde esse momento por meio das convenções chamadas de Convenções de Haia. Nessas convenções, se tinha a proibição do uso de certos meios e métodos de guerra. Depois, além das Convenções de Haia, vieram as Convenções de Genebra. Uma delas é de 1864 e a outra de 1949. Essas convenções de 1949 foram ratificadas por todos os membros da ONU, e, na sequência, a gente teve ainda dois protocolos adicionados às convenções de 1949, ou seja, Haia e Genebra são os direitos que vão identificar as várias violações das normas que vão regular o conflito, a guerra, e inclusive os crimes de guerra."
Conforme o Direito Internacional Humanitário, um crime de guerra acontece quando civis não são distinguidos das tropas militares, quando os danos a esses civis não são minimizados e quando ocorre uma destruição desnecessária com sofrimento prolongado. No entanto, diferente de crimes contra a humanidade, que acontecem somente contra civis, crimes de guerra podem ocorrer com militares.
"Existe também crimes de guerra em relação a combatentes, acho que esse é um ponto também bastante significativa, porque o sofrimento demasiado, ele não é só colocado sobre as partes civis, às vezes, você emprega a força de uma maneira desproporcional contra aquele que se comporta como um inimigo, então você não pode torturar ou conferir um tratamento desumano, fazer experimentos na ordem biológica com um combatente do exército adversarial, também não pode transformar em prisioneiro de guerra pessoas que estão em determinadas condições de proteção. Você não pode sequestrar combatentes do Exército adversarial, essas são hostilidades que a tipificação do crime de guerra busca limitar", relata Marconi.
Genocídio, crimes contra humanidade e crimes de guerra são considerados como atrocidades pelo Tribunal Penal Internacional, porém, enquanto genocídio e crimes contra humanidade podem ocorrer durante período de paz, crimes de guerra só acontecem em conflitos, menciona a especialista. "O crime de guerra só pode ser cometido durante um conflito armado, internacional ou não internacional. O crime contra a humanidade pode ser cometido tanto em tempos de guerra quanto em tempos de paz. Um outro aspecto importante é que o crime contra a humanidade pode ser cometido contra quaisquer nacionais de qualquer Estado, o crime contra a humanidade vai ser cometido contra civis, mas os crimes de guerra podem ser cometidos contra civis e contra combatentes. O crime contra a humanidade pode ser cometido como parte de um ataque disseminado e sistemático sobre uma população civil. No caso de um crime de guerra, um ataque isolado pode se qualificar como crime de guerra, um bombardeio a um hospital, isso já pode ser configurado como um crime de guerra se houver a informação de que naquele hospital têm pessoas, pessoas acamadas."
A legislação foi criada para prevenir que se aconteça crimes de guerra, mas, uma vez que eles aconteçam, quem tem responsabilidade internacional de acolher essas denúncias, realizar as investigações e processar eventuais culpados é o Tribunal Penal Internacional. A denúncia pode ser feita por um Estado parte desse estatuto, pode ser iniciada pelo próprio escritório da promotoria, e pode chegar pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas. No caso do conflito entre Rússia e Ucrânia, 39 países que já entraram com pedidos para que o Tribunal Penal Internacional investigue os crimes de guerra cometidos no conflito, sobretudo por parte do exército russo.
Mas a professora esclarece que dificilmente há prisão dos culpados. Como o Tribunal Penal Internacional entende que crimes de guerra são cometidos por indivíduos e que esses indivíduos precisam se responsabilizar criminalmente, internacionalmente, por essas violações graves de direitos humanos, na maioria das vezes a pena não é cumprida porque se trata de uma figura de alto escalão e que não vai se entregar.
"A questão é que, vamos imaginar que, sim, seja configurado como crime de guerra alguns dos movimentos e algumas das atividades bélicas empreendidas por um exército e por pessoas que estavam no comando, que dirigiam uma operação. É muito difícil que líderes, chefes de alto escalão numa operação de guerra sejam de fato capturados por um tribunal. Esse tribunal não tem uma força policial associada que vai capturar uma pessoa que foi investigada, processada e condenada a anos de prisão. Por isso existe uma dificuldade muito grande de operacionalizar um resultado investigativo como esse, porque é muito complicado você alcançar um chefe de Estado, um chefe de uma operação militar, figuras de alto escalão, que normalmente são as figuras que têm capacidade de comandar, de definir e de decidir a direção da guerra", pontua.
No caso da Rússia, o país nem ao menos é signatário do Estatuto de Roma ou parte do Tribunal Penal Internacional. Do mesmo modo que alguns outros países também não são -- como os Estados Unidos --, isso significa que alguns Estados não reconhecem a suposta legitimidade da Corte e dos mecanismos dela. Entretanto, segundo a professora de Relações Internacionais, a punição, ainda que falha, pode desencorajar -- em um caso de novo conflito -- a disseminação de atos atrozes, como genocídio, crimes de guerra, e crimes contra a humanidade.