Brasil já tentou limitar juros e preços da economia sem sucesso
Proposta em análise no Senado pega carona no Desenrola; veja outras medidas e planos que ficaram pelo caminho
Guto Abranches
Está na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal para análise o PL 2685/2022, que tabela o limite máximo dos juros cobrados do rotativo do cartão de crédito. O projeto já passou em primeira votação na Câmara Federal e tramita com desenvoltura entre os parlamentares. Um dos impulsos decisivos é dado pela associação da proposta de limite dos juros à instituição do Programa Emergencial de Renegociação de Dívidas de Pessoas Físicas Inadimplentes, o Desenrola Brasil, veiculado pela Medida Provisória 1176/23. O projeto de lei remete ao Conselho Monetário Nacional (CMN) a fixação de limites para os juros do cartão.
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Não é a primeira vez que o Brasil traz à tona a ideia de limitar os juros cobrados no sistema financeiro. Em 1988, ainda na concepção da "Constituição Cidadã" -- como foi batizada por Ulysses Guimarães a Carta Magna do país promulgada naquele ano -- havia um dispositivo formalizando o tabelamento dos juros em 12% reais ao ano. Uma canetada que buscava adequar uma realidade conduzida pelas forças -- e interesses -- de mercado a um Brasil que, já naquela época, exibia traços muito definidos de desigualdade social e econômica.
"Já naquela altura era uma situação absurda", aponta Guilherme Afif Domingos, que foi deputado constituinte em 1988. Hoje, ele é Secretário de Projetos Estratégicos do Governo do Estado de São Paulo. E vê semelhanças entre a visão que apresenta a ideia do limite aos juros agora e aquela de 35 anos atrás.
"Havia a ilusão de que o estado poderia intervir no tabelamento de juros. Como agora. Ele pode intervir nas causas do aumento de juros: através da livre-concorrência, com o estado sendo menos voraz na busca de recursos -- porque o estado concorre com a iniciativa privada, estabelece o juro básico dele e a gente tá vivendo a mesma época do passado. De qualquer forma, aquela foi uma lei que não pegou: o Brasil tem disso, tem lei que pega e lei que não pega" - Guilherme Afif Domingos, secretário de Projetos Estratégicos do Estado de São Paulo
De fato, a medida ficou pendente de regulamentação indefinidamente, até que, em 2003, acabou sendo revogada por Emenda Constitucional. Em maio daquele ano, a E.C. 40 alterou uma série de disposições a respeito do funcionamento do mercado financeiro. Os 12% estabelecidos na Carta Magna entravam para a história sem jamais terem atingido qualquer utilização na prática.
No real
Por volta da segunda metade dos anos 1980, período de formação da Assembléia Nacional Constituinte, a alta de preços galopante preocupava. Ao longo de 1987, por exemplo, o IBGE apurou inflação acumulada de 365,96%. Não à toa, inúmeros planos foram elaborados e aplicados pelos governos na tentativa de domar o chamado "dragão da inflação". E todos eles levavam em conta a ideia de congelamento, tabelamento, limitações de preços, prazos ou números que, naturalmente, a economia é que deveria tratar de organizar. Abaixo, alguns exemplos.
- Plano Cruzado (fiscais do Sarney): lançado em 1986 teve na figura do ministro Dilson Funaro sua maior liderança. A moeda passava a ser o Cruzado, em substituição ao Cruzeiro. Os preços foram congelados por tempo indeterminado e foram distribuídas tabelas com os valores que deveriam ser respeitados. Os cidadãos foram instados a 'fiscalizar' as práticas comerciais, impedindo reajustes de preços: eram os "fiscais do Sarney" -- José Sarney, presidente da República à época. A estabilidade dos preços gerou aquecimento no comércio por um curto espaço de tempo. Em seguida, houve desabastecimento e volta da inflação.
- Plano Bresser: capitaneado pelo então ministro da Fazenda, Luiz Carlos Bresser-Pereira, entrou em vigor em junho de 1987. Os preços foram congelados por 90 dias e os salários eram reajustados toda vez que a inflação passava dos 20% ao mês, era o "Gatilho Salarial". O programa controlou a inflação abaixo dos dois dígitos por quatro meses; em novembro a alta de preços voltava a crescer, batendo 12,84%. O "Bresser" fracassa e o ministro deixa o cargo.
- Plano Verão: implantado pelo ministro Maílson da Nóbrega em janeiro de 1989, o plano trocava novamente a moeda, que passou a ser o Cruzado Novo. Houve novo congelamento e nova derrota para a inflação, que chegou a acumular 1.764,87% ao longo do ano.
Na realidade, a inflação só seria controlada no Brasil a partir do Plano Real, em 1994, que priorizou o ajuste das contas públicas e reformas econômicas que diminuiram os gastos do governo. A condução do plano foi do então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, que integrava a equipe de Itamar Franco, presidente da República no período. Não houve congelamento de preços, tarifas e taxas. Foi adotada uma moeda virtual, a Unidade Real de Valor (URV), que convertia preços diariamente, desindexando a economia e tirando fôlego da inflação. O Real como moeda foi adotado na terceira fase do programa, em julho de 1.994. De lá pra cá, a inflação acumulada até 2019 foi de "apenas" 508% ao longo do período.
Tentativa em 2013
Em 2013, o deputado federal Vieira da Cunha (PDT-RS) propôs a reintrodução no texto constitucional do teto máximo de 12% ao ano em termos reais para os juros praticados por instituições financeiras. Era a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 370/13. A proposta não foi votada e acabou por ser arquivada.
Tentativa em 2020
Com origem no Senado Federal, de autoria do então senador Alvaro Dias (Podemos-PR), o Projeto de Lei 1.166/2020 propõe congelar os juros do cheque especial e do cartão de crédito em 20% ao ano. Apesar do término do mandato de Álvaro Dias, a proposta segue em tramitação já na Câmara, carecendo de encaminhamento pela Mesa Diretora da casa.
Tentativa em 2023
O texto encaminhado ao Congresso é de autoria do deputado Elmar Nascimento (União-BA), o Projeto de Lei 2685/22, foi aprovado na forma de um substitutivo do relator, deputado Alencar Santana (PT-SP). O relator incorporou ao texto a Medida Provisória 1176/23, que cria o Programa Desenrola Brasil a fim de incentivar a renegociação de dívidas, ofertando garantia para aquelas de pequeno valor (até R$ 5 mil). Pelo texto aprovado, quem emite cartões de crédito e outros dispositivos para pós-pagamento de compras e despesas deve apresentar ao Conselho Monetário Nacional (CMN) no sentido de se autorregular em termos de taxas de juros e encargos financeiros a serem aplicados sobre o saldo devedor do cartões, no caso de não pagamento da fatura integralmente -- o conhecido crédito rotativo do cartão. Os limites deverão ser anuais e apresentados com fundamento. Em última análise, o total cobrado de juros e encargos não poderá ser superior ao valor original da dívida. Em resumo: os juros só poderão chegar até o valor total da dívida em aberto.
"A média anual de juros rotativos do cartão é de 440%. Isso é um absurdo, a pessoa acaba se enrolando, sem pagar seu compromisso, resultando em um lucro abusivo, sem qualquer parâmetro no mundo" , Alencar Santana (PT-SP)
O autor do projeto, Elmar Nascimento, lembra que o texto aprovado foi amplamente negociado e foi objeto de acordo com bancos, Banco Central e o Ministério da Fazenda. "Foi tudo negociado. É um projeto que vai permitir a retirada de mais de 70 milhões de brasileiros da situação de inadimplência e vai impor uma autorregulamentação aos bancos, para que exista uma queda gradual da taxa de juros do rotativo do cartão de crédito", afirma ele.
O deputado Gilson Marques (Novo-SC) criticou a medida. "Somos contrários ao projeto, porque somos contra o governo trabalhar tabelando juro, regulando o dinheiro alheio", afirmou.
Vai dar certo?
Afif Domingos é taxativo quanto à nova proposta: "Não dá certo. Pode até acontecer como lei, se faz um auê danado, e na prática não acontece. As causas são as mesmas [da proposta de 1988]: não adianta querer apagar o efeito".
Já o economista Roberto Macedo, que é professor da USP e foi secretário de política econômica do Ministério da Fazenda, acha que a nova proposta, mesmo que semelhante ao texto da Constituinte, pode ser levada em conta. Mas apenas numa situação limite.
"Se for para fazer frente a uma situação esdrúxula como a atual, de juros de quase 450% ao ano, eu sou a favor de que uma proposta assim seja apresentada. Mas desde que não existam alternativas melhores. Só neste caso", avalia ele. Na observação de Macedo, o Brasil já viveu experiências nas quais se tentava regular a economia "por fora" da economia. E não deu certo. Acompanhe trechos da entrevista ao SBT News.
SBT News: Há chance de uma proposta nessa linha dar certo agora?
Roberto Macedo: "Tabelar preços, tabelar juros...isso não existe na economia. Quantos exemplos nós tivemos, desde os 12% de juros propostos na Constituição de 1988 que nunca foram regulamentados, até serem retirados de cena; depois teve os fiscais do Sarney, com preços de produtos tabelados os fiscais'foram confiscar boi no pasto. Resultado: sumiram com os bois! Se você tabela o tomate, vai haver desabastecimento, vai sumir o tomate. Troca pelos juros: se você tabela os juros na canetada, é capaz de sumir o crédito ao consumidor. Mas o mercado não vai deixar isso acontecer. Só não vai baixar as taxas. Esse é o ponto".
SBT News: E se não aparecer outra ideia?
Roberto Macedo: "A proposta de congelar, de tabelar os juros tem que ser considerada: mas só na ausência de alternativas melhores. Eu não entendo como o sistema financeiro, os bancos ainda não fizeram nada para trazer os juros para um patamar respeitável. O nível dos juros de cartão e etc hoje é um absurdo. O sujeito que entra no rotativo do cartão, no cheque especial, enfim, o cara que contrata esse crédito não tem noção da realidade. É uma cocaína financeira. O único remédio pra isso é a educação financeira, é o sujeito aprender que isso existe para não ser usado. Diante de um cenário como esse, se não houver alternativas mais inteligentes e responsáveis, eu acabo sendo a favor do tabelamento dos juros, sim. Mas pela ausência de atitude e de iniciativa do sistema financeiro e da área responsável do governo em coibir estes abusos."
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