O antes e o durante a guerra: a Ucrânia após 1 ano
Relembre momentos do conflito que abalou o sistema internacional
Giovanna Colossi
Em 24 de fevereiro de 2022, o correspondente especial do SBT, Sérgio Utsch, estava em Kiev, na Ucrânia, quando a Rússia deu início a sua "operação militar especial" no país. Experiente em cobertura de conflitos, ele relatava justamente o acirramento nas tensões entre os vizinhos quando os primeiros bombardeios foram registrados nos arredores da capital e as sirenes ativadas.
+ Entenda os motivos da guerra entre Rússia e Ucrânia
+ Os momentos que antecederam o início da guerra entre Rússia e Ucrânia
Um ano depois e essas mesmas sirenes continuam a tocar. O hotel no qual Utsch se hospedou e precisou sair às pressas para se refugiar na Embaixada do Brasil também está lá, sem turistas, com poucos funcionários, mas em pé e desafiador, assim como boa parte da Ucrânia, que resiste.
+ Enviado do SBT mostra clima em Kiev após chegada das tropas russas
+ Invasão na Ucrânia é o início de uma guerra contra a Europa, diz Zelensky
+ "Rússia despedaçou a paz na Europa", diz secretário-geral da Otan
Sirenes tocam em Kiev. É um aviso pra que milhões de pessoas se protejam. Muitos mantém a calma. Outros, entram em pânico. Vi uma funcionária do hotel chorando. É desolador. pic.twitter.com/4YJqTo3mpM
? Sérgio Utsch (@utsch) February 24, 2022
As primeiras casualidades da guerra foram relatadas horas após a invasão. Em anúncio, o ministro da Saúde da Ucrânia, Viktok Lyashko, comunicou a morte de 137 ucranianos. No dia seguinte, o número se aproximava de 200. Sete dias depois já passava de 2 mil. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), hoje, o número de civis mortos na guerra ultrapassa 8 mil. A maioria causada por bombardeios de artilharia pesada, sistemas de mísseis de lançamento múltiplo e ataques aéreos.
+ "Lutaremos o tempo que for necessário", diz presidente da Ucrânia
Imagens das vítimas viraram símbolo dos efeitos dos ataques. Entre as mais emblemáticas estão a de uma senhora ferida após intensos bombardeios na cidade de Kharkiv, no leste da Ucrânia e de uma grávida ferida sendo resgatada das ruínas de uma maternidade de Mariupol, também ao leste. Contudo, as imagens mais estarrecedoras vieram de Bucha, pequena cidade próxima da capital Kiev.
Ocupada logo no início da invasão, a província só foi liberada pelas tropas ucranianas 40 dias depois, em 3 de abril. No local, os soldados encontraram um massacre de civis, com corpos abandonados pelas ruas, em valas comuns e em residências destruídas. A maioria com marcas de execução. Ao todo, 458 pessoas foram mortas.
+ Ucrânia termina de enterrar vítimas de massacre em Bucha
+ ONU aprova resolução que condena invasão da Rússia à Ucrânia
+ Vídeo mostra tanque russo atirando contra ciclista em Bucha
Divulgado pelo próprio governo ucraniano, o massacre em Bucha causou reações de líderes da União Europeia, Estados Unidos e do Papa. A Anistia Internacional denunciou a Rússia por crimes de guerra e a ONU iniciou uma investigação sobre o caso.
+ Ataques a hospitais, civis e tortura: o que são crimes de guerra?
Os que sobreviveram aos primeiros dias da invasão logo começaram a fugir do país. Filas de carros e de pessoas a pé tentando cruzar a fronteira com a Polônia, Hungria, Moldova, Eslováquia e Romênia deram a dimensão da crise de refugiados que seria registrada ao longo do conflito. Inicialmente, a ONU previu que a guerra poderia levar 5 milhões de pessoas a deixarem o país, no entanto, o número já ultrapassa 8 milhões, de acordo com dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).
+ Da KGB à presidência: entenda a trajetória de Vladimir Putin ao poder
Desses, metade são crianças, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
A invasão também despertou o nacionalismo entre muitos ucranianos. Apesar de ter uma tropa inferior a da Rússia, o país conseguiu deter o avanço de Moscou e, nos últimos meses, com a ajuda do Ocidente, tem realizado mais e mais contraofensivas. Em maio, quatro meses após a invasão russa, a siderúrgica de Azovstal, em Mariupol, cidade portuária ao leste do país, foi palco da maior demonstração de resistência da Ucrânia.
+ Zelensky comenta sobre ataques russos em Donbass: "inferno"
+ Vídeo mostra batalha em Mariupol antes de cidade ser sitiada pela Rússia
Entrincheirados nos corredores subterrâneos da planta com mais de 11 quilômetros quadrados, cerca de dois mil soldados ucranianos se negaram a abaixar as armas. Por 82 dias, eles foram o único ponto de resistência na cidade fundamental para a campanha militar de Moscou. Localizada entre a Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, e Donbass, região controlada por separatistas pró-Kremlin, Mariupol é um ponto de conexão por terra entre as duas. A cidade também possui um dos maiores portos comerciais da Ucrânia, no mar de Azov.
+ Por que a região de Donbass é tão importante para a Rússia?
Para além da guerra, a conquista de Mariupol provocou um novo drama no cenário mundial: crise alimentar.
A Ucrânia é um dos maiores exportadores mundiais de trigo, milho e óleo de girassol, mas a guerra e o bloqueio russo de seus portos interrompeu grande parte desse fluxo, colocando em risco o abastecimento mundial de alimentos. Por meses, 22 milhões de toneladas de grãos ucranianos ficaram bloqueados em silos no porto de Mariupol, o que disparou o preço dos alimentos, gerando alerta de escassez em países do Oriente Médio e África.
+ Unicef alerta para possibilidade de "explosão" de mortes de crianças na África
O bloqueio provocou uma nova rodada de acusações entre a Rússia, Ucrânia, União Europeia e Estados Unidos. O bloco europeu chegou a acusar o presidente russo de usar a crise alimentar como arma de guerra. Putin, por sua vez, culpou o Ocidente e as sanções impostas à Rússia ao longo do conflito.
+ Pior crise alimentar em 15 anos; FMI alerta sobre aumento da pobreza
+ "Situação da fome no mundo é inédita e assustadora", diz agência da ONU
A situação foi parcialmente contornada com um acordo costurado pela Turquia e o secretário-geral da ONU, António Guterres, que permitiu à Ucrânia exportar seus grãos e outros produtos agrícolas, assim como a Rússia, outra grande exportadora de grãos. Em novembro, o Kremlin chegou a anunciar a suspensão do acordo após supostos ataques de drone a embarcações russas, mas voltou atrás menos de uma semana depois.
A Rússia, além de um importante exportador de grãos, era também responsável por 40% do fornecimento de gás natural a Europa. Contudo, a invasão à Ucrânia levou o bloco, os Estados Unidos e aliados a impor uma série de sanções contra Moscou.
No total, a União Europeia já aplicou nove pacotes de restrição para tentar sufocar a economia russa. Além de sanções a entidades, bancos, oligarcas russo, e o próprio presidente russo, o Conselho Europeu também aprovou embargos às importações de carvão e petróleo e um teto no valor do barril de petróleo russo, na tentativa de acabar com a guerra.
+ "Falharam miseravelmente", diz Rússia sobre sanções do Ocidente
O fornecimento de gás natural russo foi poupado dos pacotes, ainda assim o bloco conseguiu diminuir a demanda pelo combustível fóssil para 7%. Mas não sem consequências. A região enfrenta uma crise energética que elevou o preço da energia e aumentou a inflação nos países europeus, que agora vivem também uma crise no custo de vida.
+ Crise energética eleva procura e preços de lenha na Europa
Além disso, as sanções foram alvo de retaliação da Rússia, que interrompeu o fornecimento de gás pelo gasoduto NordStream 1 poucos meses antes do inverno no continente. Preocupados com um possível apagão, os países realizaram campanhas de racionamento, apagaram holofotes de monumentos e gastaram muito mais comprando gás natural liquefeito de outros fornecedores.
+ Gazprom corta gás à Europa por tempo indeterminado
O cenário imaginado pelos governos europeus não se concretizou. O inverno com temperaturas mais amenas do que o normal e os esforços dos países para aumentar o armazenamento de gás antes do período de frio ajudou a aliviar uma crise histórica de energia. A Ucrânia, no entanto, não teve tanta sorte.
+ Ucrânia às escuras: população sofre com apagões em meio às baixas temperaturas
+ Bombardeios destruíram 90% dos geradores eólicos ucranianos, diz governo
+ UE anuncia envio de 2,5 bilhões de euros para reconstrução da Ucrânia
Milhões de ucranianos enfrentaram o frio e a neve sem acesso à calefação ou qualquer tipo de energia. Atacar a infraestrutura energética do país é um dos principais métodos utilizados pela Rússia para estrangular a resistência ucraniana. Estima-se que mais de 50% da infraestrutura do país tenha sido destruída por bombardeios russos. Bilhões já foram destinados pela União Europeia e Estados Unidos para ajudar na reconstrução do país.
+ Ucrânia faz esforço para restaurar água e energia após ataques russos
A capital Kiev está às escuras. Em Mariupol, Kherson e Mykolaiv a escassez de água canalizada e energia levou o governo a orientar cidadães a deixarem as cidades para áreas mais seguras no centro e oeste da Ucrânia.
De volta ao país um ano após o início da guerra, o correspondente especial do SBT, Sérgio Utsch, relatou como os ucranianos estão lidando com os desafios impostos pelo conflito.
"Se o dia tinha deixado em evidência uma cidade perseguindo uma normalidade que perdeu há quase 1 ano, a noite revelou a escuridão que a guerra trouxe pra Kiev. Boa parte da iluminação pública está desligada. Na luta dos ucranianos, faltam armas e energia também.", escreveu Utsch em sua coluna no SBT News
Zaporizhzhia, uma das quatro regiões anexadas ilegalmente pela Rússia, continua sendo alvo de inúmeros bombardeios. No início de fevereiro deste ano, a cidade no sudeste da Ucrânia sofreu uma nova ofensiva e foi atingida por 17 mísseis em apenas uma hora. Maior número desde o início da invasão.
Os ataques reacendem um grande trauma nos ucranianos e no mundo: o desastre nuclear de Chernobly, em 1986. Isso porque, em Zaporizhzhia, fica a maior usina nuclear da Europa. Desde o início da guerra, a planta sofreu cortes de energia que afetaram o resfriamento de alguns dos seis reatores, além de ser bombardeada mais de uma vez.
+ Após invasão russa, especialista comenta riscos em torno de Chernobyl
Segundo especialistas da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea) um vazamento químico na planta pode provocar um desastre dez vezes maior que Chernobly. A agência, inclusive, visitou a usina, ocupada por forças russa.
+ Chefe da AIEA defende presença permanente na usina nuclear de Zaporizhzhia
+ EUA dizem que Rússia não reconhece risco de acidente nuclear na Ucrânia
O conflito que muitas especialistas acreditavam que seria liquidado em poucas semanas pela Rússia ainda é palco de surpresas e reviravoltas. A Ucrânia, abastecida por armas ocidentais, surpreendeu o exército russo ao conseguir realizar diversas contraofensivas ao longo do fim de 2022.
+ Em contraofensiva, exército da Ucrânia cerca soldados russos em Lyman
De setembro a dezembro, os ucranianos conseguiram retomar partes da província de Kharkiv, como a cidade de Izium, e de Kherson, no sul, onde expulsaram as tropas russas da cidade.
Contudo, a contraofensiva perdeu força no início deste ano e enfrentou batalhas sangrentas com a Rússia na região de Bakhmut. Segundo o Ministério da Defesa do Reino Unido, o Kremlin tenta reiniciar as operações ofensivas no país invadido, com o objetivo principal sendo a captura de áreas de Donetsk que ainda estão sob controle ucraniano.
+ Rússia afirma que conseguiu cercar outra cidade importante da Ucrânia
É esperado, inclusive, uma grande ofensiva da Rússia ainda neste mês, relatou o Ministério da Defesa da Ucrânia. Autoridades do país acreditam que os ataques devem acontecer justamente no dia que marca o início da guerra, 24 de fevereiro.
+ Rússia carece de munições para avanço de ofensiva, diz inteligência britânica
O exército russo, no entanto, deve encontrar um exército ucraniano treinado, mais preparado, e com novas armas. Em janeiro deste ano, após semanas de hesitação, a Alemanha anunciou o envio de tanques Leopard 2 à Ucrânia. O país foi acompanhado pelos Estados Unidos, que também garantiram o fornecimento de tanques M1 Abrams para Kiev.
O fornecimento das armas deve marcar uma nova fase da guerra, o que, para a Ucrânia, não é o bastante. O país quer o fim da invasão russa. E rápido.
Em viagem surpresa ao Reino Unido, França e Bélgica, Volodymyr Zelensky voltou a apelar para a entrega de novos pacotes militares à Ucrânia, sobretudo caças e mísseis de longo alcance.
Em discurso emocionado ao Parlamento Europeu, o presidente ucraniano afirmou que a paz na Europa só será possível com o fim rápido da agressão russa.
"Pôr fim à agressão russa o mais rápido possível é a coisa mais racional a fazer. Quanto mais cedo a Ucrânia receber armas de longo alcance, quanto mais cedo nossos pilotos receberem aeronaves modernas, mais forte será nossa coalizão de tanques, mais cedo a agressão russa terminará e devolveremos uma paz firme à Europa", disse
+ Zelensky pressiona líderes europeus por armas e adesão da Ucrânia à UE
Enquanto isso, os ucranianos tentam seguir com a vida, viver uma normalidade que não existe.