Sobreviventes do Holocausto fogem da Ucrânia em meio à invasão russa
País é residência de 10 mil sobreviventes; a maioria deles idosos e com saúde debilitada
Vítimas do extermínio de 6 milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, sobreviventes do Holocausto enfrentam uma nova guerra, no mesmo continente, com novos atores, e os mesmos traumas. O barulho das bombas, a escassez de mantimentos, água, energia e o terrível sentimento despertado pelo conflito armado não são novos para os mais de 10 mil sobreviventes que moram na Ucrânia, mas ninguém imaginaria que passaria por isso uma segunda vez.
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Idosos, dos 10 mil sobreviventes, 5.200 recebem atendimento domiciliar regularmente e aproximadamente 71% desses indivíduos têm deficiências moderadas, o que significa que precisam de 25 a 56 horas de assistência domiciliar por semana. No entanto, existem 508 sobreviventes na Ucrânia que estão confinados em casa. Os dados são da Conferência de Reivindicações Materiais Judaicas contra a Alemanha, também conhecida como Conferência de Reivindicações. O grupo representa os judeus do mundo na negociação de compensação e restituição para as vítimas da perseguição nazista e seus herdeiros, além de oferecer bem-estar aos sobreviventes do Holocausto em todo o mundo.
Desde o início do conflito, a Conferência de Reivindicações tem retirado essas vítimas do país e levado para locais seguros, a maioria deles na Alemanha. No entanto, já houve casualidades. Boris Romanchenko, de 96 anos, sobreviveu a vários campos de concentração nazista, mas foi morto em 22 de março durante um ataque na cidade ucraniana de Kharkiv.
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"Nós sobreviventes só temos uma coisa para fazer, rezar para poder sair outra vez sobreviventes.", comentou Alice Farkas. Prestes a completar 90 anos, a húngara mora no Brasil, na região do ABC Paulista, em São Paulo. Viu 64 parentes morrerem em Auschwitz, maior símbolo do Holocausto. Entre eles, seus pais. Com ajuda da Cruz Vermelha, veio para o país depois da Revolução de 56 na Hungria - revolta popular contra políticas impostas pelo governo e União Soviética - seu marido foi ameaçado por soldados russos e para não morrerem, precisaram fugir.
Diante das imagens das vítimas civis e da destruição da Ucrânia, Alice relembra que na Segunda Guerra Mundial não havia nem ao menos a chance de fugir.
"Tem uma diferença entre a Segunda Guerra Mundial e a guerra deles. Na Segunda Guerra Mundial, ninguém tinha oportunidade de fugir, procurar sobreviver. Na Ucrânia ainda têm pessoas que conseguem sair do país, sobreviver e se salvar. Na Segunda Guerra Mundial não tinha esta opção. E como sempre, desde quando mundo é mundo, só o povo que morre, só o povo que sofre. Isso foi sempre assim.", comenta, e continua "nós não tínhamos chance nenhuma. Não tínhamos como sair. Eramos levados para onde eles queriam levar e eles que resolviam o que iriam fazer com os seres humanos."
O extermínio dos judeus e as atrocidades cometidas pelos nazistas incluiu a proteção de civis nas Convenções de Genebra. Parte de uma série de tratados, a quarta Convenção de Genebra foi escrita em 1949, logo após o final da Segunda Guerra Mundial, e tenta proteger civis de toda hostilidade e atrocidades de um conflito armado. Na Ucrânia, cada vez mais há evidências de violações dessas normas, o que pode configurar crime de guerra.
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A retirada de pessoas, principalmente idosos, no entanto, é complicado e requer logística. A longo prazo, o Comitê Judaico Americano de Distribuição Conjunta (JDC) fez arranjos na Polônia, Romênia, Hungria e Moldávia para milhares de lugares, caso uma evacuação em grande escala se torne necessária e possível. Para áreas como Kiev, Kharkiv e Kherson, onde há combates ativos nas ruas, não é prático tentar realocar pessoas idosas e reclusas em estradas perigosas. Como ainda há conflitos, a situação muda diariamente e até a cada hora, e a Conferência de Reclamações, o JDC têm trabalhando em conjunto para garantir que os sobreviventes sejam atendidos para ajudar a prevenir desastres humanitários.
Mas nenhuma retirada acontece sem que haja traumas e, por isso, o acolhimento no local de chegada é necessidade básica. A presidente executiva da União Brasileiro Israelita do Bem Estar Social (Unibes), Denise Zaclis Antão, destaca a importância deste fator para um novo recomeço.
"Esse é o momento de todos se unirem, independente da religião, independente das crenças, e apoiar e fazer dessa transição o mais fácil num momento tão difícil, que é você ter que largar toda sua história para trás e ter que encarar uma nova história, não sabendo se você vai ter a possibilidade de voltar para o que você tinha. Hoje a Unibes cuida dos sobreviventes do Holocausto. São 200 pessoas, 200 idosos na faixa dos 80 aos 100 anos, sendo que entre 80 e 90 anos são 53% dos nossos atendidos e 35% representam idosos dos 90 a 100 anos, que vivem teoricamente em um estado de vulnerabilidade social, mas perdem essa vulnerabilidade por todo o atendimento que a Unibes dá".
A Unibes é representante da Conferência de Reclamações no Brasil e tem dado apoio financeiro para o resgate de judeus e sobreviventes do Holocausto na Ucrânia.
Para quem já viveu os horrores da atrocidade humana, fica a revolta. "Eu fico revoltada, triste, porque já sobrevivi, vivi. Como milhares pessoas do holocausto, sobrevivemos, demos sorte de sair de lá e agora, infelizmente a gente só tem que dizer que é uma covardia enorme o que eles fizeram com a Ucrânia.", finaliza a sobrevivente Alice Farkas.