ANÁLISE: A bizarrice e a ameaça à democracia, por Sérgio Utsch
O ponto de interrogação é se uma condenação mundial tão fervorosa será o suficiente contra atos como o dos EUA
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A condenação quase unânime das cenas de violência na capital da principal democracia do mundo colocou no mesmo lado, pelo menos por alguns instantes, países e políticos bastante distintos, em sua natureza e no interesse que tem no mundo pós-Donald Trump.
Há aquele grupo que nunca engoliu os exageros e a postura do presidente derrotado nas últimas eleições. Angela Merkel, chanceler da Alemanha, disse que estava "triste e furiosa" e pediu um pouco de "decência e responsabilidade", lamentando o fato de Donald Trump ter se negado a aceitar a derrota inúmeras vezes.
O francês Emmanuel Macron e outros líderes europeus foram no mesmo embalo.
Há ainda os neo-críticos, grupo que poderia ser facilmente liderado pelo primeiro-ministro do Reino Unido. Trump foi o camarada que, como ele, defendia o Brexit e não economizava adjetivos pra criticar a União Européia. Boris Johnson chegou a defender que o norte-americano fosse considerado para o prêmio nobel da Paz. E não se tratava de uma das boas ironias britânicas.
Criticado por voltar atrás com muita frequência em suas decisões nas políticas de combate à pandemia, Johnson foi um dos primeiros líderes a classificar as cenas do Capitólio como "vergonhosas".
Tem ainda o centrão da política mundial, formado por políticos e países que ficam sempre na sombra dos mais fortes. Vide o primeiro-ministro da pequena Eslovênia, terra natal da primeira-dama Melania Trump. Em novembro, Janez Jansa antecipou-se a parabenizar o republicano como vencedor das eleições. Agora, diz que "democracia pressupõe protestos pacíficos", como se já não houvesse ali, na contestação de um processo legítimo de outro país, uma outra forma de violência.
Para quem não preza muito a democracia, a balbúrdia do Capitólio soou como música. A Rússia, cujo governo é acusado de impedir a candidatura e até de envenenar líderes da oposição, chamou o sistema eleitoral dos Estados Unidos de "arcaico".
O regime fundamentalista iraniano foi além. "Que fracasso é essa democracia ocidental", disse o presidente do país, Hassan Rouhani. Até a Venezuela mandou lembranças.
E a China, que é tudo, menos democrática, não demorou a usar a crise como argumento. "A mídia dos Estados Unidos condenou o que aconteceu em Washington, mas chamou os agitadores de Hong Kong de heróis nacionais", disse a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores do país.
A comparação entre manifestantes pró-democracia e militantes extremistas de Washington é incompatível. Mas os Estados Unidos deram à China a grande chance de fazer isso.
E há aqueles aliados de primeira hora, a grande maioria na extrema direita da régua política. Muitos nem estão no poder, mas tem mais intimidade com Trump que muitos chefes de Estado. O britânico Nigel Farage, o senhor Brexit, usa informações falsas pra pregar o que chama de "invasão do Reino Unido por imigrantes". Farage foi o primeiro político britânico a encontrar-se com Trump depois que ele foi eleito presidente. Ontem, disse em suas rede sociais que "atacar o Capitólio é errado. Os manifestantes devem sair", como se a sua própria retórica também não incentivasse a violência contra minorias e imigrantes no Reino Unido.
Outros integrantes do fã-clube de Trump também condenaram a violência: Marine Le Pen, da França, Matteo Salvini, da Itália e Tino Chrupalla, líder do partido AfD, "Alternativa para a Alemanha", acusado de abrigar neo-nazistas alemães, parecidos com aquele que exibia orgulhosamente o nome Auschwitz na camisa, durante a invasão de ontem. Este grupo é formado por gente que se alimenta e se fortalece pelo extremismo, mas que agora viu -ou fingiu que viu- uma perigosa linha sendo ultrapassada.
A primeira manifestação do governo brasileiro aconteceu apenas na tarde desta quinta-feira. O Brasil foi o único país a defender o que o chanceler Ernesto Araújo chamou de "cidadãos de bem". Mesmo ao condenar a invasão, o ministro das Relações Exteriores diz que é preciso "investigar se houve elementos infiltrados".
O grande ponto de interrogação para os próximos meses e anos é se uma condenação mundial tão fervorosa será o suficiente para conter aqueles que já não são apenas bizarros. O sujeito que se adornou com um chifre pra invadir o Congresso dos Estados Unidos, há um bom tempo, deixou de ser apenas um personagem QUE GRITA nas redes sociais e espalha as mais diversas teorias da conspiração. Muitos, como ele, tornaram-se uma ameaça real, mesmo para democracias tão consolidadas como a norte-americana.
*O jornalista Sérgio Utsch é correspondente internacional do SBT
Há aquele grupo que nunca engoliu os exageros e a postura do presidente derrotado nas últimas eleições. Angela Merkel, chanceler da Alemanha, disse que estava "triste e furiosa" e pediu um pouco de "decência e responsabilidade", lamentando o fato de Donald Trump ter se negado a aceitar a derrota inúmeras vezes.
O francês Emmanuel Macron e outros líderes europeus foram no mesmo embalo.
Há ainda os neo-críticos, grupo que poderia ser facilmente liderado pelo primeiro-ministro do Reino Unido. Trump foi o camarada que, como ele, defendia o Brexit e não economizava adjetivos pra criticar a União Européia. Boris Johnson chegou a defender que o norte-americano fosse considerado para o prêmio nobel da Paz. E não se tratava de uma das boas ironias britânicas.
Criticado por voltar atrás com muita frequência em suas decisões nas políticas de combate à pandemia, Johnson foi um dos primeiros líderes a classificar as cenas do Capitólio como "vergonhosas".
Tem ainda o centrão da política mundial, formado por políticos e países que ficam sempre na sombra dos mais fortes. Vide o primeiro-ministro da pequena Eslovênia, terra natal da primeira-dama Melania Trump. Em novembro, Janez Jansa antecipou-se a parabenizar o republicano como vencedor das eleições. Agora, diz que "democracia pressupõe protestos pacíficos", como se já não houvesse ali, na contestação de um processo legítimo de outro país, uma outra forma de violência.
Para quem não preza muito a democracia, a balbúrdia do Capitólio soou como música. A Rússia, cujo governo é acusado de impedir a candidatura e até de envenenar líderes da oposição, chamou o sistema eleitoral dos Estados Unidos de "arcaico".
O regime fundamentalista iraniano foi além. "Que fracasso é essa democracia ocidental", disse o presidente do país, Hassan Rouhani. Até a Venezuela mandou lembranças.
E a China, que é tudo, menos democrática, não demorou a usar a crise como argumento. "A mídia dos Estados Unidos condenou o que aconteceu em Washington, mas chamou os agitadores de Hong Kong de heróis nacionais", disse a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores do país.
A comparação entre manifestantes pró-democracia e militantes extremistas de Washington é incompatível. Mas os Estados Unidos deram à China a grande chance de fazer isso.
E há aqueles aliados de primeira hora, a grande maioria na extrema direita da régua política. Muitos nem estão no poder, mas tem mais intimidade com Trump que muitos chefes de Estado. O britânico Nigel Farage, o senhor Brexit, usa informações falsas pra pregar o que chama de "invasão do Reino Unido por imigrantes". Farage foi o primeiro político britânico a encontrar-se com Trump depois que ele foi eleito presidente. Ontem, disse em suas rede sociais que "atacar o Capitólio é errado. Os manifestantes devem sair", como se a sua própria retórica também não incentivasse a violência contra minorias e imigrantes no Reino Unido.
Outros integrantes do fã-clube de Trump também condenaram a violência: Marine Le Pen, da França, Matteo Salvini, da Itália e Tino Chrupalla, líder do partido AfD, "Alternativa para a Alemanha", acusado de abrigar neo-nazistas alemães, parecidos com aquele que exibia orgulhosamente o nome Auschwitz na camisa, durante a invasão de ontem. Este grupo é formado por gente que se alimenta e se fortalece pelo extremismo, mas que agora viu -ou fingiu que viu- uma perigosa linha sendo ultrapassada.
A primeira manifestação do governo brasileiro aconteceu apenas na tarde desta quinta-feira. O Brasil foi o único país a defender o que o chanceler Ernesto Araújo chamou de "cidadãos de bem". Mesmo ao condenar a invasão, o ministro das Relações Exteriores diz que é preciso "investigar se houve elementos infiltrados".
O grande ponto de interrogação para os próximos meses e anos é se uma condenação mundial tão fervorosa será o suficiente para conter aqueles que já não são apenas bizarros. O sujeito que se adornou com um chifre pra invadir o Congresso dos Estados Unidos, há um bom tempo, deixou de ser apenas um personagem QUE GRITA nas redes sociais e espalha as mais diversas teorias da conspiração. Muitos, como ele, tornaram-se uma ameaça real, mesmo para democracias tão consolidadas como a norte-americana.
*O jornalista Sérgio Utsch é correspondente internacional do SBT
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