Publicidade
Brasil

Teto invisível: violência política de gênero é uma barreira para candidatas

Agressões dos mais diversos tipos assumem o papel de desgastar mulheres em busca de espaços de poder na política

Imagem da noticia Teto invisível: violência política de gênero é uma barreira para candidatas
mulheres manifestando
• Atualizado em
Publicidade

Violência política de gênero é todo tipo de ação que tem como objetivo impedir, criar obstáculos, restringir ou até anular os direitos políticos em virtude do gênero. Ela se configura como uma das barreiras para a baixa adesão de mulheres na disputa de cargos e lançamentos de pré-candidaturas para as eleições majoritárias de 2022, segundo Jéssica Melo Rivetti, pesquisadora da área de violência política na Universidade de São Paulo (USP).   

"Quando as mulheres que vislumbram lugares de destaque, como cargos na elite política (como por exemplo, cargos no executivo, no governo dos estados), precisam romper com diversas barreiras que compõem esse 'teto de vidro', ou seja, as violências simbólicas que as dificultam ascender aos postos mais prestigiosos", destaca.

A violência política é contínua e ainda mais árdua para minorias, como ressalta a procuradora regional da República e uma das coordenadoras do Grupo de Trabalho de Prevenção e Combate à Violência Política de Gênero, vinculado à Procuradoria-Geral Eleitoral, Raquel Branquinho. "Minorias dentro do grupo feminino sofrem mais ainda nas épocas eleitorais. É como se determinadas mulheres não tivessem direito sequer de se candidatar", diz.

"Quando fazemos um recorte de raça, a situação piora muito pois mulheres negras são mais objetificadas do que brancas, e é o que se passou durante a campanha de 2014 quando a ex-senadora, Marina Silva, quando disputou a presidência, sofreu diversos ataques na internet sendo comumente animalizada", concorda Rivetti. 

A violência política pode assumir diversas formas: violência física, psicológica, simbólica, sexual, patrimonial, moral ou feminicida. Um dos tipos mais comuns é a objetificação e crítica aos corpos de mulheres. "São sempre questionados em relação aos padrões sociais do que é considerado esteticamente aceitável. O corpo se torna aqui, um espaço político e de disputas. Um exemplo da nossa política brasileira é o que passou com o debate público em torno da aparência física de Dilma Rousseff durante o processo de impeachment, ou então, com a deputada federal Joice Hasselmann quando rompeu com o bolsonarismo e foi chamada de Peppa Pig", ressalta Rivetti. 

Segundo pesquisa do Instituto Alziras, uma das poucas sobre o tema, de 45% das 649 prefeitas eleitas em 2016, cerca de 53% sofreram algum tipo de violência política pelo fato de serem mulheres. 

Vozes interrompidas

"Nenhum momento da minha vida foi preservado", destaca a candidata à Vice-presidência da República, em 2018, Manuela D'Ávila. Tanto sua vida amorosa, como a maternidade e a família, foram invadidos pelas ofensas, ameaças e desinformação, não só da última eleição presidencial, quando ganhou mais visibilidade, mas também desde que ingressou na vida pública, aos 23 anos. 

"Nem o meu parto. Nem a minha gestação. Nem a criação da minha filha, nem a minha filha indo pra escola. Enfim, absolutamente nada. Nem o meu marido, nem o meu enteado. Absolutamente nada foi poupado do mecanismo que eles utilizam para tentar fazer com que as mulheres saiam da vida pública e, lamentavelmente, eles conseguem. Várias de nós vão ficando pelo caminho, né? Porque não é justo cobrar que nós fiquemos enquanto o ambiente não é transformado para que não seja uma máquina de violência contra nós como é hoje", diz.

Pré-candidata a deputada federal pelo PSD em São Paulo Luana Tavares vem sendo atacada, semanalmente, em sua conta do Instagram. "São comentários sincronizados, com palavras muito parecidas direcionadas a mim e ao meu trabalho", destaca Tavares. Os ataques, que começaram em 8 de março, Dia Internacional da Mulher, têm teor pessoal e de deslegitimação do trabalho de Tavares, que inclui a rede Conecta, organização de apoio a candidaturas femininas com mulheres de 24 estados do país e cerca de 330 participantes. 

Após um mês de denúncia dos comentários para a plataforma e também para a Polícia Civil, feitos em 14 de março, Tavares ressalta que não recebeu nenhum retorno sobre suas manifestações. "É possível, dentro da plataforma, bloquear os perfis, denunciar comentários, só que demoram. Então até agora a gente não recebeu nenhum retorno das denúncias que nós fizemos pelo meu perfil", ressalta.

Sem apoio e sofrendo chacotas dentro do partido, na Bahia, a mineira Sandra Muñoz, quando pré-candidata a deputada estadual pelo PSOL (BA), em 2018, sofreu diversas agressões dentro da sigla. "Para mim foi muito doloroso tá dentro do partido também, né? Que é difícil o diálogo. A gente também era mulher negra e LGBT, né? Aí você vira chacota. Porque, como por exemplo, eu sou uma mulher que eu sou bissexual, né? Então tem as piadinhas. Então você vai acabar ficando sozinha mesmo sem apoio nenhum dentro do partido", diz. 

Além da violência verbal, a ativista sofreu diferentes ameaças, inclusive de morte, e desistiu da candidatura. Muñoz, por coordenar uma rede de enfrentamento à violência contra mulher, em Salvador, acabou deixando tudo para trás e mudou para o Paraguai. "Não tinha para onde correr", ressalta. 

Um dos principais impactos, para muitas mulheres e para Sandra Muñoz, é o desgaste emocional unido ao medo. "O impacto mesmo é esse adoecer das mulheres e as mulheres não terem o acompanhamento. Porque elas saem da candidatura, desistem, desaparecem e ninguém vai atrás, ninguém pergunta", fala. 

"Então o impacto é esse, entende? Essa não ajuda, essa não continuidade. Acho que por isso e o medo também desse impacto da questão do assassinato de Marielle Franco veio muito com um recado, né? Ó, se você sair e enfrentar o sistema. Olha o que vai acontecer com você. Isso, para mim, ficou bem nítido. É muito cansativo, é muito doloroso", destaca.

Ela passou cinco anos no país vizinho e retornou ao Brasil para retomar o projeto Casa Marielle Franco Brasil. Sobre política, Sandra Muñoz disse que vai concorrer ao cargo de vereadora em 2024. 

Também vítima de violência política de gênero, a pré-candidata à presidência da República pelo MDB -- uma das duas mulheres entre os 11 pré-candidatos ao Planalto --, Simone Tebet, relembra um dos episódios no qual foi atacada em rede nacional durante a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid em 2021. "Foi em canal de televisão ao vivo pro Brasil inteiro ver, que foi quando o ministro de Estado, depois de ter sido duramente atacado pelos senadores, não por mim, em seguida, na minha intervenção, ele estava, ele sim, descontrolado e histérico e emocionalmente abalado. Ele não tinha outra saída, porque eu fiz uma pergunta muito contundente, ele me chamou de descontrolada e criou toda aquela sorte de confusão que muitos assistiram pela televisão", relembra. 

Wagner Rosário, ministro da Controladoria-Geral da União (CGU), após Simone Tebet questionar a atuação da CGU no caso Covaxin, a chamou de "descontrolada". A frase desencadeou tumulto na comissão e os senadores foram em defesa de Tebet. A sessão foi suspensa pelo presidente da CPI, o senador Omar Aziz.

O Instituto Vamos Juntas fez um levantamento de outros casos de mulheres que já sofreram algum tipo de violência política. A rede --criada em 2019, com 200 líderes, 11 vereadoras eleitas e a presença em 25 estados -- busca unir parceiros, sociedade civil e parlamentares para conquistar cada vez mais espaços políticos para as mulheres. "Não podemos relativizar a violência política. Nós precisamos garantir que as mulheres durante toda a trajetória política - enquanto pré-candidatas até exercerem o fim dos seus mandatos, estejam seguras e tenham condições para exercerem seus mandatos", ressalta Larissa Alfino, presidente do Instituto Vamos Juntas. Confira alguns depoimentos coletados pelo grupo: 

Avanços da legislação 

Apenas em 2021, após 59 anos da conquista do voto feminino e 93 anos da eleição da primeira mulher no país, houve, tardiamente, a tipificação da violência política como um crime por meio de duas novas leis. A advogada Andrea Costa especialista em direito eleitoral e direito da mulher explicou sobre cada uma, confira: 

  • Lei n.º 14.192/2021: a lei de violência política contra a mulher teve origem no Projeto de Lei 349/2015, da deputada Rosângela Gomes (Republicanos-RJ), que definiu normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher durante as eleições e no exercício de direitos políticos e de funções públicas. Tipifica o crime de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia durante a campanha eleitoral, com normas relacionadas à prevenção, repressão e combate à violência política contra a mulher; definindo como tal toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher, bem como qualquer distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício de seus direitos e de suas liberdades políticas fundamentais, em virtude do sexo; proíbe qualquer propaganda partidária que deprecie a condição de mulher ou estimule sua discriminação em razão do sexo feminino, ou em relação à sua cor, raça ou etnia, e determina que o estatuto do partido político deve conter, entre outras, normas sobre prevenção, repressão e combate à violência política contra a mulher;
  • Lei n.º 14.197/2021: altera o Código Penal para incluir o delito de violência política, qual seja, "Violência política (art. 359-P): restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, com pena de reclusão de 3 (três) a 6 (seis) anos e multa, além da pena correspondente à violência".

Dois casos foram registrados em março com base na lei de violência política. O primeiro, em Goiás, ocorreu na Câmara Municipal de Aparecida de Goiânia. O presidente da Casa, André Fortaleza (MDB), desligou o microfone da vereadora Camila Rosa (PSD) durante um debate em uma sessão em 2 de fevereiro de 2022. Rosa é a única vereadora entre os 25 parlamentares da Câmara. 

O segundo caso foi registrado em Porto Alegre, pela vereadora Bruna Rodrigues (PCdoB), por um incidente que ocorreu em setembro de 2021. Além de impedir a parlamentar de falar durante reunião de líderes -- na qual ele a interrompeu em três momentos -- o vereador Alexandre Bobadra (PL) ainda acusou Rodrigues de ter algum tipo de interesse sexual nele. Outros sete casos baseados na lei foram levantados pela Procuradoria da Mulher da Câmara dos Deputados em diferentes estados como São Paulo, Paraná, Goiás, Maranhão e Alagoas. 

O que pode ser feito? 

"Mas será que basta romper com essas barreiras do teto de vidro e ingressar nesses espaços masculinizados para alcançarmos uma paridade de participação?", questiona Jéssica Rivetti.  

Ser respeitada, ouvida, ter suas considerações levadas em conta e se sentir pertencente ao espaço político são reivindicações que acompanham as mulheres na vida e na política. No entanto, para ser enxergada como igual, ser reconhecida, é preciso uma reforma no poder, pois, senão, as mulheres continuarão sofrendo questionamentos sobre todas as suas capacidades, de acordo com Rivetti. 

Os espaços políticos precisam ser transformados para serem menos hostis e mais acolhedores e os autores das agressões e dos ataques precisam ser punidos, segundo Manuela D'Ávila. "Eu não quero que novas mulheres cheguem ao ambiente que me causou tantos horrores", diz. "Quem nós queremos do lado de dentro? Nós queremos as mulheres ou nós queremos os inimigos das mulheres, os misóginos, os que nos odeiam, os que acham violência bonito, os que ironizam estupro, os que ironizam nossos corpos, nossa vida, nosso estado civil, os que tentam nos enlouquecer e nos tratam como se nós estivéssemos loucas?", ressalta D'Ávila.  

"A gente vive em um país que não apurou a morte da Marielle Franco. Então a gente não vive num país que diz para as mulheres que fazer política é seguro, né? Que fazer política é acolhedor. Que é um debate de ideias. A gente vive em uma país que diz para as mulheres que se elas entram na política elas podem ser mortas, suas filhas podem ser ameaçadas de estupro e elas vão ter que andar de carro blindados e serem chamadas de todo tipo de ofensas. Esse é o país que a gente vive", finaliza. 

Saiba mais: 


 

Publicidade

Últimas Notícias

Publicidade