Brasil
Cansaço, calor e racionamento: o Amapá depois de 10 dias de apagão
Leia o depoimento da jornalista amapaense Francy Rodrigues
Francy Rodrigues
• Atualizado em
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O Amapá completa nesta 5ª feira (12.nov) o décimo dia de apagão-racionamento. Já é o maior da história de todo o norte do país.
Há uma semana, era improvável imaginar que algo tão inesperado pudesse levar mais de 700 mil famílias à agonia de viver sem água por falta de energia elétrica. No Amapá, as altas temperaturas duram o ano inteiro - em média 34º, mesmo no inverno, quando há maior volume de chuvas mas isso não alivia o calor. Portanto, ventilador e ar condicionado são itens de primeira necessidade. Sem energia o calor ficou insuportável.
Meu primeiro grande impacto com o apagão foi no terceiro dia. Estava na rua trabalhando, não achava água pra comprar e fiquei por mais de 48 horas tomando refrigerante. No quarto dia, tive um desmaio e a pressão arterial foi a 17. Me desidratei. O corpo reagiu e só então percebi que também não estava urinando.
Nos cinco dias em que não havia energia elétrica em lugar algum, andar na rua era como vivenciar cenas de filme. O cansaço estava impresso em rostos com olheiras profundas, pessoas caminhando a passos lentos e com roupas molhadas de suor, porque não havia como se refrescar. Aqui, a umidade fica em torno de 85% quase todo o dia.
O Rio Amazonas corta toda a orla de Macapá. Alguns pontos não são indicados para o banho, mas mesmo assim as famílias entraram na água nas horas de calor mais intenso, por volta de 14h. Nunca se viu tanta gente tomando banho ao mesmo tempo. E as famílias levaram shampoo e sabonete para o banho no rio, além de baldes e baldes para levar água e armazenar em casa.
O armazenamento em casa fez com que a prefeitura de Macapá distribuísse hipoclorito de sódio para que fosse misturado à água imprópria para uso doméstico. O desinfetante ajuda a melhorar a qualidade da água.
A escassez de gelo foi motivo de muita confusão. Com a esperança de tentar conservar alimentos nos freezers e geladeiras, as pessoas saiam às ruas com isopor nas costas à procura de algum lugar para comprar. Na 5ª feira anterior (5), surgiu um caminhão carregado no meio da rua, mas não deu para atender nem metade de quem estava na fila. Houve muito bate-boca e empurrões. Foi uma das cenas mais impactantes até aquele momento.
Mas foi no bairro Perpétuo Socorro, às margens do Rio Amazonas, onde chorei pela primeira vez. Era o terceiro dia de apagão, Uma fila enorme cercava uma padaria, me aproximei pra ver o que era. O dono havia colocado, do lado de fora, vários extensões de energia para que a vizinhança e clientes pudessem recarregar seus celulares e tentar se comunicar com parentes e amigos. Na parede estava outra imagem impactante que me fez desabar: "MÁXIMO, R$ 5,00 DE PÃO POR CLIENTE". Na fila, pais, mães, todo mundo reclamava do limite.
A cena de muitos aparelhos de celular nas extensões de energia se repetiu no aeroporto, o único local público com energia 24 horas. E lá, era comum ver pessoas jogadas no chão para se refrescar na pedra de granito que forma o piso de todo o espaço. Até aquele momento, era no aeroporto que estava o único caixa eletrônico abastecido com dinheiro. Nenhum outro da cidade estava em operação e as filas duravam 24 horas.
O dinheiro acabava muito rápido e levava algumas horas até a reposição. Essa agonia durou 4 dias. Dinheiro em espécie deixou de circular na cidade. As máquinas de cartão não funcionavam sem energia. Os bancos não funcionaram durante o apagão. As prateleiras dos mercados estavam esvaziadas: alimentos que dependiam de refrigeração foram jogados no lixo porque apodreceram muito rápido.
Em muitos momentos eu fechava os olhos para não enxergar uma verdade tão difícil. No domingo, depois de 5 dias de todo esse cenário (a energia parcialmente restabelecida estava em sistema de racionamento, em média 6 horas para cada região), me olhei no espelho e chorei para que aquela angústia saísse do peito o mais rápido possível. Nada conseguia amenizar o aperto no coração quando você presencia tanto sacrifício humano e sofrimento.
O Amapá é um dos maiores produtores de pescado do país, vende-se peixe e camarão em quase toda esquina. Sem energia e gelo para conservação, muitos comerciantes do mercado informal, salgaram os peixes para garantir, pelo menos, a alimentação da própria família. Mas o cheiro era insuportável.
Meu irmão, dono de um restaurante na cidade, passava horas e horas nas filas dos postos de combustíveis para comprar diesel e garantir o funcionamento do espaço via gerador de energia elétrica. Dois freezers queimaram. No terceiro dia, ele teve que retirar do cardápio os pratos de carne vermelha, o mercado estava desabastecido. Nos frigoríficos, as operações foram encerradas. Os abatedouros estavam sem operar as câmaras frigoríficas. Só era possível oferecer aos clientes as opções de peixe e camarão porque ele encontrou um fornecedor que pescava na hora e vendia ali mesmo.
Eu sou amapaense, nascida e criada em Macapá. Escolhi viver longe para realizar o sonho de ser jornalista em Brasília, mas minha família permanece aqui. Conheço muito bem a cultura ribeirinha porque sou filha de pescador, aprendi a nadar no maior rio do mundo em extensão e volume de água. Tive uma infância muito feliz pulando na maresia do amazonas dos troncos de árvores na beira do rio. Era água em abundância a vida toda e, por isso, jamais fui capaz de imaginar ver meus conterrâneos sofrendo de sede. O rio continua ali, lindo, soberano, banhando a cidade e assistindo seu povo não ter outra opção a não ser esperar pelo poder público. Cabe às autoridades resolver o caos que é o sistema de fornecimento de energia elétrica do Amapá.
Lembro que sempre convivemos com a falta de energia elétrica - faltava de manhã, de tarde ou de noite - e via pela TV que o problema era a falta de estrutura para suportar o crescimento natural de uma cidade. Foi nesta época que peguei o hábito de sempre desligar a sua luz dos cômodos de casa onde não havia ninguém, passava pela tomada e desligava a luz. Fui educada para economizar energia. E assim seguiu por anos e anos.
Encerro esse relato contando um momento em que me ajoelhei para agradecer um feito simples que ouvi da minha mãe ao encontrar com ela depois de passar um dia na rua gravando depoimentos da população "Minha filha, eu tô bem. Bebi um copo de água gelada." No Norte do país, ninguém toma agua natural. Ou é no gelo ou é trincando de gelada.
Francy Rodrigues é jornalista e assessora de comunicação. É amapaense, mas já mora há 21 anos fora. Atualmente vive em Brasília. Está no Amapá a trabalho.
Há uma semana, era improvável imaginar que algo tão inesperado pudesse levar mais de 700 mil famílias à agonia de viver sem água por falta de energia elétrica. No Amapá, as altas temperaturas duram o ano inteiro - em média 34º, mesmo no inverno, quando há maior volume de chuvas mas isso não alivia o calor. Portanto, ventilador e ar condicionado são itens de primeira necessidade. Sem energia o calor ficou insuportável.
Meu primeiro grande impacto com o apagão foi no terceiro dia. Estava na rua trabalhando, não achava água pra comprar e fiquei por mais de 48 horas tomando refrigerante. No quarto dia, tive um desmaio e a pressão arterial foi a 17. Me desidratei. O corpo reagiu e só então percebi que também não estava urinando.
Nos cinco dias em que não havia energia elétrica em lugar algum, andar na rua era como vivenciar cenas de filme. O cansaço estava impresso em rostos com olheiras profundas, pessoas caminhando a passos lentos e com roupas molhadas de suor, porque não havia como se refrescar. Aqui, a umidade fica em torno de 85% quase todo o dia.
O Rio Amazonas corta toda a orla de Macapá. Alguns pontos não são indicados para o banho, mas mesmo assim as famílias entraram na água nas horas de calor mais intenso, por volta de 14h. Nunca se viu tanta gente tomando banho ao mesmo tempo. E as famílias levaram shampoo e sabonete para o banho no rio, além de baldes e baldes para levar água e armazenar em casa.
O armazenamento em casa fez com que a prefeitura de Macapá distribuísse hipoclorito de sódio para que fosse misturado à água imprópria para uso doméstico. O desinfetante ajuda a melhorar a qualidade da água.
A escassez de gelo foi motivo de muita confusão. Com a esperança de tentar conservar alimentos nos freezers e geladeiras, as pessoas saiam às ruas com isopor nas costas à procura de algum lugar para comprar. Na 5ª feira anterior (5), surgiu um caminhão carregado no meio da rua, mas não deu para atender nem metade de quem estava na fila. Houve muito bate-boca e empurrões. Foi uma das cenas mais impactantes até aquele momento.
Mas foi no bairro Perpétuo Socorro, às margens do Rio Amazonas, onde chorei pela primeira vez. Era o terceiro dia de apagão, Uma fila enorme cercava uma padaria, me aproximei pra ver o que era. O dono havia colocado, do lado de fora, vários extensões de energia para que a vizinhança e clientes pudessem recarregar seus celulares e tentar se comunicar com parentes e amigos. Na parede estava outra imagem impactante que me fez desabar: "MÁXIMO, R$ 5,00 DE PÃO POR CLIENTE". Na fila, pais, mães, todo mundo reclamava do limite.
A cena de muitos aparelhos de celular nas extensões de energia se repetiu no aeroporto, o único local público com energia 24 horas. E lá, era comum ver pessoas jogadas no chão para se refrescar na pedra de granito que forma o piso de todo o espaço. Até aquele momento, era no aeroporto que estava o único caixa eletrônico abastecido com dinheiro. Nenhum outro da cidade estava em operação e as filas duravam 24 horas.
O dinheiro acabava muito rápido e levava algumas horas até a reposição. Essa agonia durou 4 dias. Dinheiro em espécie deixou de circular na cidade. As máquinas de cartão não funcionavam sem energia. Os bancos não funcionaram durante o apagão. As prateleiras dos mercados estavam esvaziadas: alimentos que dependiam de refrigeração foram jogados no lixo porque apodreceram muito rápido.
Em muitos momentos eu fechava os olhos para não enxergar uma verdade tão difícil. No domingo, depois de 5 dias de todo esse cenário (a energia parcialmente restabelecida estava em sistema de racionamento, em média 6 horas para cada região), me olhei no espelho e chorei para que aquela angústia saísse do peito o mais rápido possível. Nada conseguia amenizar o aperto no coração quando você presencia tanto sacrifício humano e sofrimento.
O Amapá é um dos maiores produtores de pescado do país, vende-se peixe e camarão em quase toda esquina. Sem energia e gelo para conservação, muitos comerciantes do mercado informal, salgaram os peixes para garantir, pelo menos, a alimentação da própria família. Mas o cheiro era insuportável.
Meu irmão, dono de um restaurante na cidade, passava horas e horas nas filas dos postos de combustíveis para comprar diesel e garantir o funcionamento do espaço via gerador de energia elétrica. Dois freezers queimaram. No terceiro dia, ele teve que retirar do cardápio os pratos de carne vermelha, o mercado estava desabastecido. Nos frigoríficos, as operações foram encerradas. Os abatedouros estavam sem operar as câmaras frigoríficas. Só era possível oferecer aos clientes as opções de peixe e camarão porque ele encontrou um fornecedor que pescava na hora e vendia ali mesmo.
Eu sou amapaense, nascida e criada em Macapá. Escolhi viver longe para realizar o sonho de ser jornalista em Brasília, mas minha família permanece aqui. Conheço muito bem a cultura ribeirinha porque sou filha de pescador, aprendi a nadar no maior rio do mundo em extensão e volume de água. Tive uma infância muito feliz pulando na maresia do amazonas dos troncos de árvores na beira do rio. Era água em abundância a vida toda e, por isso, jamais fui capaz de imaginar ver meus conterrâneos sofrendo de sede. O rio continua ali, lindo, soberano, banhando a cidade e assistindo seu povo não ter outra opção a não ser esperar pelo poder público. Cabe às autoridades resolver o caos que é o sistema de fornecimento de energia elétrica do Amapá.
Lembro que sempre convivemos com a falta de energia elétrica - faltava de manhã, de tarde ou de noite - e via pela TV que o problema era a falta de estrutura para suportar o crescimento natural de uma cidade. Foi nesta época que peguei o hábito de sempre desligar a sua luz dos cômodos de casa onde não havia ninguém, passava pela tomada e desligava a luz. Fui educada para economizar energia. E assim seguiu por anos e anos.
Encerro esse relato contando um momento em que me ajoelhei para agradecer um feito simples que ouvi da minha mãe ao encontrar com ela depois de passar um dia na rua gravando depoimentos da população "Minha filha, eu tô bem. Bebi um copo de água gelada." No Norte do país, ninguém toma agua natural. Ou é no gelo ou é trincando de gelada.
Francy Rodrigues é jornalista e assessora de comunicação. É amapaense, mas já mora há 21 anos fora. Atualmente vive em Brasília. Está no Amapá a trabalho.
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