Jornalista palestina fala sobre resiliência em Gaza: 'Somos como as flores que desabrocham entre os escombros'
Ao SBT News, Huda Skaik relata o fim da guerra, o início de uma nova vida após o frágil cessar-fogo e a importância do trabalho jornalístico no enclave
Sofia Pilagallo
Flores que desabrocham entre os escombros. Esta é a metáfora usada pela jornalista Huda Skaik, de 20 anos, natural da Faixa de Gaza, para descrever a si própria e a seus conterrâneos, capazes de se reerguer múltiplas vezes, mesmo em meio à destruição. Após dois anos de guerra, Gaza foi reduzida a cinzas e a população chora por seus entes queridos, mortos pelas forças israelenses. Ao todo, foram quase 70 mil vítimas fatais, a maioria civis.
Um cessar-fogo entre Israel e Hamas, mediado pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, entrou em vigor em 10 de outubro. Apesar da trégua, Israel violou o acordo e voltou a bombardear Gaza em momentos pontuais, sob a alegação de que o Hamas não estaria cumprindo com sua parte do acordo. Ao menos 236 palestinos foram mortos nesses ataques, segundo o Ministério da Saúde de Gaza.
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De um "coworking space", uma espécie de escritório compartilhado aonde as pessoas vão para se conectar à internet em Gaza, Huda falou ao SBT News sobre o fim da guerra, o início de uma nova vida após o frágil cessar-fogo e a importância do trabalho jornalístico no enclave, onde 252 jornalistas foram mortos enquanto trabalhavam. Como a conectividade no território é precária, o tempo da conversa foi limitado a 30 minutos.
Jornalista freelancer e apaixonada por literatura e poesia, Huda tem textos publicados em veículos renomados, como o portal The Intercept e a rede de notícias Al Jazeera. Ela também é membro da organização "We Are Not Numbers", que dá voz a jovens escritores palestinos, e estudante de literatura inglesa na Universidade Islâmica de Gaza, que seguiu funcionando remotamente.
Mesmo em meio à guerra, o trabalho de Huda não parou. Ela teve de interromper os estudos e o trabalho entre janeiro de 2024 e janeiro de 2025, quando morou em uma tenda no sul de Gaza, após ter sido forçada a se deslocar. Ela retomou suas atividades assim que voltou para casa — ou o que sobrou dela. Por ser uma das poucas jornalistas atuantes naquela localidade específica, a jovem se sentiu na responsabilidade de relatar o que via.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
Como foi sobreviver em Gaza nesses últimos dois anos sob intensos bombardeios e deslocamentos forçados?
Sobrevivi fisicamente, porque meu corpo não sofreu nenhum dano — mas minha saúde mental, assim como a de todos os palestinos de Gaza, está abalada. Nunca esqueceremos as coisas que testemunhamos nesse genocídio. As memórias permanecerão conosco para sempre.
Sempre dizemos aqui em Gaza que aqueles que morreram foram os que sobreviveram, porque agora estão em um lugar melhor do que nós. Nós estamos lutando a cada momento.
Sim, a guerra acabou agora, mas uma nova batalha teve início. Não há casas para as pessoas. Elas estão nas ruas, em tendas. Muitas passam fome e foram obrigadas a se deslocar. Tudo está destruído. Apesar disso, Gaza ainda é a cidade mais bonita do mundo, para mim.

Você consegue ver beleza em meio à destruição?
Sim. Sou o tipo de pessoa que busca beleza em tudo que não é bonito. Mesmo em meio a um genocídio, eu reservava um tempo para assistir ao pôr-do-sol. Era algo hipnotizante. É realmente estranho ter um momento de conforto em meio a tanta matança.
Os bombardeios sempre interrompiam minhas fotos. Ainda assim, há muita beleza em Gaza — no pôr-do-sol, no céu estrelado, nos livros, nos momentos em que ouço música no fone de ouvido.
Há flores que desabrocham em meio aos escombros. Acho que essas flores somos nós, os palestinos, que sempre nos reerguemos de novo e de novo, mesmo em meio à destruição. Somos como a fênix que renasce das cinzas. Amamos a vida, embora estejamos marcados pela morte.
Israel violou o cessar-fogo em diversos momentos desde 10 de outubro. Como você tem lidado com essa questão? Você tem medo de que o acordo não seja mantido?
Houve muitas violações do cessar-fogo na semana passada, mas duas delas foram particularmente graves. Uma ocorreu durante o dia, no sul de Gaza. Acho que foi num café.
E a outra foi à noite. Eu estava fora e, quando voltei para casa, o cessar-fogo foi rompido de repente. Aquela noite em particular foi muito intensa. Houve muitos ataques aéreos em várias áreas da Cidade de Gaza. Senti como se o genocídio estivesse em curso novamente. Todas as emoções voltaram.
E não, não me sinto segura com esse cessar-fogo, nem tenho certeza de que vai ser mantido. As forças de ocupação israelense são conhecidas por violar cessar-fogos. Mas nós realmente esperamos que ele dure.
Bombardeios israelenses mataram quase 70 mil palestinos em Gaza desde 7 de outubro de 2023. Como você se protegeu?
Não é possível escapar da morte. Segundo a crença islâmica, a data da morte de cada pessoa é pré-determinada por Alá [Deus]. Tentei ao máximo me manter segura, mas saía bastante com meu irmão para me conectar à internet porque tinha muitos trabalhos para entregar.
Sempre havia muito perigo ao nosso redor. Os tanques estavam sempre por perto, especialmente desde a última invasão [em 16 de setembro, o exército israelense iniciou uma nova ofensiva na Cidade de Gaza]. Do mês passado até o início do cessar-fogo, sair de casa se tornou muito perigoso. Os quadricópteros [drones com quatro hélices adaptados para usos militares] atiravam o tempo todo. Até olhar pela janela era perigoso.
Mas arrisquei minha vida para enviar meus artigos, para que as pessoas soubessem o que estava acontecendo. Porque basicamente todos os jornalistas e fotojornalistas estavam no sul de Gaza. Havia poucos jornalistas no norte de Gaza, e eu era um deles. Então, me senti na responsabilidade de cobrir os eventos que estávamos testemunhando.

Como e quando surgiu seu interesse pela escrita?
Comecei a escrever em junho de 2024, por sugestão de um amigo. Escrevi narrativas, artigos e opiniões — e tive muito impacto.
As pessoas me mandam mensagens dizendo que minha voz é ouvida e está viajando mundo afora. Foi isso que me manteve firme. Encontrei um sentido para a minha vida em Gaza.
Em julho, me juntei à organização We Are Not Numbers. Então, comecei a escrever poemas e publicá-los no site do grupo, que reúne escritores emergentes da Palestina. Sinto que minha voz é ouvida. Muitas pessoas me conhecem por meio dessa organização em particular.
É como um lar. Sinto que posso compartilhar com os colegas qualquer coisa que eu queira.
Praticamente todas as casas de Gaza foram destruídas ou parcialmente danificadas. Você tem uma casa? Onde você está morando agora?
Para responder a essa pergunta, terei de voltar a fevereiro de 2024, quando minha família e eu fomos forçados a nos deslocar. As forças de ocupação israelenses invadiram nossa casa e nos levaram para um buraco na terra.
Os militares despiram meu pai e meu irmão, os vendaram e amarraram suas mãos e pernas, assim como fizeram com todos os homens levados àquele lugar. Então, fizeram uma investigação que durou cerca de sete horas — das 16h às 23h.
Os soldados concluíram que éramos civis e nos disseram que, tudo aquilo que fizeram conosco, fariam com todas as pessoas em Gaza. Então, nos pediram para ir para o sul. Fomos a pé e caminhamos descalços à beira-mar.
Moramos em uma barraca por um ano. Foi a pior experiência que se pode viver. Você não tem privacidade, não pode fazer nada que queira. Tive que interromper meus estudos. Como iria estudar nessas condições?
Voltamos ao norte de Gaza em janeiro de 2025 e encontramos nossa casa em ruínas. Então, passamos um mês na casa dos meus avós e, em fevereiro de 2025, finalmente encontramos uma casa para alugar. Consegui retomar meus estudos e agora estou no nível 3 [segundo ano] do curso.

Você está estudando em uma universidade?
Sim, mas é um curso online. Todas as universidades estão destruídas aqui. Não há universidades, especialmente depois da última invasão. Se você estivesse aqui, veria que tudo são apenas escombros, apenas escuridão.
Não há sequer escolas. As pessoas não podem ter seus filhos educados por causa desse genocídio. As preocupações das pessoas agora não são com educação, são com as filas de água e de comida.
Acho que o que vivemos moldou cada pessoa em Gaza, especialmente as crianças. Acho que elas se sentem mais velhas agora do que realmente são. Nesses últimos dois anos, sinto como se tivesse envelhecido 50 ou até mesmo 100 anos.

Além da sua casa e dos anos perdidos, o que mais a guerra tirou de você?
Perdi três de meus primos. Há menos de um mês, a esposa do primo do meu tio e seus dois filhos também morreram. Um deles era só uma criança de 10 anos. O outro tinha 18 anos.
Perdi também muitos colegas jornalistas, colegas da universidade e um de meus professores. O nome dele é Refaat Alareer. Não sei se você o conhece — ele era bem famoso.
Em cada lar aqui, há uma perda. Mas todos aqueles que morreram permanecem vivos em nossa memória.
A vida retomou alguma normalidade desde que o cessar-fogo entrou em vigor?
Sinto que perdi partes de mim nessa guerra. Cada perda, cada deslocamento, tudo isso me ensinou muito. Estou tentando respirar a vida de novo. Existe uma rotina, uma rotina linda. Eu acordo e me sinto mais segura. Não há bombardeios. Há comida.
Antes de me levantar da cama, leio um livro e começo a escrever meus artigos. Então, carrego meu celular e vou ajudar minha mãe com alguma tarefa doméstica.
Não há gás por enquanto, então usamos lenha. Levo cerca de 30 minutos para ferver um pouco de água e passar um café.
Depois, saio para caminhar. Adoro caminhar e me sinto segura agora, ao fazê-lo. Tenho a possibilidade de sair quando quero. Encontro meus amigos todos os dias.
À noite, sempre leio livros, escrevo e verifico minhas redes sociais.
Qual foi um alimento que você comeu depois do cessar-fogo que não comia há muito tempo?
Frutas. Ontem [22 de outubro] comi uma maçã tão deliciosa que senti como se não comesse há séculos.
Frango também. Tem um frango muito saboroso aqui na cidade, mas é muito caro. As pessoas não podem pagar por ele.
Eu estava com muita vontade de comer frango, então comprei um shawarma [prato popular do Oriente Médio que consiste em carne assada e fatiada em finas camadas, servida dentro de um pão árabe]. Custou o equivalente a US$ 20 (R$ 107,50). Dá para imaginar?
Agora temos acesso também a salgadinhos e chocolate. Tem muita coisa, mas tudo é muito caro. Felizmente, tenho um dinheiro guardado, então posso me dar esses mimos de vez em quando.
Quais são seus próximos passos? Está trabalhando em alguma história atualmente?
Estou escrevendo muitos artigos. Há muitas histórias nos bastidores. Como eu disse, a guerra acabou, mas a verdadeira luta começa agora.
Há muitas histórias que precisam ser ouvidas. Ontem [22 de outubro] entrevistei um agente da Defesa Civil. Ele me informou que as autoridades ainda estão recolhendo pessoas sob os escombros, e que são apenas crânios. Não há equipamentos pesados, então eles estão tendo que fazer esse trabalho com as próprias mãos.
Segundo o agente, cerca de dez mil pessoas seguem sob os escombros. Então, ainda há muitas histórias a serem contadas.









