Despedida, massacre e resistência
Palavras em destaque no dicionário das guerras se tornaram uma rotina para ucranianos
Sérgio Utsch
Já são quase 7 da manhã de sábado. Casais se abraçam apaixonados no centro de Kiev. Não é o fim de uma noite de sexta. É o início do turno militar para muitos jovens que partem para a frente de batalha. É um até logo que, em muitos casos, será uma despedida. Alguns deles nunca mais se verão novamente.
Estamos na estação central da capital ucraniana, a caminho do leste do país, onde os confrontos mais violentos acontecem no momento. Embarcamos no trem das 7:13 rumo a Dnipro, que será nossa base no fim de semana.
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O trem é mais espaçoso do que muitos no Reino Unido. São 6 horas de viagem, quase o mesmo tempo que se gasta de Londres a Edimburgo, na Escócia. Na Ucrânia, porém, os passageiros têm mais conforto e gastam menos dinheiro no deslocamento. Bem-vindos ao país e à era das contradições!
Faz muito frio lá fora. Da janela, as paisagens passam aceleradas, mas a imagem da neve está em todos os quadros. As baixas temperaturas impedem que o gelo desapareça, ainda que a última nevasca tenha sido há quase 2 semanas.
A neve está para as paisagens da Ucrânia como Bucha estará pra sempre na história desse conflito. A cidade fica a menos de uma hora de carro de Kiev e foi palco de uma dos episódios mais violentos desde o início da grande invasão, em fevereiro do ano passado.
Logo que chegamos, fomos à Igreja de Santo André, um templo ortodoxo em cujo terreno os próprios moradores fizeram enterros improvisados de familiares, amigos, parentes ou de um desconhecido deixado sem vida no meio da rua. 116 corpos foram retirados da cova coletiva.
Só em Bucha, mais de 650 pessoas foram mortas a tiros em menos de 1 mês. A Procuradoria de Justiça da Ucrânia e a Comissão da ONU criada para investigar o massacre recolheram fartas evidências de crimes de guerra cometidos pelas tropas russas no município de pouco mais de 30 mil habitantes.
As tropas de Vladimir Putin entraram na cidade entre 25 e 27 de fevereiro do ano passado. Já tinham uma lista com nomes de pessoas a serem presas. Eram militares ou aqueles considerados irremediavelmente ucranianos.
Na cova da Igreja de Santo André, nos jardins das casas e nas ruas, os peritos retiraram dezenas de corpos com sinal de tortura e execução. Muitos foram assassinados apenas porque levantaram a suspeita dos invasores.
Tivessem passado daquele lugar, os russos teriam caminho aberto para Kiev. Poderiam, como planejaram, entrar e dominar a capital, não fossem vários erros estratégicos. Um deles, talvez o principal, foi começar a marcha para a capital por uma pequena rua, onde não cabem mais que 2 carros.
A pequena via de mão dupla foi o lugar perfeito para a emboscada preparada pelos ucranianos. A batalha final de Bucha definiu o recuo dos russos e mostrou a Moscou que a conquista de Kiev foi um objetivo muito otimista e pouco realista.
O que aconteceu ali é essencial para entender as táticas usadas pela Rússia, o despreparo de seus soldados para lidar com a resistência ucraniana e o mal desenhado plano de Moscou para a conquista de Kiev. Bucha é um pontinho discreto no mapa, um subúrbio de uma grande cidade. Nos livros, será um dos capítulos principais da história desse conflito.