"Não é fácil crescer vendo não muçulmanos dizerem como é a minha vida"
Moradora de Doha, a historiadora Paula Djanine apresenta outra perspectiva sobre a mulher no Islã
Sérgio Utsch
Mineira, de família evangélica, Historiadora formada pela Universidade de Brasília, 27 anos, Paula Djanine escolheu um caminho bem distinto da maioria das mulheres de sua geração. Ainda adolescente, converteu-se ao islamismo. Enfrentou resistência da família no início, mas hoje diz que os pais "dão um show de tolerância".
Bolsista de universidades do Catar, ela mora em Doha há quatro anos. Fala do país como se fosse a sua casa e demonstra ter grande sintonia com os valores locais. Vaidosa, gosta de escolher os melhores ângulos para as fotos que publica em suas redes sociais e diz que "as mulheres cataris tem muito mais liberdade do que se pensa no exterior", o que contradiz um relatório da organização "Human Rights Watch", publicado em março do ano passado e que pode ser lido aqui: https://www.hrw.org/news/2021/03/29/qatar-male-guardianship-severely-curtails-womens-rights.
Paula fala pouco sobre sua vida pessoal e evita criticar o governo do Catar, acusado da violação de direitos humanos dos trabalhadores envolvidos na Copa do Mundo e de perseguir a comunidade LGBTQIA+. A mineira traz uma outra perspectiva sobre o Islã e sobre como é ser uma mulher islâmica num país como o Catar.
Ela recebeu o SBT News na casa onde está morando em Doha. A entrevista foi gravada no majlis, ambiente geralmente destinado aos homens, onde ela nos serviu chá, biscoitos e chocolate. Paula vestia uma abaya, traje feminino típico do Golfo e um hijad, pra cobrir a cabeça. Ela pediu pra gravar a conversa porque desconfia de jornalistas. "Gato escaldado tem medo de água fria, né?". Segue a íntegra da entrevista com a brasileira.
De onde vem a sua desconfiança com jornalistas? Qual é o seu principal incômodo?
Eu acho que as pessoas tem uma visão muito distorcida que foi reproduzida pela mídia por muitos anos do que é o islamismo, do que é uma mulher muçulmana. Eu sou uma mulher muçulmana. Então, quando eu venho e falo a minha história, a gente espera, assim, (que as pessoas entendam que) essa é a vida que eu vivo. Então é uma história que a gente espera que seja respeitada porque não é fácil crescer vendo pessoas que não são muçulmanas, que não moram aqui, não são mulheres aqui, me falarem como é a minha vida aqui porque eu sei como é a minha vida aqui.
Qual é a sua história? Você vem de Minas Gerais, de uma família evangélica. Como você se tornou muçulmana e veio parar no Catar?
Eu sou mineira, sou de Belo Horizonte. Minha família é toda cristã. Eu me converti quando ainda era muito nova.
Qual idade?
Eu ainda era pré-adolescente, não me lembro exatamente, acho que uns 14 anos. Inicialmente sempre tem aquele estranhamento mesmo. Meus pais hoje são um exemplo de tolerância porque eles viram o que é o islã, o que eu vivo, o que eu acredito, coisas que eu pratico. Eles viram de perto e dão um show de tolerância.
Como você veio parar no Catar?
Eu vim pro Catar em 2018 pra estudar a língua árabe. Eu queria muito aprender o árabe. Eu já tava imersa tanto academicamente - me formei em História na UNB (Universidade de Brasília) - quanto no meu trabalho. Eu trabalhava no Itamaraty, na divisão de países do Golfo. Eu já estava muito imersa na cultura do Golfo, queria muito melhorar meu árabe. Então eu me inscrevi pra estudar na Qatar University e eu ganhei uma bolsa de 100% e vim pra cá estudar. Posteriormente, eu ganhei uma outra bolsa pra fazer meu mestrado aqui na Hamad Bin Khalifa Universtity, onde estudei estudos islâmicos e me formei recentemente.
Minha vida como mulher é incrível.
No Catar, há restrições que são típicas dos países islâmicos. Qual o direito que os homens tem que você não tem? Qual o seu sentimento em relação a isso?
Primeiramente, falar dos países islâmicos como se fosse uma entidade geral, eu acho uma coisa extremamente perigosa. O nível de diferença é absurdo. São muito diferentes. É impossível comparar países como o Catar com outros países que estão em outros continentes, falando outras línguas, que sequer são países árabes. No Catar, a minha vida como mulher, sendo honesta, é incrível. O Catar é um dos países com maior índice de educação entre mulheres. As mulheres aqui correspondem a 70% nas universidades. Além disso, é um dos únicos países que também garantem equidade salarial em cargos do governo e é um país muito seguro pra se viver. Sendo brasileira, é algo que fez muita diferença na minha vida. O fato de que eu posso sair de madrugada, a qualquer momento, sem sentir medo, sem sentir nenhum receio, é muito tranquilizador.
Nas leis do Catar, para as mulheres, há algumas coisas que chamam a atenção, como o fato de elas precisarem de autorização do pai, do marido ou do irmão mais velho pra ter acesso a certos empregos, a certos tipos de estudo...
A questão é que essas leis existem, mas existe uma diferença muito grande em todos os países do mundo entre as leis e a vida prática. Como historiadora, isso é uma coisa que a gente vê em muitos locais. Por exemplo, tem estados nos Estados Unidos onde é crime dormir de sapato. É uma coisa absurda que ninguém está colocando em prática. Essas são leis que no Catar não são colocadas em prática. A gente vê isso no reflexo da realidade. As mulheres cataris estão viajando para o exterior. Você ver qualquer uma no Instagram. Estão viajando, estão estudando, são maioria nas universidades, estão tendo postos altos de emprego. Hoje em dia, a gente tem um recorde no país e na região do Golfo sobre mulheres cataris que são empreendedoras. Hoje em dia, elas correspondem a 20% dos empreendedores do país. Você pode olhar pra esse número e dizer que é baixo, mas para a realidade do Catar, é um número alto porque é um país que, pela lei mesmo, a mulher não precisa trabalhar. Ela não tem obrigação financeira nenhuma. O marido dela é 100% responsável por ela. Mesmo em caso de divórcio, o marido tem que sustentá-la até pelo menos um certo número de anos. Em geral, são 10, 15 anos. Então, em um lugar onde a mulher não tem a necessidade de trabalhar por sobrevivência, chegar aos 20% de mulheres que são empreendedoras é um passo muito grande. São mulheres que estão desenvolvendo sua própria independência financeira.
O que você está dizendo é que, na maioria dos casos, essas leis são mera formalidade?
É uma formalidade. Eu sempre viajei, sempre estudei aqui e nunca precisei de autorização de nada. Minhas amigas que são cataris, a mesma coisa. Quando eu converso com elas sobre o assunto, elas falam que de fato é uma coisa que existe no papel. Hoje em dia, a gente tem um esforço muito grande, liderado inclusive pela Sheikha Mozah, que é a mãe do atual Rei do Catar. Ela tem um projeto de educação. Ela criou a Cidade da Educação, que é uma cidade apenas focada em educação. Ela trouxe as maiores universidades do mundo. Ela acredita no poder transformador da educação. E ela vem fazendo mudanças no país, já há muitos anos, com a intenção de ter uma equidade entre homens e mulheres. Claro que nenhum país é perfeito. Todos os países tão caminhando. Mesmo no Brasil, há muita desigualdade ainda. Mas estamos caminhando. O Catar também é um país que caminha pra isso. Existem debates dentro do país. Os homens e as mulheres estão falando sobre isso. As mulheres estão fazendo avanços. As mulheres estão entrando em posição de liderança. Ter a imagem da Sheikha Mozah quase que liderando o país também vem trazendo mudanças positivas para o país, o que é incrível, mas como em todos os países, eles (os cataris) ainda estão em uma caminhada.
A norma social é que as mulheres cataris têm muito mais libedade do que se pensa no exterior.
Mas existem famílias mais conservadoras em que os hábitos são, digamos, mais antigos...
Vão existir, como em todo lugar do mundo. A gente tem no Brasil, no interior, em algumas cidades, pais que proibem as filhas de saírem de casa, de fazerem uma coisa ou outra. Porém, não é a norma social. O que conta é como é a norma social. As exceções não fazem um país. A norma social é que as mulheres cataris tem muito mais liberdade do que se pensa no exterior.
Há um relatório recente da Human Rights Watch, que é um relatório muito pesado sobre a situação das mulheres cataris. Você leu essa relatório?
Eu li.
Tem erros neste relatório, na sua opinião?
Eu não sou especialista em nada disso. A única coisa que eu posso afirmar é sobre a minha experiência e a experiência das minhas amigas, das pessoas com quem eu convivo. E conversando com todas elas, essa não é a realidade que eu observo. Não tô dizendo que não existe, mas não é a realidade que eu vivo, que eu vejo dos ambientes que eu vivo. Eu estudei na Universidade do Catar, que é basicamente de cataris, poucos estrangeiros estudam lá e não foi a realidade que eu vi tendo tantas amigas nativas.
Nas mesquitas têm espaço para as mulheres e outro para homens. Nos restaurantes, tem espaços para as famílias. Você é uma mulher solteira no Catar. Quais são as limitações que você tem, ainda que você esteja confortável com elas. Tem algo que você não pode fazer porque é uma mulher?
Na minha vida, não tem nada. Não que eu me lembre. Existem restrições no país, por exemplo, as mulheres (não muçulmanas) seguem um código de vestimenta, que deve cobrir até os joelhos e os ombros. Não precisa usar véu, não precisa cobrir os braços, nem as pernas. Eu sou muçulmana, portanto eu me cubro. Então, são restrições que se aplicam a outras mulheres e não a mim. Apesar de que se você sair na rua, mesmo fora da Copa do Mundo, você vai ver que está todo mundo usando todo tipo de roupa e ninguém faz nada. São coisas mais no papel, que existem, mas na minha vida pessoal, genuinamente, eu não me recordo de nenhuma restrição.
Nos contaram que há mulheres cataris que saem de casa cobertas e chegam à praia e colocam biquini. É verdade isso?
Eu nunca vi isso na minha vida. Eu acho muito difícil de acontecer. Acho que isso é boato. Existem muitas mulheres cataris que vão para o exterior e não usam o hijab e nem a abaya, que é esse vestido tradicional por questões até mesmo culturais, porque é um artefato religioso, mas é também um artefato cultural porque a religião é uma parte integrante da cultura. É a cultura do local. Toda a família dela está vestida assim, está todo mundo vestido assim. Não há uma proibição. Conheço amigas cataris que não se vestem assim, que não usam véu. Elas não são obrigadas. Porém, é algo cultural também. Então quando elas vão para o exterior, elas vão usar calça jeans ou algo assim, uma roupa d?iferente que elas não vão usar aqui porque não faz parte da cultura, não faz sentido. Da mesma forma que as minhas roupas acabam mudando no Brasil. Eu sempre uso véu.
Aqui uso abayas pretas. Faz com que eu me sinta incluída. No Brasil, faz com que eu me sinta excluída.
Você usa véu no Brasil?
Eu uso véu no Brasil. Aqui, por exemplo, eu uso muitas abayas pretas, que são essa roupa tradicional. No Brasil, não faz parte da cultura, não faz sentido. Aqui faz sentido, faz com que eu me sinta incluída. No Brasil, faz com que eu me sinta excluída. Então, vou usar outras roupas.
Nós estamos em um ambiente tipicamente masculino, certo?
Sim, é uma sala em que os homens geralmente se reunem pra discutir, pra debater, pra deixar a casa livre para as mulheres.
É muito errado pressupor que as pessoas são ruins em qualquer lugar do mundo.
O conceito disso não te incomoda, de um lugar onde só os homens podem ficar?
De jeito nenhum. Nós temos a casa inteira. As mulheres se reunem na casa e elas ficam sem véu, pra conversar, para debater, e os homens ficam nessa sala, mesmo para não incomodá-las, não ficarem indo lá o tempo inteiro. Eles ficam com uma salinha. A gente fica com a casa inteira. Você viu o tamanho das casas? Eu acho que se os brasileiros pudessem vir experimentar mesmo como é a vida de uma nativa, ficar um tempo em uma casa, eles veriam, primeiramente, que somos todos seres humanos. Está todo mundo feliz, vivendo a vida, e com seus afazeres. É muito errado pressupor que as pessoas são ruins em qualquer lugar do mundo, tipo com os homens: "Vamos nos reunir aqui e proibir as mulheres de entrarem, porque somos ruins". Não faz sentido! Em geral, há um acordo. As coisas funcionam como um acordo de todas as partes.
Algo que tem sido bastante debatido nessa Copa do Mundo é a questão LGBTQIA+. Qual é a sua visão sobre isso tendo vindo de um país como o Brasil, que tem uma cultura completamente diferente da do Catar. O que você pensa disso?
Primeiramente, vou deixar claro, não sou especialista nisso. Tudo o que eu estou falando aqui são as coisas que eu vivo e vejo.
Existem gays no Catar. Vão existir em qualquer lugar do mundo.
Estou perguntando pra Paula, que vem de uma cultura ocidental, é muçulmana, é brasileira. É uma opinião o que eu queria ouvir. Fique à vontade se não quiser falar sobre isso.
Existem gays no Catar. Vão existir em todos os lugares do mundo. Pela lei, é proibido. Porém é uma lei que na história do país nunca foi implementada. Isso já diz muita coisa. Por quê? Porque não tem gay ou porque ninguém liga? Porque ninguém está ligando. Eu conheço vários cataris gays e tá todo mundo vivendo a vida normal.
Mas não podem se colocar socialmente como gays...
Não. Eles não se colocam socialmente como gays. Da mesma forma, afetos não são discutidos publicamente no Catar, mesmo entre casais heteressexuais. A gente não vai ver demonstrações de afeto entre casais heteressexuais nas ruas. Então, fica basicamente no mesmo. E mesmo assim, o Catar é um país muito seguro em geral, não estou falando da questão LGBT. Eu estou falando que é um país seguro em geral e isso acaba influenciando no sentido de que é proibido pela lei, mas crimes de ódio são muito raros, não vão acontecer. Eles são gays e estão vivendo a vida deles. Todo mundo sabe, em geral.
Todo mundo sabe, inclusive as autoridades?
Todo mundo sabe. As autoridades não tem nem o que fazer. Vai fazer o quê?
Então porque essa reação do país? É algo surpreendente porque houve protestos relacionados à situação política no Irã, houve protestos pra lembrar a questão dos trabalhadores (que morreram na construção da infraestrutura da Copa), mas esse assunto específico me parece que causa um incômodo maior.
Causa, com certeza. O Catar é um país islâmico. Isso não quer dizer que é um país perfeito, nem com leis perfeitas. Mas é um país que está seguindo interpretações islâmicas. Então, relações entre pessoas do mesmo gênero são consideradas pela maior parte dos sábios islâmicos como sendo pecado. Portanto, elas não são permitidas no país.
Você vê dessa maneira?
Isso não quer dizer que há uma perseguição de gays no país porque não há. Não que eu veja.
Não na sua bolha...
É um assunto que eu de fato não domino. São as coisas que eu observo vendo cataris que são gays, observando a vida deles. Por exemplo, eu tenho um amigo catari que é gay e ele comenta que ele se sentiu com muito mais medo em uma viagem aos Estados Unidos, com medo de que talvez o matassem porque há locais com muita perseguição, homofobia, enquanto ele falou que no Catar as pessoas apenas fecham os olhos e fingem que não estão vendo. Mas ele não teme pela vida dele como ele temeu nos Estados Unidos, onde as pessoas foram mais agressivas em cima dele.
Eu vou encerrar esse assunto agora, mas queria fazer uma última pergunta. Quando você diz que as pessoas fecham os olhos e fingem que não estão vendo, isso em qualquer sociedade também não é algo ruim? Ignorar o que as pessoas são?
Talvez seja.
Você concorda com isso?
Pessoalmente, eu não me sinto no meu local de fala para falar sobre isso. Honestamente, eu não sei. Eu não tenho uma opinião.
A gente vai ver o Catar se abrindo cada vez mais
Futuro, Paula. Esse país tá se projetando para o mundo como nunca. Você tem uma noção geopolítica do Catar. Como você vê no futuro esse país se abrindo ainda mais?
Com certeza. O Catar está em processo de abertura há muito tempo, assim como todos os outros países do Golfo. É um processo natural que está acontecendo no mundo. Os países estão se abrindo, claro, respeitando sua própria cultura. Eles tão se abrindo de forma a respeitar a cultura de cada um, o que eu acho lindo. Acho muito bonita a forma como o Catar está se abrindo, está recepcionando os estrangeiros que estão chegando aqui. Todos com quem eu conversei estão se sentindo bem-vindos e eu acho que isso é uma tendência. O país já vem mostrando há muito tempo, há mais de uma década que o país tem sim sonhos em se abrir, em se internacionalizar, em dialogar com outros países da região e de fora também. Eu acho que essa é uma tendência que vai continuar. A gente vai ver o Catar se abrindo cada vez mais pra diálogos.
É um ponto de arrogância a Europa vir com o papel de salvadora sem perguntar se aqui tem alguém precisando salvação.
Você vê uma certa arrogância da Europa e até de países sobre o Brasil em relação ao Catar?
Com certeza. Primeiramente, eles falam isso sem de fato vir aqui perguntar para um grupo de mulheres como é estar aqui, como é viver aqui. Eles falam com a opinião deles mesmos. É um ponto de arrogância a Europa vir com o papel de salvadora sem perguntar se aqui tem alguém precisando de salvação. A Europa acusa os países do Oriente Médio - e as críticas são válidas, não digo que não são - mas são acusações de coisas que eles mesmos são culpados muitas vezes. O Brasil acusando o Catar da questão das mulheres, mas o Brasil é um país que mais mata mulheres no mundo. O Brasil é um dos países que mais matam gays no mundo, onde os crimes de homofobia são enormes. Questões por exemplo de trabalho escravo. Nós (brasileiros) consumimos majoritariamente produtos originários de trabalho escravo na China. Está todo mundo aqui usando a sua camisa de futebol europeu que foi feita por pessoas em geral do Paquistão, da China, recebendo salários ridículos, às vezes de 1 dólar por dia. Então, com certeza parte de um ponto de arrogância muito grande, de se achar superior, achar que o Ocidente tem que ensinar lições ao Oriente o tempo todo porque eles estão nesse ponto de superioridade, trazer a civilação para um povo que já está caminhando com as suas próprias pernas. Inclusive eu faço parte aqui no Catar de um grupo só de locais, que se encontram pra debater direitos trabalhistas no Catar, principalmente funcionários domésticos no Catar e no Kwait. São locais debatendo isso, trazendo esses assuntos à tona. Porque não está aqui todo mundo calado. São seres humanos pensantes, pensando sobre isso, debatendo direitos humanos. Há vários grupos feministas trazendo a temática dos direitos das mulheres. São assuntos que os locais estão tomando conta. Eles estão falando sobre isso, eles estão se decidindo, o país está fazendo avanços. O Catar teve as primeiras eleições muito recentemente. O Catar é uma monarquia, não tem eleições, mas recentemente a gente teve as eleições para o Congresso e mulheres, por exemplo, puderam concorrer junto com os homens a postos no Congresso. São passos que o país vem tomando por si só, sem a necessidade de europeus, de americanos virem aqui pra obrigá-los a fazer isso. Então, o país está caminhando para uma abertura, uma abertura que é política, econômica, social e ele tem as condições de fazer isso sozinho.
Com todos os defeitos do Brasil, você vem de uma democracia. Não é o caso do Catar. Isso te incomoda de alguma maneira?
São sistemas políticos diferentes, mas eu também acho que são coisas que a gente deve perguntar para os locais, para quem está vivendo aqui, principalmente para os cidadãos cataris. O que eles pensam disso? O que eles pensam de estarem vivendo sob uma monarquia?
Qual a sua impressão sobre o que eles pensam?
É uma monarquia que está oprimindo os seus cidadãos ou está tentando fazer o melhor por eles? Isso é uma coisa que você pode observar nas ruas, vendo que todo mundo cola no carro o rosto do Rei. Se você tentar falar mal do Rei, não é ele quem vai vir aqui te punir. Os cataris vão ficar com raiva. Eles tem um amor muito grande pela Família Real. É uma família que vem trabalhando para o país se desenvolver. Há problemas como qualquer outro sistema político. O Brasil é uma democracia e isso não quer dizer que estamos isentos de tantos problemas que estão acontecendo no país. Então, cada país tem os seus próprios problemas, os seus próprios defeitos. O Catar tem problemas diferentes dos do Brasil, com certeza. Mas ambos tem problemas e ambos tem pontos positivos. O Catar é um excelente país pra se morar. Mesmo os ocidentais, outras brasileiras que eu conheço aqui, amam morar aqui. É um país seguro de se morar, é um país bonito, é um país onde as pessoas são generosas. Se você tiver a experiência de ir à casa de um local, você vai perceber que as pessoas são muito generosas e fazem com que eu me sinta acolhida.
Mas você vive em uma bolha. Você é muçulmana, você está aqui fazendo um mestrado. Você tem um tipo de inclusão diferente porque a maioria dos imigrantes não tem vida fácil...
O que em parte é positivo pra mim porque eu consigo ver o lado dos nacionais. A maioria dos estrangeiros que vive aqui não tem amigos cataris. É difícil entrar na bolha dos cataris. Eu falo a língua árabe. Eu tenho amizade com eles, estudei numa faculdade que é basicamente só de cataris. Então eu consigo ver as coisas da perspectiva das pessoas que são locais, que estão vivendo desde o dia que nasceram sob essas leis e vão continuar. Mas, com certeza, são (realidades) completamente diferentes. Da mesma forma que, se no Brasil, você conversar com uma pessoa que é CEO de uma empresa ou conversar com uma empregada doméstica em uma favela do Rio de Janeiro, elas vão ter experiências de vida completamente diferentes. Eu estou numa experiência de vida em um ponto privilegiado. Eu tive acesso à educação, eu vivo com pessoas que têm e tiveram acesso à educação e existem muitos trabalhadores que vem para o Catar pra fazer trabalho braçal, em outros tipos de serviço e, de fato, eu não tenho convivência.
Para a gente encerrar agora. Se um catari ou, enfim, algum homem se interessar por você e quiser te namorar, não sei como são os passos aqui. Você tem namorado?
Muçulmanos, em geral, não namoram. Muçulmanos fazem uma coisa semelhante ao processo de corte, que é conversar, ser amigo. Vocês se conhecem até o momento em que vocês decidem se casar.
Casamento arrajando está cada vez mais em desuso.
No caso do Catar, se for em uma família muito tradicional, ainda tem os casos de casamento arranjado, não?
Hoje em dia, não acontece mais. É uma coisa mais ultrapassada, mesmo nas famílias mais conservadoras. E o casamento arranjado, a gente confunde muito com casamento forçado, como se os pais tivessem forçado duas pessoas a se casarem, o que, em geral, não acontece. Casamento arranjado seria como se uma mãe que conhece alguém que tem uma filha e apresenta para o filho. Mas hoje em dia, tá cada vez mais em desuso.
No seu caso, como funcionaria? A sua família está no Brasil...
Nós conversaríamos, iríamos saír para tomar um café até o momento em que os dois falam 'tá, acho que é legal, a gente consegue conviver bem, temos valores semelhantes'. Aí cada um conversa com a família, as famílias se conhecem e arquitetam o casamento normalmente.
Você já teve algum namorado?
Essa pergunta é muito pessoal. Eu não respondo.
A mulher islâmica não é considerada propriedade do pai ou do marido.
Tem algo mais que você acha importante dizer?
Eu acho interessante falar sobre o direito das mulheres. A gente pensa que os muçulmanos são opressores das mulheres, mas a gente esquece que o Islã liberou ainda no século VII, uma coisa inédita no mundo naquela época, trouxe muitos direitos para as mulheres, como o direito à herança, o direito ao divórcio, que não existiam. As mulheres no resto do mundo, naquela época, não tinham direito à herança, ao divórcio, direitos de possuir propriedades no seu nome. A mulher islâmica não é considerada propriedade do pai ou do marido, apesar de que as pessoas pensam isso. Ela tem o direito de ter a sua própria propriedade, ter herança, de se divorciar, de seguir com a sua própria vida, né.
Isso, obviamente, não acontece em todo o mundo islâmico...
Eu estou falando da religião. Religiosamente, as mulheres têm esse direito. Então, isso se reflete muito na cultura do país também. Isso não quer dizer que todas as mulheres muçulmanas têm esse direito. Somos seres humanos. Não existe um muçulmano perfeito que siga os estudos 100% porque não existe nenhum ser humano perfeito no mundo. Mas são direitos que já foram garantidos desde o século VII e que já existiam aqui. São coisas também que ninguém fala. O Brasil deu o direito ao divórcio para as mulheres muito recentemente, algo que aqui nós tínhamos desde o século VII. Eu acho que falta essa concepção para que a gente tenha uma visão mais equilibrada. Às vezes um país está à frente de outro em uma coisa, mas está atrás em outra. E a gente está sim caminhando, cada um no seu próprio ritmo.