Eleições na Alemanha: os desafios que Merkel deixa para seu sucessor
Maior posicionamento e legado da alemã tornará tarefa de governar a maior economia da Europa mais difícil
À frente do governo há 16 anos, a chanceler Angela Merkel encerra seu quarto e último mandato com o título de líder mais influente da Europa e símbolo de gestão de crise e estabilidade no país. Com um legado impecável, a governante tornou a vida de seu sucessor díficil. Pesquisas de intenção de voto demonstram que não há uma unanimidade entre os alemães, que vão às urnas neste domingo (26.set).
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Embolados na frente, Olaf Scholz do Partido Social Democrata (SPD), atual ministro das Finanças e vice-chanceler, disputa a preferência de votos com Armin Laschet, do partido União Democrata-Cristã (CDU) de Merkel. A candidata pelo Partido Verde, Annalena Baerbock, vem em terceiro, com poucas chances de vitória. Por adotarem um sistema parlamentar, a escolha do novo chanceler fica sob a responsabilidade do parlamento recém-eleito. Para garantir a vitória de um candidato, as siglas geralmente formam coalizões, que podem conter até três partidos, dificultando a governança de quem quer seja escolhido.
Para Kai Enno Lehmann, professor do Instituto de Relações Internacionais na Universidade de São Paulo (USP), esse é o cenário esperado para essas eleições, o que deve prolongar a escolha de um novo chanceler até o fim do ano.
"Eu não vejo a formação de um governo de forma rápida. É a primeira eleição desde 2002 que de fato está muito aberta. Nós não sabemos quem vai ser chanceler, porque a diferença entre um e outro, no momento, nas pesquisas de opinião, é de 3%, 2%. Como eu falei, é possível que haja uma coalizão de mais de dois partidos, então as sondagens e negociações vão demorar."
Essa disputa, de acordo com Lehmann, ocorre porque entre Scholz (SPD) e Laschet (CDU) não há a apresentação de propostas radicais. Laschet é um candidato de continuidade. Scholz, apesar de apresentar melhor as propostas e lidar melhor com o eleitorado, faz parte do atual governo. Entretanto, "o próximo chanceler vai ter que, em algum momento, enfrentar desafios".
Como, por exemplo, a reforma do estado alemão. "(Merkel) não enfrentou ou tentou resolver os grandes desafios que a Alemanha tem em termos de estrutura de estado. Por exemplo, o sistema social e principalmente a aposentadoria", explica Lehmann.
Com o agravante de que essas mudanças também não serão fáceis para os alemães, segundo o professor. "As pessoas querem mudanças, mas não muito. Me parece que a Merkel vai fazer falta na consciência dos alemães justamente porque ela é uma administradora de crise. O próximo chanceler tem que ser um administrador de crises, além de ser um reformador.". Merkel recebeu o apelido de "Mutti", mamãezinha em tradução literal, devido a sua forma calma de falar ao público, independente da situação.
Novas políticas ecológicas e imigratórias também terão de ser pensadas. Em julho, o país ficou estarrecido com as inundações que deixaram mais de 200 mortos. A questão imigratória é alvo de resistência da opinião pública, mas necessária, já que "Alemanha não produz os trabalhadores que precisa para economia crescer de forma sustentável", comenta Lehmann.
Política Externa
O Brasil não será a principal preocupação do novo governo. Pelo menos, não em um primeiro momento, diz Lehmann. A crescente onda autoritária no Leste Europeu e as relações com a Rússia e China vão demandar um posicionamento do novo líder.
"Polônia, Hungria, têm governos autoritários que estão desconstruindo o sistema democrático. O próximo chanceler, em algum momento, vai ter que se posicionar de uma forma que Merkel nunca fez. Junto a isso, as relações com a Rússia e a China, são dois enormes desafios", declara.
Moderada, Merkel, apesar da pressão norte-americana, manteve relações comerciais com a China - mais importante parceiro comercial da Alemanha desde 2015 - e continuou a construção do controverso gasoduto NordStream 2, que fornecerá gás russo para o país através do Báltico, projeto bastante criticado por ambientalistas e membros da própria União Europeia.
Para o próximo chanceler, seja quem for, de acordo com o professor da USP, haverá maior pressão internacional para se posicionar contra as violações dos direitos humanos que ocorrem na China - como a perseguição da minoria uigur e repressão dos movimentos pró-democracia em Hong Kong - em relação a Rússia, o país apresenta uma grande ameaça para certos países do Leste Europeu, com a sua estreita relação com a Bielorússia, atualmente governada por Alexandr Lukashenko, líder autoritario reeleito em eleição polêmica.
As discussões em torno de China e Rússia também são avaliadas por Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos e diretor presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), como um tema que vai tirar a atenção do país para as Américas. "Agora, a Alemanha não está muito focada aqui na região. Eles estão centrados mais na Europa, com a China e com a Rússia. Esses são os problemas que a Merkel enfrentou e o outro governo vai enfrentar também."
A retomada do acordo entre União Europeia e Mercosul, assim como uma possível retomada do Fundo da Amazônia - suspenso em 2019 depois de divergências entre os governos- deve ocorrer somente após as eleições presidencias brasileiras, em 2022. Como a escolha do novo chanceler vai demandar coalizões e deve ocorrer somente no fim deste ano, não haverá tempo para retomar as discussões até que se saiba o resultado das eleições de outubro, de acordo com Lehmann e Barbosa.
"É bem possível que o próximo chanceler só assuma de fato no início do ano que vem. Então faltaria nove, dez meses para a eleição no Brasil. É muito pouco tempo. Não me parece muito provável que haja grande iniciativas", comenta o professor.
Apesar da discussão ficar para 2023, o ex-embaixador afirma que o Brasil deve priorizar a questão ambiental. Não somente por causa da Alemanha, mas porque o meio ambiente hoje é uma preocupação global. "Há uma percepção muito negativa sobre a política ambiental do Brasil em relação a Amazônia" e acrescenta, "a posição do Brasil em relação ao país na área ambiental já é díficil, mas pode piorar" caso o novo chanceler seja membro do Partido Verde ou Social Democrata.