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Novo mecanismo do Pix reforça combate a golpes e não afeta sigilo ou rotina dos usuários

MED 2.0 rastreia apenas transações suspeitas após a contestação da vítima e não tem relação com a Receita Federal, o monitoramento fiscal ou impostos

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O Comprova analisou publicações no X que alegam que “toda e qualquer transação” realizada via Pix passará a ser rastreada pelo Banco Central. Uma dessas postagens é um vídeo da GloboNews, editado por um perfil de notícias, de direita, com 430 mil seguidores, no qual a comentarista Rosana Cerqueira afirma, de fato, que “toda e qualquer transferência via Pix será monitorada”. No telejornal, porém, a frase aparece em uma explicação sobre golpes e o funcionamento do Mecanismo Especial de Devolução (MED 2.0), que prevê o acompanhamento do caminho do dinheiro apenas após uma contestação formal da vítima.

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O recorte viral, porém, retira o trecho do contexto original, que era exclusivamente sobre fraudes já em andamento e sobre o rastreamento limitado ao caso denunciado, e o apresenta como se o Banco Central fosse monitorar todas as operações do Pix de maneira permanente. O deputado federal Nikolas Ferreira (PL) compartilhou o material editado e escreveu que “um tal de Nikolas aí então tinha razão”, sugerindo que as mudanças anunciadas agora confirmam o que ele afirmou em um vídeo gravado em janeiro de 2025, quando a Receita Federal publicou a Instrução Normativa nº 2.219/2024.

Comprova Explica: Publicações voltaram a associar o Pix à ideia de vigilância fiscal e de cobrança de impostos, repetindo argumentos já desmentidos no início do ano. Por isso, este Comprova Explica se concentra em responder quatro perguntas centrais: o que foi a norma da Receita que gerou polêmica em janeiro; o que Nikolas disse na época; o que está mudando agora com o Banco Central; e se é correto afirmar que o anúncio atual confirma as previsões do deputado.

O que foi a Instrução Normativa e o que ela mudava em relação ao Pix?

A Instrução Normativa nº 2.219/2024 foi publicada pela Receita Federal em setembro de 2024 e entrou em vigor em 1º de janeiro de 2025. O texto tinha como objetivo atualizar a chamada e-Financeira, sistema pelo qual instituições financeiras e de pagamento enviam, desde os anos 2000, informações consolidadas sobre operações de seus clientes para fins de prevenção a crimes financeiros, como lavagem de dinheiro.

Na prática, a norma ampliava o grupo de instituições obrigadas a prestar essas informações, incluindo bancos digitais, operadoras de cartão, carteiras eletrônicas e empresas que processam pagamentos, além de ajustar os valores mínimos que passariam a ser comunicados. Para pessoas físicas, seriam enviados à Receita apenas os valores totais movimentados no mês quando o montante superasse cinco mil reais; para pessoas jurídicas, a comunicação ocorreria a partir de quinze mil reais mensais.

Esses dados seriam sempre agregados, informados em forma de valores globais por cliente, sem identificação de cada transferência. O texto mantinha a proibição de incluir qualquer informação que indicasse a origem ou o destino dos recursos, como nomes, CPFs ou detalhes de transações específicas. Em entrevistas à época, a Receita Federal e especialistas ouvidos por veículos como o Estadão reafirmaram que a instrução não criava imposto, não taxava o Pix, não alterava o funcionamento do sistema de pagamento e não rompia o sigilo bancário.

Mesmo assim, o conteúdo da norma foi interpretado nas redes como uma tentativa de monitorar diariamente as movimentações dos usuários do Pix e de pavimentar uma suposta taxação sobre transferências. Diante da repercussão, o governo revogou a instrução em 15 de janeiro de 2025. Com isso, voltaram a valer as regras anteriores, mais restritas, que já previam o envio de informações consolidadas apenas por bancos tradicionais, com limites mais baixos, mas sem qualquer acesso individualizado a extratos ou a detalhes de Pix.

Em agosto, a Operação Carbono Oculto, da Polícia Federal em parceria com o Ministério Público de São Paulo, revelou como o crime organizado utilizou brechas na fiscalização para lavar dinheiro ilícito por meio de fundos de investimento em fintechs. Com isso, a Receita voltou a ampliar o dever de informar transferências. A medida está em vigor atualmente.

O que Nikolas Ferreira afirmou em janeiro de 2025?

No vídeo publicado em suas redes no início de janeiro, Nikolas Ferreira afirmou que o “governo Lula vai monitorar seus gastos com cartão de crédito e Pix” e que qualquer pessoa que movimentasse mais de R$ 5 mil por mês passaria a “entrar na mira da Receita”. Ele citou exemplos de trabalhadores informais, como ambulantes, motoristas de aplicativo e entregadores, e disse que essas pessoas seriam tratadas como “grandes sonegadores”.

O deputado também sugeriu que a medida abriria caminho para a taxação do Pix, que haveria quebra de sigilo bancário e que microempreendedores individuais poderiam ser obrigados a pagar alíquotas de até 27,5% de Imposto de Renda, o que tornaria “impossível sobreviver”. Em outro trecho, afirmou que o objetivo das mudanças seria “arrecadar mais impostos” e que, diante da fiscalização, muitos brasileiros voltariam a usar apenas dinheiro vivo para não serem vigiados pelo governo.

À época, o Estadão Verifica classificou o vídeo como enganoso. A checagem destacou que a instrução da Receita não criava nenhum tributo, não permitia identificar remetentes e destinatários de Pix, não eliminava o sigilo bancário e não determinava, por si só, mudanças na forma como a Receita analisa obrigações de Imposto de Renda de pessoas físicas ou de microempreendedores. A confusão entre envio de dados agregados para fins de monitoramento de crimes financeiros e vigilância individual de usuários contribuiu para a polêmica que acabou levando à revogação da norma. Contatado por e-mail, o deputado não respondeu ao Comprova até a publicação deste Explica.

O que está mudando agora no Banco Central e o que é o MED 2.0?

O vídeo da comentarista Rosana Cerqueira, utilizado na postagem do deputado, não se referia à medida da Receita. Rosana falava da resolução BCB nº 493 e de um anúncio do Banco Central, divulgado em agosto de 2025, sobre o aprimoramento do Mecanismo Especial de Devolução do Pix, o MED. Criado para permitir a devolução de valores em casos de fraude ou falha operacional, o mecanismo ganhou uma nova versão, chamada MED 2.0, detalhada em nota à imprensa e em documentos técnicos do BC.

Pelo MED atual, os bancos já podem bloquear a conta que recebeu o Pix fraudulento, mas enfrentam dificuldade quando o dinheiro é rapidamente transferido para outras contas — estratégia comum entre golpistas, que usam várias camadas de “contas de passagem” para dificultar o retorno do valor original. O MED 2.0 cria um circuito obrigatório de rastreamento entre todas as instituições participantes do Pix, permitindo que, após a vítima registrar a contestação no aplicativo do banco, seja possível reconstruir o caminho do dinheiro, identificar contas usadas no golpe e tentar bloquear saldos remanescentes. Esse rastreamento só ocorre após a vítima acionar formalmente o mecanismo. O Banco Central não passa a monitorar transações rotineiras nem tem acesso à movimentação de usuários fora desses casos de fraude.

Em resposta por e-mail ao Comprova, o BC afirmou que o MED 2.0 “não altera o sigilo bancário”, “não modifica o funcionamento cotidiano do Pix” e “não tem qualquer relação com fiscalização tributária, Receita Federal ou cobrança de impostos”. O órgão esclareceu que o sistema serve exclusivamente para combater golpes, aumentar as chances de recuperação de valores e desestimular a atuação de criminosos que se aproveitam da velocidade do Pix. A implementação começa de forma facultativa em novembro de 2025 e se torna obrigatória para todas as instituições do Pix em fevereiro de 2026.

Como o vídeo da GloboNews foi usado para sustentar a ideia de que “toda transação será monitorada”, o Comprova transcreve abaixo o trecho completo da fala exibida no telejornal, para que o leitor possa verificar o contexto original:

“Por exemplo, neste caso, a pessoa faz uma compra nas redes sociais, na internet, paga pelo Pix, mas não recebe o produto e nunca mais consegue falar com a empresa. Neste caso, o dinheiro do Pix fica muito pouco tempo na conta bancária que recebe o Pix. Aí vem o golpe. Quando a pessoa pede a devolução no aplicativo do banco, o dinheiro já foi transferido para outra conta.”

No telejornal, Rosana descrevia exclusivamente o funcionamento do MED após um golpe ser reportado, e não o monitoramento permanente do Pix. O recorte que viralizou omite essa explicação e apresenta a frase como se se referisse ao uso comum do Pix, distorcendo o sentido da reportagem e dando a entender que todas as operações passariam a ser rastreadas, o que não corresponde ao texto da resolução, à nota oficial do BC ou ao funcionamento real do MED 2.0.

Há relação jurídica ou operacional entre a instrução da Receita e o mecanismo antifraude do Banco Central?

Para esclarecer as diferenças entre as duas medidas, o Comprova entrevistou Bruno Barbosa Miragem, professor de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Núcleo de Estudos em Direito e Sistema Financeiro. O especialista afirmou que a instrução da Receita e a resolução do Banco Central tratam de problemas distintos e não têm conexão jurídica ou operacional.

Segundo Miragem, a instrução normativa, revogada e posteriormente reinstaurada, estabelece um dever de reportar ao governo, por meio da e-Financeira, informações agregadas sobre operações financeiras realizadas pelos clientes de instituições como bancos, seguradoras, operadoras de planos de previdência, fintechs e empresas de pagamento. A finalidade é permitir que o Estado acompanhe movimentações globais e identifique possíveis crimes financeiros cometidos pelos próprios usuários do sistema.

Já a nova resolução do Banco Central impõe às instituições financeiras e de pagamento um conjunto de deveres internos de monitoramento e de bloqueio de operações atípicas no âmbito do sistema de pagamento instantâneo, em especial o Pix. O objetivo é proteger os usuários de golpes e fraudes, evitando que sejam vítimas, exigindo que os bancos identifiquem padrões suspeitos, emitam alertas aos clientes e, em determinados casos, impeçam a conclusão de transferências arriscadas. Esse monitoramento é realizado nas instituições financeiras e não implica o envio de novas informações a órgãos de fiscalização.

“Isso (as declarações de Nikolas Ferreira) é absolutamente incorreto. São medidas com finalidades diferentes e procedimentos completamente distintos. Em síntese, a instrução normativa da Receita Federal, revogada, buscava prevenir e investigar crimes que podem ser cometidos pelos usuários do sistema financeiro, por seu intermédio, daí pretendendo dar conhecimento aos órgãos de Estado sobre as operações financeiras realizadas. A resolução do Banco Central visa proteger esses mesmos usuários de golpes e fraudes em expansão, impondo às instituições financeiras e de pagamento deveres de monitorar e prevenir essas operações internamente, sem necessidade de reportar novas informações a órgãos de fiscalização”, disse o professor.

As mudanças atuais significam que todas as transações via Pix serão rastreadas?

De acordo com o Banco Central, não. O órgão enfatizou, em resposta ao Comprova, que o MED 2.0 parte sempre de uma contestação feita pela vítima e que o rastreamento ocorre apenas nas transações suspeitas relacionadas a esse episódio. Não há monitoramento preventivo de todas as operações, nem acesso automático às informações sobre quem paga e quem recebe em cada Pix.

Isso significa que o usuário que utiliza o Pix no dia a dia, para pagar contas, transferir dinheiro a familiares ou receber o salário, não passa a ter suas transações acompanhadas pelo Banco Central devido ao novo mecanismo. O que muda é a chance de recuperar valores quando a pessoa cai em um golpe e aciona o sistema pelas vias oficiais.

As mudanças criam imposto ou abrem caminho para a tributação do Pix?

A Constituição Federal veda a cobrança de tributos sobre movimentações financeiras, e qualquer alteração nesse sentido exigiria uma emenda constitucional. Em janeiro, a própria Receita Federal chegou a divulgar uma nota afirmando que “não cobra e jamais vai cobrar impostos sobre transações feitas via Pix”. Agora, o Banco Central esclareceu que o MED 2.0 não tem nenhuma relação com a tributação, com a Receita ou com o monitoramento fiscal de pessoas físicas e jurídicas.

Ao associar o anúncio do mecanismo antifraude a um suposto plano de taxar o Pix ou de vigiar todas as transações, as publicações misturam informações de momentos distintos e atribuem à medida um alcance que ela não tem, segundo as respostas oficiais e a análise dos especialistas consultados.

Por que as pessoas podem ter acreditado?

A publicação analisada utiliza uma tática comum em casos de desinformação política: tirar eventos de contexto, isto é, usar fatos novos para dar a impressão de que previsões já refutadas teriam se concretizado. No caso, o deputado relaciona o anúncio do mecanismo antifraude do Pix (MED 2.0), feito pelo Banco Central, a uma instrução normativa da Receita Federal que já havia sido revogada, sugerindo que a previsão de “monitoramento e taxação do Pix” teria se confirmado. Isso constitui uma falsa equivalência: as medidas são de órgãos diferentes, têm propósitos distintos (um voltado à segurança contra fraudes, outro à fiscalização tributária) e não há relação operacional entre si.

Além disso, há manipulação emocional ao insinuar que o governo está ampliando a vigilância sobre o cidadão comum, apelando ao medo de perda de privacidade e ao receio de ser taxado injustamente. Tal narrativa, reforçada por cortes de vídeo e legendas sensacionalistas produzidas por perfis desinformativos, explora o viés de confirmação em públicos já desconfiados do governo ou críticos às políticas fiscais. A tática busca consolidar uma imagem de coerência e de “antevisão dos fatos” por parte do político, mesmo que os dados oficiais e os especialistas refutem essa interpretação.

Fontes consultadas: O Comprova consultou documentos oficiais, entrevistas com especialistas e checagens já publicadas por outros veículos. Entre as fontes, estão a Instrução Normativa nº 2.219/2024 e a nota da Receita Federal sobre sua revogação; a resolução BCB Nº 493, a nota do Banco Central “BC aprimora o Mecanismo Especial de Devolução do Pix”, de 28 de agosto de 2025, e os documentos técnicos do MED 2.0 disponibilizados no site da instituição (1, 2 e 3); entrevista com Bruno Barbosa Miragem, professor da UFRGS e integrante do Núcleo de Estudos em Direito e Sistema Financeiro e a checagem do Estadão Verifica sobre o vídeo de Nikolas Ferreira publicado em janeiro.

Por que o Comprova explicou este assunto: O Comprova, grupo formado por 42 veículos de imprensa brasileiros para combater a desinformação, monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas, saúde, mudanças climáticas, eleições e golpes virtuais e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Quando detecta, nesse monitoramento, um tema que está gerando muitas dúvidas e desinformação, o Comprova Explica. O SBT e SBT News fazem parte dessa aliança. Desconfiou da informação recebida? Envie sua denúncia, dúvida ou boato pelo WhatsApp 11 97045-4984.

Investigação e verificação: GZH participaram desta investigação. A revisão das informações foi realizada pelos veículos O Dia, Gazeta, Estadão e Folha de SP.

Para se aprofundar mais: O Comprova já verificou outros conteúdos que exploravam desinformação sobre o Pix. Em setembro de 2025, o projeto explicou que uma norma direcionada a fintechs não criava imposto e apenas igualava obrigações já existentes para bancos tradicionais. Em julho, analisou rumores de que Donald Trump pretendia “taxar o Pix”. O Estadão Verifica também já checou o vídeo publicado por Nikolas Ferreira em janeiro e concluiu que as alegações de monitoramento individual, taxação do Pix e quebra de sigilo bancário eram enganosas.

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