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Comprova: Projeto de Lei não pretende "legalizar o incesto", mas ampliar o reconhecimento de famílias pelo Estado

Apesar de existirem brechas no projeto, ele não seria suficiente para revogar a proibição do casamento entre pais e filhos prevista no Código Civil

Comprova: Projeto de Lei não pretende "legalizar o incesto", mas ampliar o reconhecimento de famílias pelo Estado
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São enganosas as publicações que atribuem ao Projeto de Lei 3.369, de 2015, a intenção de “legalizar o incesto”. A proposta, de autoria do deputado federal Orlando Silva (PCdoB – SP), tem como objetivo ampliar o reconhecimento de famílias pelo Estado brasileiro, englobando, por exemplo, a adoção por casais homossexuais e os casos em que crianças são educadas por tios e avós.

Para uma especialista em Direito de Família entrevistada pelo Comprova, apesar de existirem brechas no projeto, ele não seria suficiente para revogar a proibição do casamento entre pais e filhos prevista no Código Civil.

As postagens viralizaram depois que a Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados colocou a votação do PL na pauta da quarta-feira, 21 de agosto. Após a repercussão nas redes, a proposta foi retirada da agenda para “aprimoramento do texto”.

Esta verificação do Comprova investigou informações divulgadas pelas páginas Nas Ruas e Só a Verdade, no Facebook, e pelos sites Estudos Nacionais e Jornal da Cidade Online (posteriormente editado).

Como Verificamos

Para esta checagem, o Comprova consultou a íntegra do PL 3.369/2015 e as assessorias de imprensa do autor da proposta, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), e do relator do texto na CDHM, deputado Túlio Gadêlha (PDT-PE).

Também foram entrevistadas a presidente da Comissão de Direito de Família da OAB Pernambuco, Virgínia Baptista, a professora de Direito de Família da Universidade Federal Fluminense (UFF) Fernanda Pimentel, e o deputado Túlio Gadêlha.

Você pode refazer o caminho da verificação do Comprova usando os links para consultar as fontes originais ou visualizar a documentação que reunimos.

“Casamento entre pais e filhos”

Segundo as publicações viralizadas, o PL em questão regulamentaria o casamento entre “um pai com seu filho, o pai com a filha, mãe com filha, mãe com um filho, ou qualquer combinação entre pais e filhos”. Para justificar tal afirmativa, as postagens mencionam o artigo 2º da proposta, que estabelece:

“São reconhecidas como famílias todas as formas de união entre duas ou mais pessoas que para este fim se constituam e que se baseiem no amor, na socioafetividade, independentemente de consanguinidade, gênero, orientação sexual, nacionalidade, credo ou raça, incluindo seus filhos ou pessoas que assim sejam consideradas”.

O trecho, contudo, não faz qualquer menção a casamentos, mas a núcleos familiares.

O que dizem as especialistas

Orlando Silva e Túlio Gadêlha afirmaram que o objetivo do projeto é de ampliar a concepção de família aceita pelo Estado. Na opinião da professora de Direito de Família da Universidade Federal Fluminense (UFF) Fernanda Pimentel, essa é a interpretação mais provável.

Para a especialista, o projeto tem como objetivo regulamentar casos que já são reconhecidos em tribunais, como “quando um padrasto cria uma enteada, ou um enteado, ou um tio que crie sobrinhos”, disse, em entrevista ao Comprova.

Essa regulamentação tem diversas consequências jurídicas, como o direito à herança, a benefícios previdenciários e à dedução do dependente no Imposto de Renda, afirmou.

A professora destacou, contudo, que o Projeto de Lei traz conceitos muito abertos, o que possibilita múltiplas interpretações, inclusive a mencionada nas postagens viralizadas. “O texto, realmente, quando ele usa essa técnica das cláusulas gerais, ele o faz de maneira muito genérica. Se eu quiser, eu conduzo esse texto para uma interpretação bastante ampla, permitindo essas relações”, disse Pimentel.

Essa opinião é reforçada pela presidente da Comissão de Direito da Família da OAB Pernambuco, Virgínia Baptista. Para a advogada, o ponto do projeto que permitiria interpretações divergentes do objetivo dos autores é o uso da expressão “independentemente de consanguinidade”.

“Abre brecha, sim, para relações incestuosas, eu acho que é bem claro no texto dele. Talvez ele precisasse rever esse trecho da lei. A questão da consanguinidade é uma vedação e isso não vai poder ser superado”, afirmou em entrevista ao Comprova.

Fernanda Pimentel pontuou, contudo, que o Projeto de Lei não seria interpretado de maneira isolada, mas levando em consideração todas as outras normas e costumes da sociedade – tornando improvável a “acolhida da relação incestuosa”.

“Quando o projeto fala que a família é toda forma de união entre duas ou mais pessoas que para este fim se constituam e que se baseiem no amor, na socioafetividade, independentemente de consanguinidade, gênero e orientação, ele está transferindo para o Judiciário a possibilidade de aplicar isso ao caso concreto. Só que, diferentemente desse pânico instalado, essa interpretação não é solta. Ela é feita a partir da Constituição e do sistema jurídico vigente”, disse Pimentel.

Atualmente, o casamento entre pais e filhos e entre irmãos é proibido pelo artigo 1.521 do Código Civil. Para que o PL permitisse este tipo de relacionamento, explica Pimentel, precisaria haver uma revogação tácita do artigo, ou seja, quando se presume que a lei anterior foi revogada.

“Só que revogação tácita tem que ser reconhecida pelos tribunais. E toda orientação jurisprudencial do direito brasileiro é no sentido de valorizar esse interdito na formação da família brasileira, que é a vedação da relação incestuosa. Então, eu não creio que o projeto de lei encaminharia para a acolhida dessa relação incestuosa”, afirmou.

Autor e relator negam intenção de legalizar incesto

Em nota oficial publicada na página Vermelho.org, o deputado Orlando Silva explicou que o projeto tem como objetivo ampliar o reconhecimento de famílias pelo Estado, incluindo núcleos formados por pessoas sem laços sanguíneos.

“Quando o projeto diz ‘independentemente de consanguinidade’, está se referindo às milhares de famílias, sejam de casais héteros ou homoafetivos, formadas a partir do generoso ato da adoção legal de crianças”, disse na nota.

Em posicionamento oficial enviado ao Comprova, o deputado Túlio Gadêlha, que emitiu parecer pela aprovação do PL na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, acrescentou que o projeto também quer o reconhecimento de “uma família formada por parentes, como avós e netos ou tios e sobrinhos, por exemplo”.

“Ter um conceito de família amplo é importante para que essas novas concepções possam ter acesso a programas sociais, por exemplo. Esse reconhecimento está em relatórios da ONU, no STF, só não houve no Legislativo”, afirmou Gadêlha em entrevista ao Comprova.

Retirado da pauta

Após a repercussão nas redes sociais, a votação do PL foi retirada da pauta desta quarta-feira pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias.

Em nota de esclarecimento publicada no site da Câmara dos Deputados, o presidente da Comissão, Helder Salomão (PT-ES), afirmou que o projeto tem sido objeto “de interpretações distorcidas” e que por isso, a pedido do relator, retirou o PL da pauta para “aprimoramento de sua redação por meio da elaboração de substitutivo”.

Um substitutivo é um tipo de emenda que altera a proposta, recebendo este nome porque substitui o projeto original.

Em entrevista à Rádio Câmara nesta quarta-feira, 21 de agosto, o deputado Orlando Silva esclareceu que pediu que Túlio Gadêlha redigisse o substitutivo para atender às “pessoas de boa fé que querem esclarecimento” e para que “não pairem dúvidas quanto aos nossos objetivos”.

Em entrevista ao Comprova, Túlio Gadêlha afirmou que pretende “continuar abrangendo todos esses formatos de família, mas excluir esse entendimento deturpado que parte da bancada evangélica tem feito”. “Eu acho importante a gente, que está nesse campo do Legislativo, ter a sensibilidade de compreender o olhar de outros parlamentares”, disse.

O deputado chegou a reconhecer que a redação do PL pode deixar em aberto interpretações divergentes, mencionando o caso da poligamia, que, segundo algumas publicações viralizadas, seria legalizada com o projeto. “De fato, o projeto, lendo-se, pode compreender uma configuração de família, como vem sendo colocado, pela poligamia. São reconhecidas como formas de família união de duas ou mais pessoas.” Apesar disso, ele enfatizou que não concorda com essa avaliação, feita também por outros parlamentares.

Tramitação do projeto

O projeto de lei foi apresentado em 21 de outubro de 2015. No ano seguinte, recebeu um parecer favorável de Jean Wyllys (PSOL-RJ), mas não foi votado.

Com o fim da legislatura passada, o PL foi arquivado, mas voltou a tramitar a pedido de Orlando Silva este ano. No dia 8 de agosto, Túlio Gadêlha apresentou o relatório pela aprovação do projeto e pela rejeição de uma emenda que usava como conceito de família “a união de um homem e de uma mulher, por meio de casamento ou de união estável, e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos”.

O projeto ainda deverá ser analisado pelas comissões de Seguridade Social e Família e de Constituição e Justiça e de Cidadania.

Comissão não tem maioria de esquerda

Ao contrário do que diz a publicação do site Estudos Nacionais, a composição da Comissão de Direitos Humanos e Minorias não tem maioria de esquerda entre os titulares. Partidos de tendências mais conservadoras têm nove indicações e os mais progressistas também têm nove nomes.

O PSL, partido do presidente Jair Bolsonaro, tem como representantes os deputados Filipe Barros (PR) e Julian Lemos (PB). Os outros integrantes do bloco são: Abílio Santana (PL-BA), Aroldo Martins (Republicanos-PR), Bia Cavassa (PSDB-MS), Delegado Éder Mauro (PSD-PA), Iracema Portella (PP-PI), Lauriete (PL-ES), Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ).

O PT ocupa uma vaga do MDB e uma do PP, com Erika Kokay (DF) e Padre João (MG), respectivamente). O bloco tem ainda: Camilo Capiberibe (PSB-AP), Carlos Veras (PT-PE) e Helder Salomão (PT-ES, presidente do colegiado). A comissão é formada ainda por Eli Borges (Solidariedade-TO), José Medeiros (Podemos-MT), Márcio Jerry (PCdoB-MA) e Túlio Gadêlha (PDT-PE).

Repercussão nas redes

O Comprova verifica conteúdos duvidosos sobre políticas públicas do governo federal que tenham grande potencial de viralização.

A publicação da página Nas Ruas teve 3 mil comentários, 2,8 mil curtidas e 1,7 mil comentários. O post da Só a verdade teve 4,3 mil compartilhamentos, 214 comentários e 275 curtidas. O artigo publicado no site Estudos Nacionais teve 20 mil interações no Facebook, segundo a ferramenta CrowdTangle. As publicações foram feitas entre os dias 19 e 20 de agosto e tinham esses números de interação nas redes sociais no dia 21.

O texto do Jornal da Cidade Online teve 162 mil interações no Facebook entre os dias 20 e 22 de agosto, de acordo com o CrowdTangle. Inicialmente publicado com o título “Zambelli denuncia projeto de Manuela que pretende legalizar casamento entre pais e filhos”, o artigo foi alterado. O site publicou uma errata corrigindo a informação de que a ex-deputada Manuela D’Ávila (PCdoB) seria autora do projeto de lei. Além disso, passou a afirmar que “a redação do projeto é tão confusa que levantou uma polêmica no sentido de que o PL poderia normalizar o incesto”.

O Estadão Verifica e a Agência Lupa já haviam checado esta alegação.

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Investigação e verificação

Sistema Jornal do Commércio e AFP participaram desta investigação e a sua verificação, pelo processo de crosscheck, foi realizada pelos veículos Estadão, SBT, Nexo, GaúchaZH, UOL e Folha.

Projeto Comprova

Esta reportagem foi elaborada por jornalistas do Projeto Comprova, grupo formado por 24 veículos de imprensa brasileiros, para combater a desinformação. Em 2018, o Comprova monitorou e desmentiu boatos e rumores relacionados à eleição presidencial. A edição deste ano está dedicado a combater a desinformação sobre políticas públicas. O SBT faz parte dessa aliança. 

Desconfiou da informação recebida? Envie sua denúncia, duvida ou boato pelo WhatsApp 11 97795 0022.

 

 

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