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Um agente de segurança pública tira a própria vida a cada 45 horas no Brasil, diz pesquisa

Falta de atendimento em saúde mental é uma realidade em boa parte dos estados brasileiros e número pode ser maior, segundo IPPES

Um agente de segurança pública tira a própria vida a cada 45 horas no Brasil, diz pesquisa
Agentes de Segurança Pública sofrem com pressão e ambientes inseguros | Academia De Polícia Militar Do Barro Branco/Reprodução
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Alerta: tema sensível

Um levantamento inédito feito pelo Instituto de Pesquisa, Prevenção e Estudos em Suicídio (IPPES), em parceria com o Ministério Público do Trabalho (MPT), e obtido pelo SBT News mostrou que, em 2023, a cada 45 horas um agente de segurança pública, seja ativo ou inativo, tirou a própria vida no Brasil. Os dados foram obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) e também de fontes extraoficiais*.

+"Quando você adoece mentalmente, não serve mais para a PM", diz ex-policial militar

Na liderança aparecem os Policiais Militares, seguidos pela Polícia Civil e Perícia; Polícia Penal; Forças Federais (Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Senappen), Guardas Municipais e Corpo de Bombeiros Militar. Ao todo, foram 194 casos notificados em todo o país.

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No entanto, os dados poderiam ser maiores. Estados como Minas Gerais, por exemplo, não informaram a quantidade de suicídios a partir de 2021 já que “os números de suicídios e homicídios seguidos de suicídios são de natureza sensível” e estão classificados sob sigilo a partir do Rol de Informações Classificadas da SEJUSP pelo período de 5 anos, segundo o IPPES.

Mais da metade dos casos ocorreu na residência das vítimas ou de seus familiares e 86% do total foi concretizada com armas de fogo.

Considerando o período entre 2018 e 2023, 1022 agentes de segurança tiraram a própria vida, com a tendência de um suicídio a cada dois dias. A faixa etária mais prevalente é de 30 a 49 anos.

O que está por trás dos dados?

O primeiro ponto, segundo Dayse Miranda, socióloga do IPPES, na verdade, é a falta de deles. Segundo elas, o número de suicídios pode ser bem maior.

"É preciso melhorar sistema de informação. A gente sabe que o número é maior que esse apresentado pela pesquisa. Se não mudarmos essa cultura de falta de organização de dados, não saberemos como agir", ressalta.

Profissionais sem atendimento de saúde mental

Dentre as maiores defasagens de atendimento em saúde mental estão a Guarda Civil e o Corpo de Bombeiros. No primeiro caso, apenas Salvador informou possuir atendimento psiquiátrico dentre as guardas municipais de 24 capitais analisadas (Rio Branco, Brasília e Cuiabá não possuem Guarda Civil Municipal) e junto com a capital baiana, apenas sete capitais informaram que possuem atendimento psicológico. (veja o que dizem as capitais que não têm nenhum tipo de atendimento de saúde mental ou não informaram).

Guarda Civil Municipal é uma das instituições com menor índice de atendimento psicológico e psiquiátrico | PMV/Divulgação
Guarda Civil Municipal é uma das instituições com menor índice de atendimento psicológico e psiquiátrico | PMV/Divulgação

A falta de atendimento psiquiátrico também é alarmante entre as policiais penais (apenas 3 estados possuem) e entre as polícias civis (6 estados)

No caso do Corpo de Bombeiros Militar apenas 7 dos 27 estados contam com abordagem psiquiátrica dentro da instituição e 14 possuem atendimento psicológico.

Para Elizandra Souza, que atua como psicanalista há mais de 20 anos e sempre teve pacientes ligados às forças de segurança, "aqueles que podem" costumam procurar ajuda fora da instituição.

"Um aspecto que percebo bastante é a tentativa de parecer seguro e decidido, como se todo mundo fingisse que não existe [o problema], já que ninguém fala nada. Como se eles não pudessem errar ou mostrar fragilidades, sejam emocionais ou físicas.", completa.

Segundo ela, as pessoas que trabalham com a segurança pública estão, em geral, em locais inseguros. "E a própria atividade traz muita pressão, é muito pesada."

"Quantas pessoas não falam 'eu vou pro trabalho e não sei se volto para casa'. Então, ter o equilíbrio mental e emocional e psicológico vai fazer com que a pessoa consiga lidar melhor com a ansiedade que ela tem, com a insegurança que ela tem, com o medo que ela tem. Não é porque essas pessoas trabalham com segurança pública que elas não sofrem com os seus medos", ressalta.

Suicídio depois de feminicídio ou homicídio

Entre 2018 e 2023, 821 profissionais de segurança tiraram a própria vida, sendo que 62 dos suicídios aconteceram depois de um homicídio ou feminicídio. Uma das autoras do levantamento, Fernanda Novaes Cruz, que é pesquisadora Associada do IPPES e do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), disse que há um forte componente de gênero nas estatísticas, com a maior parte dos casos sendo o homem o autor do crime.

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"Entre os suicídios que aconteceram depois de homicídios/feminicídios, as vítimas possuíam algum vínculo íntimo (anterior ou atual) com o perpetrador em 81% das ocorrências. As notícias que analisamos retratam casos relacionados à presença de crises de ciúmes ou não aceitação do término do relacionamento, relatos de presença de episódios de violência doméstica anteriores, ou até mesmo a vigência de medidas protetivas", ressaltou uma das autoras do estudo, Fernanda Novaes Cruz.

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No entanto, apesar de representarem a minoria dos casos, pela primeira vez o IPPES mapeou dois casos em que profissionais de segurança pública mulheres mataram seus companheiros homens antes de tirarem a própria vida.

Por que os PM's são os mais atingidos?

De acordo com a psiquiatra da USP Alexandrina Meleiro, muitos policiais militares desenvolvem transtorno de estresse pós-traumático, caracterizado pela dificuldade de se recuperar depois de vivenciar ou testemunhar acontecimentos violentos. Essa condição os deixa muito mais vulneráveis a desenvolver depressão, ansiedade e tentar o suicídio.

Formatura de PMs na Zona Norte de São Paulo | Divulgação/SSP
Formatura de PMs na Zona Norte de São Paulo | Divulgação/SSP

Segundo Alexandrina, muitos policiais são obrigados a aparentar força, mesmo quando estão no limite. "Dentro da própria corporação, criou-se uma dinâmica de que todo mundo tem que ser forte. Mas não é assim que se deve lidar com essas dificuldades", diz.

A rotina de um policial militar é marcada por situações de conflito, trabalho excessivo e baixa remuneração, fatores que prejudicam a saúde mental. A especialista destaca ainda que a exposição constante à violência sem apoio psicológico adequado agrava o quadro:

"Lidam direto com agressividade, risco de vida, violência severa. Sem uma válvula de escape, o adoecimento é inevitável", afirma a psiquiatra.

Dayse ressalta que a falta de sono, combinada ao manejo de armas de fogo, pode agravar o transtorno no caso dos militares.

Quais são as perspectivas?

Segundo Dayse, o governo federal está investindo em um projeto chamado Escuta SUSP que visa o atendimento psicológico online de militares.

Em uma portaria publicada no Diário Oficial da União, no último dia 15 de agosto, o Ministério da Justiça e Segurança Pública regulamenta o projeto, que integra o Programa Nacional de Qualidade de Vida para o Profissional de Segurança Pública (Pró-Vida).

O programa prevê que a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) ofereça, em convênio com universidades públicas, assistência psicológica gratuita e especializada a policiais civis e militares, bombeiros, peritos criminais e policiais penais.

"Eles podem ter acesso a assistência psicológica, psiquiátrica sem exposição aos colegas e sob sigilo", explica Mario Sarrubbo, que é Secretário Nacional de Segurança Pública.

Segundo ele, o projeto é direcionado às questões de saúde mental dos agentes de segurança pública.

Na primeira etapa do projeto, a ideia é oferecer mais de 65 mil sessões de terapia remota durante a primeira etapa, segundo o ministro Ricardo Lewandowski.

"Mas isso não é o suficiente, é necessário que cada estado brasileiro entenda o papel da saúde mental na segurança pública", ressalta Dayse.

O IPPES oferece o curso "Formação de Multiplicadores de Prevenção do Suicídio e Valorização da Vida", em parceria com o Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro, direcionado aos profissionais das áreas administrativa e operacional da Polícia Militar, Corpo de Bombeiros e Polícia Civil, com o objetivo de habilitar o agente de segurança a identificar, abordar e acolher pessoas em sofrimento psíquico.

"O modelo que proponho de prevenção é o integral. O que é isso? É um modelo que combina programas de saúde mental com um política que afeta as condições de trabalho, como uma escala mais flexível, e mudanças nas relações interpessoais, que muitas vezes são autoritárias e desrespeitosas", ressalta.

O que dizem as capitais que não têm atendimento ou não informaram ao estudo

Natal, Boa Vista, Manaus, Curitiba, Teresina, Recife, Belém, Fortaleza, Macapá não disponibilizaram os dados de atendimento psiquiátrico e psicológico mas deram justificativas ao instituto e à nossa reportagem.

A capital pernambucana informou ao IPPES que há o Núcleo de Apoio Social (NAPS), que trabalha para auxiliar o efetivo em relação à saúde mental. Entretanto, não foi informado quantos servidores atuam no Núcleo.

A capital do Ceará disse ao Instituto que "A Guarda Municipal de Fortaleza é subordinada à Secretaria Municipal de Segurança Cidadã e nesse órgão encontra-se o Núcleo de Atenção Biopsicossocial, com uma equipe multiprofissional. Entretanto, não foi informado quantos servidores trabalham no referido setor.

Manaus informou que os servidores contam com o suporte médico na área da saúde mental através da assistência médica (MANAUSMED). Até o momento, as demais capitais não se manifestaram.

Já Belém disse ao SBT News que a a Guarda Municipal do município possui, desde 1991, o Núcleo Social e de Saúde do Trabalhador (NSST), "uma equipe de trabalho é composta por psicóloga e assistentes sociais, além de Guardas Municipais, que desenvolvem atividades técnicas e administrativas."

"O setor faz avaliação psicológica de servidores para aptidão de porte de arma de fogo; avaliação psicológica para perfil de cargos para ingresso nos Grupamentos Táticos da Guarda Municipal; Visitas domiciliares e hospitalares aos servidores e seus familiares; acolhimento, acompanhamento e direcionamentos psicossociais nas cerimônias fúnebres; assistência ao servidor vítima de acidente de trabalho; entre outros serviços.", completa a nota.

São Luís, Palmas, Aracajú, Maceió e Porto Alegre informaram que não possuíam nenhum profissional responsável pelo atendimento.

Maceió comunicou à reportagem que a informação de que não há atendimento "não condiz com a verdade e desde 2023 o Centro de Atendimento e Cuidados ao Servidor de Maceió (CAC), que realiza atendimentos, inclusive para guardas civis municipais. A estrutura é resultado de mais um trabalho da Prefeitura de Maceió em valorização ao funcionalismo público, o que garante o cuidado com a saúde mental, laboral e bem-estar de quem atua na gestão municipal."

"Os funcionários públicos do município podem agendar consultas, de forma gratuita, incluindo psiquiatria, psicologia, serviço social, nutrição, educadores físicos, reeducação financeira, pilates, fisioterapia motora e fonoaudiologia.", completa a nota.

A capital gaúcha disse "que, quando necessário, recorre aos serviços da rede municipal".

A capital sergipana informou que conta com o Núcleo de Atuação Especial à Saúde do Trabalhador (NAEST/GMA), composto por guardas municipais, que oferece suporte e fornece orientações para que os servidores busquem profissionais de saúde. Não foi informado quantos profissionais integram o Núcleo.

São Luís e Palmas também foram questionadas pela reportagem, mas até o momento não responderam. As capitais do Acre (Rio Branco), Rondônia (Porto Velho), Mato Grosso (Cuiabá) não possuem guarda municipal, assim como o Distrito Federal.

Onde procurar ajuda?

CVV (Centro de Valorização à Vida) - Atendimento por ligação gratuita, 24 horas por dia, pelo número 188. Há também as opções de atendimento físico, chat e e-mail.

Pode falar - Canal de atendimento da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) criado para ajudar pessoas de 13 a 24 anos a lidarem com questões de saúde mental.

Além disso, pela rede pública, o atendimento para questões de saúde mental pode começar via atendimento pelas UBSs (Unidade Básica de Saúde) ou pelos Caps (Centros de Atenção Psicossocial) Infanto-Juvenil espalhados pelo Brasil.

* Feito por monitoramento feito a partir de notificações de ocorrências registradas pelas instituições de segurança pública, compartilhadas em grupos de WhatsApp de agentes de segurança pública de diversas unidades federativas, notícias publicadas em jornais ou websites locais e notas de pesar divulgadas nos sites das instituições de segurança pública.

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