Itamaraty fez operação de defesa de Bolsonaro junto a imprensa no caso Marielle
SBT News teve acesso a telegramas sobre os quais governo Bolsonaro tinha decretado sigilo de 100 anos
Emanuelle Menezes
Cido Coelho
Giovanna Colossi
O governo Bolsonaro montou uma ofensiva coordenada, envolvendo as principais embaixadas do Brasil na Europa, para blindar a imagem do então presidente, segundo telegramas oficiais obtidos com exclusividade pelo SBT News com base na Lei de Acesso à Informação (LAI). A ação do Itamaraty mirava importantes veículos de comunicação europeus, que associavam em diferentes graus o então mandatário ao assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), em 14 de março de 2018.
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Os telegramas de seis Embaixadas do Brasil no exterior -- na Alemanha, França, Itália, Suíça, Cuba e Jamaica -- estavam sob sigilo de 100 anos, imposto pelo governo de Jair Bolsonaro, mas foram revelados nesta 6ª feira (17.fev), após reavaliação feita pela Controladoria-Geral da União, a pedido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Eles foram encaminhados para o Ministério das Relações Exteriores entre novembro de 2019 e dezembro de 2020. Entre os documentos, estão textos enviados pelo embaixador do Brasil em Roma, na Itália, Hélio Vitor Ramos Filho, e o representante do país em Berna, na Suíça, Evandro Didonet.
As autoridades brasileiras enviaram cartas a diretores de jornais fazendo considerações sobre as publicações, além de repudiar o conteúdo de algumas delas.
O SBT News conversou com Rubens Barbosa, que foi embaixador do Brasil em Londres, na Inglaterra, entre 1994 e 1999 e em Washington, nos Estados Unidos, nos anos de 1999 a 2004. Para ele, os embaixadores foram "um pouco longe" ao escrever os ofícios.
Segundo Barbosa, as autoridades que trabalham nas Embaixadas seguem instruções do governo. Teria vindo, então, da gestão Jair Bolsonaro o pedido para responder aos jornais. Porém, ele alerta que essas ações podem ser justificadas pelo papel de "defesa dos interesses dos brasileiros" no exterior.
Carta ao La Repubblica: repúdio da embaixada brasileira
Em 13 de fevereiro de 2020, o embaixador do Brasil em Roma, Hélio Vitor Ramos Filho, comunica ao Ministério das Relações Exteriores que enviou uma carta de repúdio ao diretor do jornal La Repubblica após uma reportagem "levantar suspeitas sobre a honra" do ex-presidente Jair Bolsonaro ao associá-lo ao assassinato de Marielle Franco. Quatro dias depois, em 17 de fevereiro, o Itamaraty encaminhou o conteúdo completo da carta para o Secretário Especial de Comunicação Social da Presidência da República, Fábio Wajngarten.
Segundo o embaixador, a matéria "Brasile, ucciso il killer che sapeva tutto sull'omicidio di Marielle Franco" (Brasil: morto o assassino que sabia tudo sobre o homicídio de Marielle Franco), publicada pelo La Repubblica em 10 de fevereiro de 2020, fazia "ilações difamatórias", com o único objetivo de levantar suspeitas contra Bolsonaro por meio de uma "publicação irrazoável".
O trecho que mais incomodou Ramos Filho foi o último parágrafo, que ligava a família de Jair Bolsonaro ao miliciano Adriano da Nóbrega, morto em 9 de fevereiro de 2020, em uma operação policial na Bahia. Capitão Adriano, ex-policial militar do BOPE, era apontado como um dos líderes do Escritório do Crime -- grupo de matadores de aluguel que tinha entre seus integrantes Ronnie Lessa, acusado de matar a vereadora Marielle Franco e o motorista dela, Anderson Gomes.
"Uma investigação perigosa para a família de Jair e para o próprio presidente. Um entrelaçamento de relações e amizades que pode chegar até o Planalto, abrindo caminho também para as conexões entre política e crime, entre lideranças locais e milícias. Entre instigadores e autores do assassinato de Marielle Franco. Melhor fechar o jogo. Com três tiros que silenciam uma importante testemunha. Mas desconfortável", diz a reportagem do jornalista Daniele Mastrogiacomo.
A carta diplomática ainda ressaltou que o país é defensor do direito de opinião e da imprensa livre.
Embaixador pede esclarecimentos a jornal na Suíça
O embaixador brasileiro em Berna, na Suíça, Evandro Didonet, encaminhou uma carta de resposta ao jornal Blick devido à reportagem "Brasilien droht wegen Bolsonaro das Chaos" ou "Brasil sob ameaça do caos por causa de Bolsonaro", publicada em 6 de maio de 2020.
A reportagem suíça citava a saída conturbada de Sérgio Moro do Ministério da Justiça e Segurança Pública, quando ele denunciou que Bolsonaro estaria interferindo politicamente no trabalho da Polícia Federal. Para o Blick, isso estaria relacionado ao assassinato de Marielle Franco, já que o suposto atirador teria visitado o condomínio em que Bolsonaro morava, no Rio de Janeiro, após o ataque.
Na carta, Didonet afirma que a publicação não tinha fundamentos para dizer que Jair Bolsonaro estava tentando interferir nas investigações da Polícia Federal sobre o caso Marielle Franco. Segundo ele informa, as autoridades competentes seguiam "empenhadas no completo esclarecimento do crime e na punição dos responsáveis".
O embaixador ainda responde às críticas sobre um suposto uso da força para se manter no cargo, a situação dos militares no governo e sobre as políticas de combate à Covid-19.
Resumo de notícias: embaixadas monitoravam jornais e até atos contra o governo Bolsonaro
Os telegramas ainda mostram a prática dos embaixadores de enviar resumos de notícias com considerações sobre o que seriam ataques a honra do presidente, assim como aos interesses do governo brasileiro.
Os relatos seguem uma ordem cronológica, que você pode acompanhar logo abaixo. O primeiro telegrama obtido pelo SBT News é de 4 de novembro de 2019, enviado por Luís Fernando Serra, embaixador do Brasil em Paris, para o Itamaraty.
As correspondências se encerram em 9 de dezembro de 2020, quando o embaixador em Berlim, na Alemanha, Roberto Jaguaribe, faz uma análise de "notícias sobre o Brasil veiculadas nos principais veículos de comunicação alemães".
Críticas ao Le Monde sobre reportagem de TV e reação de Bolsonaro
O embaixador Luís Fernando Serra, em Paris, enviou uma carta para o Itamaraty, no dia 4 de novembro de 2019, em que tece críticas à reportagem do Le Monde, se referindo ao jornal como uma publicação de "linha editorial de centro-esquerda".
O Le Monde publicou no fim de semana de 1º e 2 de novembro de 2019 um artigo do correspondente Bruno Meyerfeld sobre a reação de Jair Bolsonaro a uma reportagem veiculada pela TV Globo, que noticiava que ele seria citado no inquérito policial sobre o assassinato da vereadora.
Telegramas da embaixada da Alemanha relatam queixa sobre armas, eleições municipais e extremismo
A edição de 30 de novembro de 2020 da revista Der Spiegel intitulada "Brasiliens Waffengewalt -- Made in Germany" ou "A violência armada no Brasil -- Fabricado na Alemanha" aborda o crescente número de assassinatos no Brasil.
A reportagem cita o aumento do registro de porte de armas no Brasil e afirma que a fabricante alemã Sig Sauer seria uma das principais fornecedoras do armamento para os brasileiros.
O texto ainda relata que uma das fabricantes, a Heckler & Koch, saiu do Brasil após o assassinato da vereadora do PSOL do Rio de Janeiro, Marielle Franco, vítima de uma emboscada, no qual uma submetralhadora fabricada pela empresa foi usada no crime.
Já o jornal Die Tageszeitung publicou em 30 de novembro de 2020 uma reportagem sobre as eleições municipais brasileiras, intitulada "Doch kein Sozialist für São Paulo" ou "Sem socialista para São Paulo".
No telegrama, o embaixador Roberto Jaguaribe destaca o trecho da matéria que cita a vitória de Eduardo Paes (PSD) por considerável margem para o então prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), "pastor da extrema-direita", que contava com apoio do presidente Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral. O resultado das eleições não foi positivo para o então presidente da República. Jaguaribe relata que a publicação ressaltou que o sistema político brasileiro é complexo.
Outra reportagem que atraiu a atenção do embaixador brasileiro foi também da revista Die Spiegel, "Ein Mord an einem schwarzen Mann geschieht überall meist nach ähnlichen Mustern" ou "O assassinato de um homem negro geralmente segue um padrão semelhante em todos os lugares", que fala sobre um caso de racismo no país, quando um homem foi morto em uma unidade do supermercado Carrefour, em novembro de 2020.
Um ativista e advogado dos direitos humanos, Marco Antonio André, falou em entrevista sobre o aumento dos movimentos de extrema-direita e racistas, estimulados por Donald Trump e Jair Bolsonaro.
"Colhe sucessos", diz publicação de direita elogiada por embaixador em Paris
Há também elogios e apoio. Em 5 de janeiro de 2020, em uma carta transmitida de Paris para Brasília, o embaixador Luís Fernando Serra considerou "de tom bastante positivo" a reportagem da revista Valeurs Actuelles, "Brésil: réforme des retraites, stabilité économique, lutte contre la délinquance... Bolsonaro engrange les succès" (Brasil: reforma da previdência, estabilidade econômica, combate à inadimplência... Bolsonaro colhe sucessos), que fez um balanço do primeiro ano do governo Bolsonaro diante de desafios.
"Mesmo que o desemprego, a violência e a corrupção continuem no cardápio de 2020, o progresso é visível em todos os lugares", relata trecho da matéria de tom otimista da Valeurs Actuelles.
No telegrama, Serra ainda relata que recebeu a autora da publicação em quatro ocasiões para passar os dados do governo brasileiro.
"Previamente a publicação da reportagem, a autora da matéria, a jornalista Virginie Jacoberger-Lavoué, foi recebida por mim em quatro ocasiões, nas quais pude apresentar-lhe elementos que foram por ela usados nessa e em outras matérias que fez sobre o Brasil", relata o embaixador no telegrama.
O Itamaraty disse à reportagem do SBT News, por meio da Secretaria de Assuntos Multilaterais Políticos, que esses foram todos os telegramas localizados nas unidades do órgão que se enquadraram nos parâmetros de busca indicados no pedido de Acesso à Informação.
Dos diplomatas citados na matéria, somente o embaixador do Brasil na Alemanha, Roberto Jaguaribe, e o embaixador do Brasil na Itália, Helio Vitor Ramos Filho, permanecem no corpo diplomático.
Indicado pelo governo Temer à Embaixada do Brasil na Suíça, Evandro Didonet foi substituido pela diplomata Cláudia Buzzi, em 2021. Luiz Fernando Serra também não está mais à frente da Embaixada do Brasil na França.
Em 23 de janeiro deste ano, o país concedeu agrément ao diplomata Ricardo Neiva Tavares para assumir a Embaixada de Paris. Ele ainda será sabatinado pelo Senado Federal.