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"Bolsonarismo é maior que o próprio Bolsonaro", diz analista

Para Salah Khaled, havia mobilizações que já se articulavam antes mesmo da ascensão do líder político

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Bolsonarismo é maior que o próprio Bolsonaro, diz analista
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O bolsonarismo -- movimento político iniciado por apoiadores do atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro (PL) -- é maior do que o próprio mandatário. Para Salah Khaled, historiador e doutor em Ciências Criminais, havia mobilizações que já se articulavam antes mesmo da ascensão de Bolsonaro como um candidato viável à Presidência da República. 

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"Creio que aquilo que nós chamamos de bolsonarismo é maior do que o próprio presidente Jair Bolsonaro", diz. "Pautas de intervenção militar, utilização das cores verde e amarelo, e uma série de valores que eram negociados publicamente, isso já se percebia antes. Em alguma medida, o bolsonarismo soube articular e se apropriar dessas pautas e transformá-las em uma espécie de capital político, que foi muito bem utilizado e viabilizou a sua eleição e quase reeleição", explica Khaled. 

Nas Eleições Gerais de 2022, Bolsonaro perdeu a disputa ao Planalto para Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por uma pequena diferença percentual. Após a vitória do petista nas urnas, bolsonaristas foram às ruas para protestar. Mais de uma semana após o 2º turno, algumas Rodovias seguem bloqueadas por apoiadores, que reinvindicam o resultado do pleito. 

Para Khaled, é difícil antecipar em que medida Bolsonaro vai permanecer tendo o controle da mobilização social em torno de sua figura. Segundo ele, a tendência é que os movimentos percam força com o tempo.

"Agora, não sendo mais Presidente da República, tudo isso se encontra muito em aberto. Como essas forças vão continuar a se mostrar visíveis na sociedade brasileira à medida em que os seus principais temores não forem confirmados? Quais vão ser os gatilhos?", diz. "A tendência é que o tempo vai passar e esses medos que não encontram respaldo na realidade não vão se configurar", acrescenta. 

O pesquisador explica ainda que, para compreender as razões dos bolsonaristas, é importante compreender, primeiros, quais são os propósitos aos quais elas se dedicam e como elas negociam significado por meio das manifestações. "Há uma série de forças retóricas que fazem parte dessa narrativa, que por diferentes razões vão se mostrar sedutoras para estas pessoas. Então não necessariamente elas se vinculam ao conjunto da obra,  mas se sentem seduzidas a participar desses movimentos", afirma. 

"A gente se encontra num momento muito agudo de luta pela expansão da cidadania, de pessoas que, ao longo da história, foram excluídas com base em categorias da biologia, gênero, raça, orientação sexual e assim por diante", explica Khaled. "É um momento em que tudo isso encontra em choque. A narrativa bolsonarista representa uma reafirmação de valores tidos como tradicionais que seriam ameaçados por algo que é, evidentemente, uma retratação grosseira simplificadora e demonizante do que são pautas legítimas", pontua. 

Ele ressalta que a retratação estereotipada dessas pautas por parte dos bolsonaristas envolve um alto nível de desinformação. "Isso faz com que certos gatilhos típicos daquilo que na criminologia nós chamamos de 'pânico moral' sejam acionados. E aí há uma percepção de que a esquerda, de modo geral, representaria uma ameaça para questões que são muito caras e muito significativas a essas pessoas", diz.

"E de fato, desarmar essa rede de desinformação em todos os seus níveis é algo muito complicado, que com certeza não se consegue da noite para o dia", arremata.

Confira a entrevista na íntegra:

Buscando a referência dessas últimas manifestações, a gente não está só falando dos caminhoneiros, mas também de protestos nas ruas com grande número de pessoas. Quem é esse grupo e qual a força dele? O que é importante para tanto o governo, quanto a própria oposição, observar esses seguidores mais fiéis do presidente Jair Bolsonaro?

Bom, eu penso que o importante para que a gente possa avançar um pouco em relação a essa discussão, e é justamente aquilo que tem ocupado meu tempo em termos de pesquisas, é como essas pessoas se sentem.

A gente consegue perceber como elas agem, devido a toda uma rede de desinformação muito bem articulada e subterrânea. A gente tem uma ideia razoável de como elas pensam e, a questão que me parece relevante, é como elas se sentem. E deixando bem claro que aqui na realidade nós estamos discutindo uma parcela bastante reduzida do eleitorado que votou no candidato Jair Bolsonaro. Estamos aqui discutindo o que move essas pessoas que estão participando desses atos, que podem ser definidos como anti-democráticos, atos através das quais as pessoas performam identidade, reconstroem a sua própria subjetividade e se sentem empoderadas. Então, se a gente tem alguma esperança de compreender as razões que movem essas pessoas, é importante compreender quais são os propósitos aos quais elas se dedicam, como que elas negociam significado por meio dessas manifestações. É claro que em algum nível, e muita gente tem tratado desse tema dessa forma, tudo isso parece um tanto quanto ridículo, porque as pessoas pedem uma intervenção militar, pedem algo que efetivamente não é compatível com os postulados de um Estado Democrático de Direito e a democracia, mas fato é que nós temos que compreender que aquilo que pode nos parecer insensato, ou ilegal, ou não razoável, segundo as nossas crenças, os nossos códigos morais ou até os códigos legais, não é necessariamente o circuito de significados em torno dos quais essas pessoas operam e funcionam. 

Como assim?

A gente tem todo um amálgama de questões que envolvem desde o conservadorismo até a questão armamentista, a homofobia ou combate à ideologia de gênero, a percepção de que se encontraria ameaçada a héteronormatividade, coisas nada razoáveis como por exemplo a ideia de que haveria uma implantação massiva de banheiros unissex, né? Ou uma sexualização de crianças ou um fechamento em massa de igrejas, e assim por diante, então há uma série de forças retóricas aqui que fazem parte da gente usar essa palavra que passou a fazer parte do nosso vocabulário, dessa narrativa que por diferentes razões vão se mostrar sedutoras para essas pessoas. Então não necessariamente elas se vinculam ao conjunto da obra, mas por diferentes razões, elas se sentem seduzidas a participar nesses movimentos e nessas operações conjuntas, até porque tem um quê de identidade envolvido. A vida a gente sabe que é bastante rotineira, enfadonha, com seus controles normativos laborais, e o fato é que as pessoas participam dessa cerimônias públicas coletivas, elas negociam identidade, pertencimento, ela se sentem como pessoas que fazem parte de uma fraternidade, de um grupo que luta por uma causa comum. 

Isso vai se manter? Qual é o alcance? O que podemos antecipar para os próximos anos?

A gente tem aqui duas perspectivas. Uma delas, que me parece evidente, é que grande parte desses medos encontram sustentação na realidade, como por exemplo aquele relacionado ao fechamento maciço de igrejas, isso evidentemente não vai acontecer, até porque a mesma ordem democrática que foi testada de forma tão severa nos últimos meses, nos seus limites, e que resistiu a esse teste, ela serviria como um bloqueio a qualquer pretensão nesse sentido caso de fato, ela viesse surgir. Qualquer espécie de cerceamento de liberdades constitucionais encontraria nas nossas Cortes e nas nossas instituições o mesmo tipo de limite. A tendência é que o tempo vai passar e esses medos que não encontram na realidade respaldo empírico, ou seja, na vida concreta efetivamente vivida, não vão se confirmar. E também vai surgir a sensação de que efetivamente esses movimentos, eles não são compressivos como se gostaria de se dizer que são e vai surgir a sensação de que eles não estão produzindo nenhum resultado. Então, a tendência é que perca força com o passar do tempo, até porque não existe nada equivalente à apropriação que o Trump fez do Partido Republicano, e certamente o agora ex-presidente não vai ter a mesma capacidade de mobilização.

Qual é o perfil desse grupo? Em que momento ele se associa ou ele toca também num grupo mais religioso, no caso, mais especificamente dos evangélicos?

Eu acho que a primeira coisa que a gente tem que ter em mente para evitar uma simplificação de algo que por significado não é tão simples de ser rastreado é que esse grupo não é homogêneo. Por exemplo, há uma conjugação de pautas paralelas que se cruzam e formam uma espécie de amálgama, através do qual diferentes sujeitos e diferentes categorias acabam integrando essa sua cultura. Então, por exemplo, me parece bem distinta a questão daqueles que têm uma identificação muito vinculada a esse bolsonarismo por força da questão armamentista, com todas as ansiedades relacionadas à questão da posse de armas de fogo. Inclusive tem um artigo que eu escrevi com um parceiro que é o José Antônio Gerson Rubinho, que envolveu a etnografia dentro de clubes de tiros. A posse de armas para as pessoas significa uma série de coisas. Não é só um objeto material, ter uma arma de fogo também uma forma de lidar com as próprias ansiedades em relação ao mundo que parece cada vez mais instável e inseguro. Então essa é uma dimensão.

Uma dimensão bem distinta é aquela relacionada às igrejas evangélicas por uma visão daqueles que participam dessas culturas. E aqui quando eu falo cultura, não é com qualquer sentido pejorativo, dentro de uma sociedade a cultura não é uma só, tem diferenças culturais sobre os mais diferentes assuntos. Então a gente pode dizer que existe uma cultura religiosa que é evangélica, que tem toda uma série de valores, toda uma cosmovisão, uma forma de ver o mundo que é refratária a uma série de pautas que são típicas da esquerda.

De que forma?

A gente se encontra num momento muito agudo de luta pela expansão da cidadania, de uma série de pessoas que ao longo da história foram excluídas com base em categorias em biologia, gênero, raça, orientação sexual e assim por diante. E o nosso momento é um momento em que tudo isso se encontra em choque. Se colocando ao lado dessa narrativa bolsonarista, que representa digamos assim uma reafirmação de valores tidos como certos, como corretos, como tradicionais, que seriam ameaçados por aquilo que é evidentemente uma retratação grosseira simplificadora e demonizante do que são partes legítimas, a gente percebe como são construídos essa subjetividade. 

Claro que nós sabemos que essa retratação demonizada, estereotípica, das pessoas que carregam essas bandeiras de expansão de cidadania, ela envolve um nível de desinformação muito grande, que é o que gera nessas pessoas, pelo menos nessas que já têm adesão ao bolsonarismo, nós perceberemos como mais vinculada à questão religiosa, ao evangelho. Isso faz com que certos gatilhos típicos daquilo que na criminologia nós chamamos de ?pânico moral? sejam acionados. E aí há uma percepção de que a esquerda de modo geral representaria uma ameaça para questões que são muito caras e muito significativas a essas pessoas

Então a gente tem um embate que em alguma dimensão é político, mas que na realidade está para muito além das fronteiras da política. Ele toca na própria identidade, na própria subjetividade das pessoas, em coisas que a elas são muito caras. E de fato desarmar essa rede de desinformação em todos os seus níveis é algo muito complicado , que com certeza não se consegue da noite para o dia.

O que o senhor imagina que esse grupo pode favorecer até determinado tempo essa força do próprio Presidente Jair bolsonaro como candidato para a próxima campanha eleitoral?

Eu acho que isso está muito em aberto. Por diversas razões, dentre elas, me parece impossível que a gente não especule sobre o destino do próprio Jair Bolsonaro a partir do ano que vem, uma vez que ele vai perder a prerrogativa de foro e várias das questões que foram levantadas aí ao longo do mandato vão ser objeto de discussão na justiça comum. Então, isso é algo sobre o qual a gente não tem condições de especular no momento, evidentemente que haverá investigações e Bolsonaro, como qualquer cidadão brasileiro, tem direito a todas as prerrogativas do devido processo penal com as suas garantias e respeito a direitos fundamentais.

Então aqui a gente tem o desdobramento que ainda não é possível antecipar. Como que essas questões vão se resolver ao longo dos próximos meses, inclusive com certos sigilos que serão levantados e assim por diante. A gente não sabe que rumo isso pode tomar. E independentemente dessa questão, eu creio que aquilo que nós chamamos de bolsonarismo é maior do que o próprio presidente Jair Bolsonaro. Havia movimentos que a gente já percebia que na realidade se articulavam antes da própria ascensão do Bolsonaro como um candidato viável a Presidente da República. 

Quais, por exemplo?

Essas pautas de intervenção militar, a utilização das cores verde e amarelo, e uma série de valores que eram negociados publicamente, e que em alguma medida o bolsonarismo soube articular e se apropriar dessas pautas e transformá-las em uma espécie de capital político, que foi muito bem utilizado e que viabilizou a sua eleição e quase reeleição

Então se o Bolsonaro sai desse tabuleiro, por força de eventuais processos judiciais ou mesmo se ele permanecer não mais como Presidente da República, parece que esse patrimônio, esse capital político estará em disputa por diferentes atores, e isso em alguma medida é inevitável. Então é difícil antecipar em que medida ele vai permanecer tendo o controle disso. Na realidade, a gente teve algumas iniciativas recentes como a TV Bolsonaro, a própria estética que o presidente utilizou na última transmissão com uma camiseta cinza que você assemelha aos trajes do presidente da Ucrânia, sugere que ele esteja disposto a adotar um outro tipo de postura.

Em que medida essas forças vão continuar se mostrando visíveis na sociedade brasileira à medida em que os seus principais temores não forem confirmados? Quais vão ser os gatilhos? Porque a gente teve agora nesses últimos movimentos ocupações de estradas e protestos pedindo intervenção na frente dos quartéis, a gente teve um gatilho de urgência muito forte. Então muitas dessas questões estão em aberto.

Há uma direita digamos assim que é mais tradicional e eu diria mais ciente de certos valores democráticos que foi praticamente esmagada na última eleição. O grande desafio dessa direita, vamos pensar aqui em termos de um MDB ou um PDT, talvez centro-direita, de partidos mais equilibrados, é encontrar um espaço diante do que se estabeleceu como uma polarização esquerda e extrema direita. Então a gente tem que ver como tudo isso vai se desenrolar nos próximos meses. A tendência é que a gente entre agora em um ambiente institucional de pacificação, até porque há um histórico pregresso de administrações do PT nesse sentido, por mais que se possa fazer algumas críticas justificadas nos governos do PT. O fato é que houve um respeito à separação de poderes, as instituições determinavam limites, havia liberdade completa para investigar e assim por diante. Então a gente vai retornar um ambiente digamos assim de normalidade democrática.

E aí a atenção vai vir de outro pólo. Como que esses afetos do bolsonarismo serão mobilizados em termos de protestos e quais serão as questões que vão mobilizar as pessoas a ocupar esses espaços públicos, nesse sentido, fazendo manifestações que para elas parecem legítimas. Essa é uma questão importante, referir o caráter transgressor, mas na realidade, desde a subjetividade à interioridade dessas pessoas, elas efetivamente estão participando do que é uma cruzada contra o mal. E isso explica muito bem o nível de adesão. Não há uma consciência de que isso contraria determinados mandamentos legais e  inclusive questões penais, em termos de incitação das Forças Armadas agir contra outras instituições.

Essas pessoas se informam por outros canais. E dentro desses canais, até dentro de uma ótica de pós-verdade,as informações que são recebidas são aquelas que confirmam essa visão de mundo que já se consolidou. Então de fato é um cenário muito complexo sobre o qual no momento atual a gente só pode especular, quais vão ser os atores que vão disputar a eleição em 2026, né? Isso a gente vai ter que esperar um pouco para poder falar sobre isso, digamos assim, com mais subsídios. Agora é só especulação.

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