Mudanças climáticas podem ter contribuído para chuvas em PE, RJ e BA
Zona de convergência do Atlântico Sul e Ondas de Leste apresentaram anomalias, segundo especialista
Guilherme Resck
Tragédias em decorrência de fortes chuvas marcaram o primeiro semestre de 2022 no Sudeste e no Nordeste do Brasil. Foram atingidas cidades de Minas Gerais, São Paulo e Petrópolis (RJ), que registraram mortes no período. Bahia e, mais recentemente, Alagoas e Pernambuco também foram castigados pelas chuvas. Os fenômenos por trás dessas precipitações ocorrem todos os anos e são conhecidos dos especialistas, mas, desta vez, apresentaram características incomuns, que levaram a eventos acentuados e extremos e para as quais as mudanças climáticas causadas pelo aquecimento global podem ter contribuído.
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Segundo Moacyr de Araújo Filho, coordenador científico da Rede Clima e vice-reitor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e o doutor em geografia e pesquisador Wesley Correa, do Instituto de Estudos Climáticos da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), a chamada Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS), uma zona de bastante umidade formada a partir da evaporação na região da Amazônia e que, com os ventos vindos do oceano e da Cordilheira dos Andes, transporta esse vapor d'água para o Sudeste do país, foi a responsável pelas precipitações na Bahia, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro; e as Ondas de Leste, que consistem no transporte de umidade da costa africana para a América do Sul, em especial para a borda leste do Nordeste brasileiro, por meio de ondas atmosféricas, causaram as chuvas em Pernambuco e Alagoas.
Wesley explica que a ZCAS provoca as precipitações "no Hemisfério Sul, sobretudo na América do Sul, entre outubro até março e às vezes se estende para as primeiras semanas de abril". Ela abrange toda a região centro-oeste do país, sul baiano, o território mineiro, Espírito Santo, São Paulo, Rio de Janeiro, parte do Paraná e parte do Tocantins. Sua principal característica é provocar chuvas fortes. "Geralmente, quando tem a zona de convergência do Atlântico Sul, as chuvas persistem por até quatro dias ou mais. Houve casos de a gente já ver eventos da ZCAS choverem aproximadamente 11 dias ou até, teve um em Vitória uma vez que, claro que teve um dia que ela praticamente parou, mas foram 13 dias seguidos", completa o especialista.
Entretanto, de acordo com Moacyr de Araújo Filho, em 2022 a ZCAS se comportou de forma diferente do observado nos anos anteriores. Normalmente, afirma, ela se concentra no Sudeste, mas, neste ano, houve "uma alteração tanto na localização como na dinâmica dessa zona mais úmida". "Na verdade ela se deslocou mais ao norte e depois foi descendo progressivamente até chegar ao Rio de Janeiro. É por isso que nós tivemos essas chuvas acentuadas, inclusive com eventos extremos de precipitação", acrescentou. Uma "anomalia" foi observada também nas Ondas de Leste, que são comuns na transição para o inverno e no inverno, no Hemisfério Sul, e ocorrem quando frentes frias deste chegam ao continente africano e, assim, causam a liberação de ondas de pressão direcionadas ao Oceano Atlântico - as quais seguem para a América pelos ventos alísios. No caso delas, segundo Moacyr, desta vez, está havendo "um transporte muito acentuado de umidade".
Além disso, explica, quando as Ondas de Leste se aproximam da borda leste do Brasil, ocorre a chamada piscina quente do Atlântico Sudoeste, uma região com "temperatura muito elevada" no oceano, em que a superfície do mar chega a mais de 27 ou 28ºC ao longo do ano, mas, em 2022, "ela também estava mais quente". "E com essa temperatura mais alta, o oceano cede energia, o calor latente cede energia para essas Ondas de Leste que estão passando. Então, na verdade, essas chuvas que nós observamos aqui na borda leste, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, são extremos de chuvas, que são decorrentes da combinação desses dois fatores que estavam mais intensos do que o normal".
Moacyr diz não ter "dúvida" de que as mudanças climáticas causadas pelo aquecimento global contribuíram para a ocorrência das anomalias nos fenômenos. Ele relembra que uma das principais características dessas transformações dos padrões de temperatura e clima é a intensificação e aumento de frequência de eventos extremos. "Sejam furacões, ciclones tropicais, extratropicais, secas mais prolongadas e mais intensas e também eventos de precipitação como esse, que estão sendo cada vez mais frequentes e mais intensos. Então esses dois fenômenos, inclusive a alteração da ZCAS, tem uma relação grande, eu diria, inclusive com o desmatamento daquela borda leste da Amazônia. Então, isso tudo está influenciando para que a gente tenha uma situação completamente diferente daquilo que seria o normal observado há 20, 30, 40, 50 anos", pontuou.
No Brasil, conforme o coordenador científico da Rede Clima, o desmatamento da Amazônia é a principal causa de emissão de gases de efeito estufa -- responsáveis pelo aquecimento global --, por causa dos incêndios, respondendo por cerca de 50% da emissão total no território brasileiro. "Então é absolutamente urgente que nós acabemos com essa curva ascendente de desmatamento que nós vimos sobretudo a partir de 2015 e 2016, e que nós consigamos voltar àquela situação que nós tínhamos antes, no início dos anos 2000, até 2012, 2013, em que nós estávamos progressivamente reduzindo de forma importante", falou Moacyr. No último mês de abril, houve recorde na soma das áreas de alerta, feito pelo Deter, de desmatamento e degradação na Amazônia, com 1.013 km² -- o equivalente a 1.389 campos de futebol --, e em maio, a floresta registrou o maior número de focos de incêndio para o mês desde 2004.
A principal forma de impedir o aquecimento global, acrescenta o vice-reitor da UFPE, é reduzir "drasticamente" as emissões de gases de efeito estufa. "Nós temos pouco mais de 90 meses até o prazo que foi dado com relação à nossa década para tentar fazer com que a temperatura não exceda 1,5ºC. E para isso nós temos que descarbonizar a nossa economia. Isso do ponto de vista global, mais geral", afirmou. Segundo o Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado no ano passado, em média a temperatura global deveria alcançar ou ultrapassar 1,5ºC de aquecimento nos próximos 20 anos -- comparado ao nível pré-industrial -- e, dessa forma, fazer com que crescessem os processos de mudanças climáticas já vivenciados em todas as regiões do planeta.
Wesley Correa analisa que o aquecimento global pode ter contribuído para o aumento da intensidade e volume das chuvas observado em Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Alagoas e Pernambuco neste ano. Porém, diz ainda que o La Niña, fenômeno que consiste na diminuição da temperatura das águas do Pacífico e, assim, intensificação das frentes frias, pode ter contribuído também para a ocorrência das precipitações nos níveis observados. Além disso, no caso de Petrópolis, a transição entre as águas quentes e frias no mar próximo ao Rio de Janeiro -- comum no final do verão -- pode ter influenciado; a transição gera nuvens instáveis, que os ventos sobre o oceano levam para dentro do continente.
Chuvas no futuro
De acordo com Moacyr, por causa das mudanças climáticas causadas pelo aquecimento global, a previsão é que chuvas como essas observadas no Nordeste e Sudeste se tornem cada vez mais frequentes e intensas. "Isso é muito grave, está documentado. Isso vem sendo anunciado, inclusive, há muito tempo, sobre essa possibilidade, e agora está se transformando em realidade de termos esses eventos mais frequentes e mais extremos. Continuamos, na verdade, a excitar o planeta de uma forma muito acentuada, continua o lançamento de gases de efeito estufa", pontua.
Wesley também afirma que o aquecimento global influenciará no volume de precipitações no futuro. "Isto todos os estudos apontam: num momento muita chuva e em outro menos chuva. Só que esses fenômenos que às vezes ocorria a cada um, dois, três anos, agora serão cada vez mais recorrentes". Ele classifica as mudanças climáticas por causa do aquecimento como "preocupantes", ainda porque mais ondas de calor vem se espalhando no mundo e tanto tempestades como secas serão mais intensas. Para o especialista, "minimizar os efeitos do processo de aumento da temperatura média do planeta tem que ser uma política urgente dos nossos governantes". "Não adianta eu continuar desmatando a Amazônia, que é um ecossistema extremamente importante para a nossa chuva, não adianta eu querer desmatar o cerrado, que é outro ecossistema importante, não adianta eu querer desmatar a Mata Atlântica, acabar, e achar que tudo vai continuar normal. Eu ter cidades com cada vez mais indústrias, mais carros e nenhuma política para minimizar o impacto do CO2 na atmosfera. Não adianta as queimadas continuarem".
No Brasil, avalia, o aquecimento global impacta o setor elétrico, quando o país não consegue encher os reservatórios das hidrelétricas -- como na crise hídrica iniciada no ano passado -- e a agricultura, "seja com falta de chuva, seja com chuva a mais e também até mesmo aqui para a região Sul e Sudeste com temperaturas muito mais baixas do que o normal".
Proteção da vida
Foram mais de 100 mortos por causa das fortes precipitações em Petrópolis, em fevereiro deste ano, e mais 20 na Bahia entre dezembro de 2021 e janeiro de 2022. Em Pernambuco, houve 128. Essas chuvas, assim como a de Minas Gerais, Alagoas e São Paulo,de acordo com o vice-reitor da UFPE, são fenômenos chamados "sinóticos, ou seja, eles acontecem muito rapidamente", mas é possível prevê-los e melhorar a previsão. Ele classifica como "tragédia maior", entretanto, o fato de as autoridades não conseguirem deslocar as populações das áreas de risco. Nas palavras do especialista, "são justamente as pessoas menos favorecidas que sofrem mais". "Então eu acho que a grande tragédia na verdade é a nossa incapacidade de reduzir a desigualdade social que existe no nosso país. Numa situação como essa, em um país mais organizado, num país em que as pessoas pudessem manter uma condição mais digna de habitação, não habitassem nas beiras dos córregos e dos rios, nas encostas, com certeza o estrago não seria desse tamanho", completa. Dessa forma, ele defende uma revisão do plano diretor das cidades.
O pesquisador da Ufes faz uma análise similar. Conforme ele, a chuva deflagrou problemas já existentes nas regiões atingidas, que são falta de moradia adequada, falta de planejamento adequado e inexistência de uma "gestão pública que considere as intempéries climáticas". "Então, quando você tem uma chuva volumosa, acima da normal climatológica, e a normal que é acima da média do período esperado, quando você tem essa chuva e não tem o planejamento, a sociedade fica à mercê dessas coisas. Então o planejamento é extremamente necessário para evitar esse tipo de situação que nós não queremos. Que é o quê? São mortes, são pessoas despejadas, pessoas sendo impactadas muito intensamente por causa das chuvas".
Wesley avalia que esses problema de falta de preparo prévio é estrutural no país e diz que outra forma de evitar mortes em decorrência das chuvas é as autoridades ouvirem os órgãos responsáveis pelo monitoramento atmosférico, como o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), que já havia alertado para a ocorrência das fortes chuvas em Pernambuco e Alagoas e as da ZCAS. "Então, assim, você tem às vezes todo um problema não só na comunicação, mas de como que os gestores ou a prefeitura, o governo do estado recebe essa informação e às vezes não repassa para a sociedade", declarou.