Novo ensino médio deve acentuar desigualdade escolar, avalia especialista
Ausência de recursos e falta de infraestrutura podem impactar na reforma curricular

Camila Stucaluc
O chamado Novo Ensino Médio começa a ser implementado em todo o sistema educacional do Brasil a partir deste ano. Aspectos como a ampliação de carga horária, base curricular mais flexível e projetos direcionados ao mercado de trabalho compõem a nova organização de ensino, que deve ser adotada por todas as unidades escolares, gradualmente, até 2024. A reforma, no entanto, é questionada por alguns professores, que acreditam que o novo método pode acentuar a desigualdade escolar no país.
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Para Flávia Monteiro, doutora em educação e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), as mudanças na organização curricular podem ser prejudiciais para as escolas que já sofrem com ausência de recursos e falta de infraestrutura, aumentando, além da desigualdade, a fragilidade na formação dos estudantes. "Embora os conhecimentos que integram a Base Nacional Comum Curricular estejam previstos por lei, apenas a língua portuguesa e a matemática são obrigatórias ao longo dos três anos de escolaridade. E os demais? Indago, por exemplo, se os conhecimentos do mundo físico social, histórico não são importantes para formação do jovem?", questiona.
Na definição do Ministério da Educação (MEC), o novo plano curricular, aprovado por lei em 2017, é responsável por disponibilizar "ofertas de diferentes possibilidades de escolhas aos estudantes" e "aproximar as escolas à realidade atual dos alunos, considerando as novas demandas e complexidades do mundo do trabalho e da vida em sociedade". Com a ampliação de 800 horas para mil horas anuais e uma oferta mais flexível do plano curricular, um grupo de itinerários formativos foi criado, englobando disciplinas, projetos, oficinas, núcleos de estudo e situações profissionais. Segundo a pasta, a reforma tem como objetivo contribuir para o maior interesse dos jovens em frequentar as escolas.
Na prática, o Novo Ensino Médio compila matérias já existentes em novos componentes curriculares, definidos pelas competências e habilidades apresentadas. Disciplinas antes individuais como filosofia, geografia, história e sociologia, por exemplo, passam a ser classificadas como área de conhecimento integrada, denominada Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Apesar de se tornar um padrão, os conteúdos e conhecimentos de cada componente serão definidos de acordo com os projetos pedagógicos de cada unidade de ensino, considerando as particularidades e características de cada região.

"Tal processo [aprovação da medida] foi marcado pela ausência de diálogo com os profissionais da educação, associações representativas da área e instituições escolares", pontua Flávia. "Isso colocou em evidência o protagonismo e a influência de grupos empresariais da educação que invadiram com suas propostas o campo educacional", acrescenta. Em sua visão, o projeto só seria implementado corretamente caso as instituições de ensino recebessem os meios necessários, como a adoção de uma melhor infraestrutura (laboratórios, quadras esportivas e bibliotecas), e um maior investimento nos profissionais da educação, que precisam de tempo para aperfeiçoar os itinerários e realizar planejamentos. "É preciso ir além da retórica e da intenção", ressalta a especialista.
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A educadora também pondera que muitas unidades de ensino terão pouca ou nenhuma diversidade nos itinerários, uma vez que as escolas sofrem com o contexto socioeconômico no qual estão inseridas. "O país é desigual. Em determinadas realidades, o aluno irá cursar o que a escola oferece. Talvez nas escolas voltadas para uma clientela de classe média possamos encontrar itinerários voltados para diversas áreas, mas esta não é a realidade de todos. E, ainda, o itinerário formativo enfatiza e é organizado dentro de uma determinada área do conhecimento, há um foco que pode ocasionar por um lado o aprofundamento em determinada área e, por outro, um tratamento ligeiro das demais", explica.
Outra característica do novo modelo é a possibilidade do estudante optar por uma formação profissional e técnica dentro da carga horária do ensino médio regular. Ao final dos três anos, os sistemas de ensino deverão certificá-lo no ensino médio e no curso técnico ou nos cursos profissionalizantes que escolheu. Além disso, o estudo da língua inglesa torna-se obrigatório. Caso desejem, os sistemas de ensino também podem ofertar outras línguas estrangeiras, com preferência para o espanhol, de acordo com a recomendação do MEC.

Inicialmente, o Novo Ensino Médio estava planejado para começar a ser implementado nas escolas em 2020, mas foi alvo de protestos por estudantes e professores para não ser adotado durante a pandemia de covid-19. A reforma deve atingir, inicialmente, alunos da primeira série, seguido pelo planejamento de itinerário para as duas séries seguintes.
A reportagem do SBT News entrou em contato com o Ministério da Educação para solicitar um posicionamento do possível aumento da desigualdade escolar devido à reforma curricular, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto.