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Brasil

A burocracia a favor do lobby do fumo

Programa de apoio a agricultores que trabalham com tabaco está em xeque por falta de recursos. MP quer saber qual a relação entre secretário federal e indústria do cigarro

Imagem da noticia A burocracia a favor do lobby do fumo
Plantação de tabaco na região de Sinimbu, interior do Rio Grande do Sul. Foto: Arquivo pessoal
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Lenice Carvalho, 30 anos, cresceu e viveu nas plantações de tabaco. Repetiu até aqui a história da família, moradora de Sinimbu (RS), a 200km da capital Porto Alegre. Mas, ao contrário dos pais, a agricultora começa a sair do ciclo da monocultura do fumo. Ela e o marido, Seloir Carvalho, são dois pontos fora de uma curva que imprime um traçado quase impossível de ser desfeito por plantadores da região, na maioria vinculados à indústria do cigarro.

Em mais dois anos Lenice, a partir dos próprios cálculos, conseguirá se sustentar com a colheita de melancia, além da produção de farinha de milho. "Decidimos reduzir as plantações de fumo, que são muito mais duras, e, em 2022, não teremos mais tabaco aqui na nossa propriedade. Mas sabemos o quanto isso é difícil para a grande maioria dos agricultores da nossa região. Eles não conseguem isso que a gente está conseguindo."

Lenice e o marido Seloir na lavoura de feijoa: cada vez mais longe do tabaco. Foto: Arquivo pessoal

A mais de 2.000km de Sinimbu, a burocracia fria de Brasília leva a dois caminhos: os exatos e os tortuosos. Dentro de gabinetes da Esplanada dos Ministérios, políticas públicas são impulsionadas ou asfixiadas, influenciando a vida de brasileiros. Uma das ações mais relevantes na atenção aos agricultores que trabalham na lavoura de tabaco pegou a segunda rota.

O Programa Nacional de Diversificação de Áreas Cultivadas com Tabaco (PNDACT) apoia a agricultores ligados à indústria fumageira. Nos diversos níveis burocráticos, está pendurado na Secretaria de Agricultura Familiar e Cooperativismo, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. O PNDACT é um desencadeamento de uma convenção da Organização Mundial da Saúde (OMS). O tratado é o que mais recebeu adesões do organismo internacional, com o apoio de 181 países, incluindo o Brasil.

O programa foi criado para estimular que o produtor trabalhe com outras culturas - não necessariamente para deixar o tabaco de lado, mas para se libertar da dependência das empresas compradoras do fumo. Desde janeiro de 2019, o órgão é comandado por um ex-prefeito de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, o emedebista Fernando Schwanke. Ele chegou ao posto indicado pelo deputado Alceu Moreira (MDB-RS), que, em eleições anteriores, recebeu doações da indústria do cigarro. Atualmente, Moreira é presidente da Frente Parlamentar da Agricultura.

Uma ciranda de relações entre Moreira, Schwanke e a indústria do cigarro avança a partir daqui. Moreira e Schawanke, segundo levantamento do SBT News, se encontraram oficialmente pelo menos três vezes no Ministério da Agricultura (Mapa): em 3 de abril e 26 de junho de 2019 e em 3 de setembro de 2020. O último encontro durou uma hora.

A assessoria do congressista diz que ele não indicou o nome de Schwanke para o cargo na pasta, mas fez apenas uma sugestão à ministra Tereza Cristina.

"A escolha foi dela com base no currículo dele." Questionada sobre os assuntos tratados nas agendas públicas de Schwanke, a assessoria de Moreira disse que o político tem agenda no ministério todas as semanas, incluindo outros secretários e a própria Cristina. "Não tem como confirmar os temas, até porque o deputado é presidente da frente parlamentar." Nas eleições de 2014 -a última em que foi permitida a doação de empresas-, Moreira foi o destinatário de R$ 140 mil de companhias de fumo. Da Philip Morris do Brasil Indústria e Comércio -fabricante da marca Marlboro-, o deputado gaúcho recebeu, via diretório nacional do partido, duas doações de R$ 50 mil, conforme consulta no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). 

A companhia Philip Morris é uma das líderes do setor de cigarros no Brasil e aparece ligada ao secretário de Agricultura Familiar Schawanke por dois motivos e circunstâncias recentes. Em julho de 2020, Schwanke fez questão de registrar em perfis nas redes sociais um evento para doações de máscaras e alcool em gel a produtores do Vale do Rio Pardo (RS), onde está parte da base eleitoral. "A ação é resultado da parceria entre philipmorrisbrasil, o mapa_brasil e ematerrs, com a articulação do deputado alceu_moreira", escreveu o secretário.



A Philip Morris também está presente na vida familiar de Schwanke. Gabriela, a filha do secretário, trabalha na área de comunicação da empresa, conforme mostra o perfil dela em redes sociais. Segundo a descrição, ela é responsável por promover o "alinhamento" e a colaboração dos funcionários da empresa e as diferentes áreas de atuação. Ao ser questionada pelo SBT News sobre eventual conflito de interesse, a assessoria especial de comunicação social do Ministério da Agricultura disse que "responde por assuntos institucionais do Mapa e não por questões de caráter pessoal". A Philip Morris, por sua vez, afirmou que não divulga informações sobre o quadro de funcionários.

A proximidade de Schwanke com a indústria do cigarro e o travamento do programa de diversificação do tabaco -comemorado por empresas fumageiras- chamou a atenção do Grupo de Trabalho do Ministério Público da região Sul do país. Os procuradores devem ouvir formalmente Schwanke sobre a influência do lobby da indústria contra as medidas no apoio aos agricultores. A partir das respostas, o grupo pode tomar medidas contra eventual desrespeito ao tratado assinado pelo Brasil com a OMS ainda em 2005.

"O governo brasileiro ratificou a Convenção-Quadro. O Brasil sempre esteve à frente do controle do tabagismo e assumimos um compromisso diante do mundo", disse ao SBT News a procuradora Margaret Matos de Carvalho. Segundo ela, a preocupação sempre esteve nos pequenos agricultores, por causa da expectativa de que ocorra uma redução no consumo de produtos do tabaco. "É claro que essas pessoas serão afetadas diretamente com a queda das vendas. Assim, é necessário ter uma alternativa, e o programa apresenta parte dessa resposta."
 

Orçamento


O SBT News buscou o caminho labiríntico da política pública de atenção ao pequeno agricultor da lavoura do tabaco. A partir de entrevistas com integrantes do Ministério Público, médicos ligados a entidades de controle do tabagismo, plantadores de fumo, funcionários públicos e análises de dados públicos ou disponibilizados a partir da Lei de Acesso à Informação (LAI), é possível avaliar a dificuldade orçamentária e o risco de continuidade do programa de diversificação de áreas cultivadas com tabaco.

Em ofício enviado em 16 de julho de 2019 à Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater) -responsável por repassar recursos para o PNDACT- Schawanke determina que o órgão promova corte de 51% no orçamento. No mesmo documento, o secretário de Agricultura Familiar diz que o plano de diversificação da cultura do tabaco pode ser "totalmente revisto". O político diz que, sob a sua chefia, a secretaria "implementará" outro projeto de diversificação, "sem o ataque constante" à cultura do fumo.

 



 

Orçamento em queda


Em resposta a um pedido pela Lei de Acesso à Informação sobre os recursos destinados ao PNDACT, o Ministério da Agricultura confirmou a queda de 36% de 2008 -quando foram liquidados R$ 892 mil- para 2014. A partir de 2015, entretanto, não há valores liquidados. Em 2019 e 2020, não há registros de ações para o programa. Nesse período as atividades foram realizadas pela Anater, a partir de contratos com organizações públicas e providas. Ao SBT News, o Mapa informou que a previsão de recursos para 2021 é de R$ 11.304.745, mas não deixa claro se o valor corresponde a restos de contratos, pela própria falta de planos para o próximo ano. Segundo a pasta, o programa, operado pela Anater, tem contratos com 13.314 famílias na região Sul do país.
 

Risco de abandono


A procuradora Margaret afirma que, caso se confirme a relação do secretário com a indústria do cigarro, ele estaria infringindo a Lei 12.813, que dispõe sobre conflito de interesses. "Não há dúvidas sobre a importância do cargo. Nesta pasta está toda a política de agricultura familiar." Segundo ela, a partir de denúncias de agricultores e organizações, é preciso buscar explicações sobre o suposto conflito.

Em entrevista ao SBT News, Evandro Oliveira, mestrando em desenvolvimento rural na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), diz que não tem conhecimento sobre os ataques "constantes" feitos, a partir do programa de diversificação do tabaco, contra a cultura do fumo. "Não identifico isso. Estive ao longo da pesquisa em vários municípios e não vi ataques à cultura do tabaco. O que há é uma tentativa de criar alternativas ao fumo, mas que precisam de assistência técnica e apoio do governo."

Oliveira teme que, com os cortes de recursos, o programa de diversificação seja abandonado. "Ao longo dos anos esse programa foi sendo desmantelado." Parte dos produtores do tabaco não querem necessariamente deixar a atividade. "O que eles querem é não se manter dependente da cultura do tabaco, pois essa dependência leva as famílias a um endividamento. Essas famílias precisam encontrar outras fontes de renda. Caso contrário, irão passar por grandes dificuldades nos próximos meses."

A agricultora Lenice, apresentada no início desta reportagem, afirma que na safra do ano passado perdeu R$ 20 mil. "Até tinha compradores, mas os valores negociados foram mais baixos", diz ela. O problema é que quem determina o preço e a própria qualidade do fumo são os compradores ligados à indústria, o que leva os valores ao chão. A próxima safra de Lenice será de 25 mil pés. Em 2021, tal número cairá para 10 mil. "Depois a gente espera sair da cultura, muito custosa e pouco lucrativa."

Hoje, segundo dados da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), há 138 mil famílias trabalhando com o tabaco nos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul - os produtores mais relevantes. Assim, o programa de diversificação atende menos de 10% dos núcleos. É preciso considerar que as estimativas para a safra de tabaco caíram nos últimos dois anos. A previsão para 2020/2021 será de 607 mil toneladas, uma redução de 4% em relação a 2018/2019 (633 mil toneladas).

Em resposta à reportagem do SBT News, os técnicos do Mapa disseram que existe uma demanda de entidades que realizam as ações. "Porém, só haverá nova chamada ou novos convênios com as empresas de assistência técnica dos três estados do Sul, após a avaliação dos resultados da aplicação dos recursos públicos e na geração efetiva de renda, a partir dos projetos de diversificação dos produtores atendidos."

"O que a gente vê que já tem um alcance limitado do programa de diversificação, no momento de queda nas safras do tabaco. E a gente não vê nenhuma sinalização da Anater ou da Secretaria de Agricultura Familiar para novos contratos. O que a gente vê é uma insegurança dos próprios agricultores", diz o pesquisador Oliveira, que é filho de plantadores de tabaco. "Nem todo mundo quer deixar de plantar fumo, isso é impossível. Mas quem quer sair hoje tem muita dificuldade", completa Lenice.
 

Outros lados


Sobre as revisões no programa de diversificação, o Mapa respondeu:

"A partir das ações locais de diversificação, que já ocorrem há mais de 30 anos, partindo dos municípios, dos estados, das entidades representativas dos agricultores, como a Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), e das próprias empresas. Existem grandes ações para a diversificação.  Nesse sentido, o Mapa avalia o que já existe - para potencializá-las - e trabalha para a construção de outras alternativas viáveis, como o atual projeto, que está em andamento, no Vale do Rio Pardo (RS). Tal projeto conta com a participação da FAO e Universidade de Santa Cruz para a construção de uma cadeia produtiva para a produção de óleos essenciais a partir de plantas aromáticas e medicinais e que se insere no Centro Vocacional Tecnológico da Diversificação da Fumicultura, construído, em Rio Pardo, em 2016, com recursos do Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação."
 
Sobre o evento do secretário Schwanke com o Philip Morris, o Mapa respondeu:

"O referido evento não foi realizado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). A Emater/RS foi responsável pela distribuição das doações do material (máscaras e álcool em gel) para 40 municípios que permitiram a retomada ao trabalho de, aproximadamente, 950 feirantes, em todo o estado.  A presença do secretário Fernando Schwanke foi para apoiar essa ação afirmativa, inserida no contexto de auxiliar no combate à pandemia do Coronavírus. A SAF trabalhou para a manutenção e funcionamento das feiras rurais de todo país e foi convidada pela Emater/RS para participar do ato de entrega deste material aos feirantes. Desde o início da pandemia, o Mapa adotou várias medidas como a criação de um comitê  para monitorar os impactos da pandemia e a publicação de uma portaria detalhando as atividades essenciais para garantir o funcionamento do setor. Também foram elaboradas recomendações técnicas para diversos setores com diretrizes na prevenção da contaminação nos locais de processamento, beneficiamento, transporte e comercialização dos produtos. Além disso, foram elaboradas recomendações para o funcionamento de setores como frigoríficos, transporte de alimentos, colheita, feiras e sacolões."
 
Sobre o evento do secretário Schwanke com o Philip Morris, a companhia respondeu:
"A empresa participou de diversas atividades de apoio nas comunidades onde atua para minimizar os impactos da pandemia. Entre essas ações está o apoio à Emater-RS que beneficiou dezenas de municípios no Estado do Rio Grande do Sul e cerca de mil famílias na retomada de suas atividades nas feiras municipais."
 
Sobre as demandas para chamadas públicas, a Anater respondeu:
"Até o momento esta Gerência de Gestão de ATER e Formação não foi demandada para realizar novas chamadas públicas ou instrumentos específicos de parcerias voltadas à diversificação da cultura do tabaco."
 
Sobre a política de diversificação da cultura do tabaco, a Anater respondeu:

"Os esforços para estimular a substituição dessa cultura, geralmente, têm sido relacionados à identificação de novos canais de distribuição e a oportunidades para agregar valor às culturas alternativas de alimentos. Contudo, além dos fatores econômicos, é importante também levar em conta outros aspectos relacionados ao tripé da sustentabilidade (econômicos, sociais e ambientais), desse modo, é fundamental tratar das questões: produtivas (o que, como e quando plantar), acesso a crédito, comercialização (geração de renda), as condições de cada família, relacionadas a saúde, bem-estar, renda, oportunidades (promoção social) e fatores agroambientais (tipo de solo, clima, regime de chuvas, cumprimento da legislação ambiental, etc) entre outras variáveis. Em segundo lugar, em regiões dominadas pelo cultivo do fumo, os governos locais/estaduais precisam demonstrar maior interesse em liderar programas de substituição deste cultivo. As parcerias entre as esferas governamentais (União, Estados e Municípios) constituem fatores fundamentais para disseminar e consolidar esforços amplos para criar as condições para diversificação entre os produtores, sendo possível apenas por meio da integração de políticas públicas apropriadas, investimento de recursos públicos, endurecimentos da legislação e taxação sobre a indústria que deve dividir os custos dessa conta. Por fim, é preciso avaliar qualquer estratégia deve ser apropriada às especificidades das estruturas regionais/locais de produção. Os mecanismos e as políticas que busquem promover a diversificação devem se conectar as dinâmicas de reestruturação dos processos de desenvolvimento territorial em que a fumicultura está inserida."

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Esta reportagem tem como parceira a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Começou a ser desenvovida a partir de uma oficina de jornalismo promovida em setembro de 2019 pelo Joio e o Trigo e financiada pela Aliança de Controle do Tabagismo (ACT - Promoção da Saúde).
 
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