As muitas Argentinas
Governo Milei ainda não conseguiu mudar hábitos financeiros arraigados na população
Inflação de 270%, economia em recessão, mais da metade da população na pobreza. O brasileiro que vem visitar os hermanos com essas informações pode levar um choque ao chegar aos bairros mais badalados de Buenos Aires e se deparar com o charme dos cafés e restaurantes, além das ruas planejadas e convidativas.
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Mas, mesmo nas ilhas de prosperidade, coisas estranhas acontecem. Não é incomum, na hora de pagar a conta, ver alguém tirar um maço de pesos guardado na mochila.
Aquela sensação que temos no Brasil, com o Pix, de que o dinheiro de papel está acabando, não se aplica aos nossos vizinhos.
Os argentinos não confiam nos bancos. E têm bons motivos para isso. Não foram poucos os calotes nos depósitos de cidadãos nas últimas décadas.
O mais célebre ocorreu em 2001, época em que qualquer pessoa podia abrir contas bancárias em pesos ou em dólares. Da noite para o dia, o governo anunciou que as contas na moeda americana seriam convertidas para pesos na proporção de um para um, enquanto ocorria uma maxidesvalorização. E lá se foi mais da metade da economia de quem acreditou no sistema.
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Com a inflação consistentemente alta, guardar pesos em casa nunca foi uma opção. O dinheiro minguaria debaixo do colchão. Não restou outra opção a não ser apostar tudo nas verdinhas estrangeiras.
Quem planeja uma viagem começa a juntar dólares, mas quem está pensando em comprar um imóvel também. Em casa, os esconderijos variam de cofres a fundos falsos de móveis.
O agente imobiliário Juan Verzero conta que, nos últimos anos, só vendeu casas e apartamentos à vista e em dólares. Para fechar os negócios, acostumou-se a se encontrar com os clientes em lugares seguros, com testemunhas, para que ambos pudessem fazer a contagem do dinheiro que enchia mochilas e bolsas e assinar os contratos.
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O financiamento imobiliário praticamente deixou de existir nos últimos cinco anos. Um setor importante, que chega a representar 30% do PIB de alguns países de mesmo porte, na Argentina fica em torno de 1%. Numa nação de finanças tão frágeis, é arriscado assinar empréstimos de prazo tão longo. Por isso, os bancos jogam as taxas lá em cima.
O governo de Javier Milei está tentando, mais uma vez, reavivar esse setor. Os bancos públicos têm alguns bilhões para emprestar, o que também estimulou a concorrência dos privados.
Até agora, a resposta não tem sido muito positiva. Os custos não ajudam. Juros de 3,5% a 8% ao ano, mais inflação (repetindo: de 270%). Deve dar um frio na espinha se comprometer com algo assim por 20 ou 30 anos.
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Um estrangeiro que vive no país também passa a se acostumar a manejar dinheiro vivo. Compras no cartão do país de origem obedecem ao dólar oficial, o que deixa tudo mais caro, enquanto transferências -- feitas legalmente, através de aplicativos -- entregam pesos na cotação paralela, um ganho nada desprezível de mais de 40%.
Mas, como as notas da moeda argentina valem cada vez menos, é preciso se acostumar com os maços de cédulas no bolso para fazer uma simples compra no mercado.
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De maneira alguma este é um país em frangalhos. As cidades argentinas são vibrantes e cheias de atrações, da culinária aos museus, passando por uma infraestrutura em geral melhor que a das cidades brasileiras. É um país que se acostumou a seguir em frente, apesar das crises.
Também enxergo uma conexão sincera entre brasileiros e argentinos, muito além do clichê da rivalidade no futebol. Somos parecidos, mas há coisas que o Brasil já superou e que ainda acontecem por aqui.