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É o mundo contra a França no Catar

Religião e política tem, sim, seus impactos na torcida. Argentinos podem acabar lucrando com isso

É o mundo contra a França no Catar
seleção Francesa de futebol
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Não é que os argentinos sejam tão queridos e que Messi tenha um poder absoluto de encantamento, nem que Mbappé e Griezmann causem antipatia mundo afora. É que do outro lado tem a França e um rastro histórico de mágoas.

Aqui no Catar, a grande maioria da torcida prefere os argentinos. Essa preferência ecoa em boa parte do mundo islâmico, onde a França é vista como o país que desrespeita e deixa desrespeitar preceitos básicos da religião muçulmana.

Como o Brasil, a França é uma república laica, princípio segundo o qual Estado e religião não se misturam. Essa norma aparece inclusive no primeiro artigo da constituição francesa. No caso deles, porém, há leis específicas pra garantir esse secularismo. Algumas foram aprovadas nas últimas décadas visando ao que o presidente Emmanuel Macron classificou recentemente como "islamismo radical".

Desde 2010, é proibido o uso de  "artigo ou vestimenta concebido para ocultar o rosto" em espaços públicos.  Seis anos antes, o governo francês já tinha banido o uso do hijab - véu que cobre o cabelo e parte do rosto - e outros símbolos religiosos por estudantes de escolas públicas. Algumas cidades francesas também proibiram as vestimentas apelidadas de "burkinis", usadas por mulheres muçulmanas que querem tomar banho de mar.

Em 2015, o ataque terrorista à sede da revista Charlie Hebdo foi motivado por uma série de sátiras sobre o profeta Maomé. 12 pessoas foram mortas, incluindo um policial e parte da equipe do semanário. Em 2020, um professor francês foi decapitado por outro terrorista depois de debater as charges em sala de aula.  

Ainda que a grande maioria do mundo islâmico condene o terrorismo e as reações violentas, a mesma proporção também se incomoda com o que, pra eles, é uma blasfêmia. No caso da França, há ainda o que muitos veem como postura islamofóbica do Estado contra essa minoria.  

A insatisfação compromete até o senso de patriotismo dos quase 10% de franceses que são muçulmanos. Muitos estavam torcendo pro Marrocos nas semifinais. Antes, outros estavam jogando e torcendo por outras seleções. 59 jogadores inscritos nessa Copa do Mundo nasceram na França.

Ainda que sejam cidadãos franceses, optaram por defender as cores dos países de onde vieram seus pais ou avós e que, na maioria dos casos, foram colonizados pela França. Em alguns casos, era o caminho mais fácil pra disputar um Mundial. Em outros, era uma questão de identidade. 21 desses franceses jogaram pelas seleções da Tunísia, Senegal e Marrocos, países de maioria muçulmana.

Por tudo isso, há boas chances de os fatores extra campo, tão evidenciados na Copa do Catar, contribuírem para que boa parte dos 1,6 bilhão de muçulmanos do mundo, quase um quinto da população do planeta, torça não pela Argentina, mas contra a França no domingo.

Nos países deste grupo, que são também francófonos, a identidade trazida pelo idioma pode ajudar a neutralizar e até a virar o jogo. Em todos os casos, porém, a torcida para o time de Mbappé - pai camaronês e mãe argelina - tem um pouquinho de história, política e religião envolvidos.

E o resto do mundo?

A partir de agora, é puro achismo, mas o exercício pode ficar interessante se o quesito for a relação de cada país com os governos dos dois finalistas. Primeiro os casos mais óbvios.

Comecemos com Vladimir Putin. Alberto Fernandez não é aliado de primeira hora, mas não é inimigo declarado. Nas atuais circunstâncias, já é suficiente pros russos considerarem amigo. Além disso, o argentino foi um dos primeiros a dar crédito e a comprar a vacina russa Sputnik. Já Emmanuel Macron é presidente de um país da Otan, com apoio declarado à Ucrânia. Rússia, portanto, é Argentina. Pelos mesmos motivos, Zelenskyy deverá ter mais simpatia pelos franceses.  

Índia, China e África do Sul, nossos parceiros nos Brics, podem fazer jogo duplo, mas, no fundo, no fundo, jogam no time daqueles que acham que a Europa tem poder demais e empoderar um pouco a Argentina (que quer entrar pro clube, aliás) não representaria nenhuma ameaça ao grupo. Narendra Modi, Xi Jinping e Cyril Ramaphosa seriam, portanto, Argentina.

Para Inglaterra, a escolha seria mais difícil. De um lado, está um inimigo da Guerra das Malvinas e do outro, os eternos rivais no futebol e na geopolítica. Rishi Sunak poderia esnobar a final de um esporte que, ao contrário do que diz a música entoada por torcedores ingleses, não "está voltando pra casa". Mas a festa francesa, bem ali do outro lado do Canal da Mancha, causaria mais incômodo, ainda mais em tempos de Brexit, em que a Europa e principalmente a França é o adversário a superar em todos os aspectos. Em silêncio e pontualmente às 5 da tarde, o premiê britânico tomaria um mate argentino.

Isso não vale pra muitos escoceses e galeses, que vão torcer sempre pra quem os ingleses não torcem. Ambos ficarão mais felizes se os franceses ganharem só pra que os ingleses fiquem mais irritados. Sim, em muitos aspectos, o Reino é Unido só mesmo no nome. E o futebol é um ótimo termômetro para perceber isso.

Alemanha e outros do velho continente podem até fazer esse discurso de União Européia, mas lá no subconsciente ancestral dos feudos europeus, não querem dar mole pra francês. Emmanuel Macron já se acha o dono da bola depois que Angela Merkel se aposentou. Imagine então se for tricampeão. Também em silêncio, muitos dispensarão o croissant e vão comer uma empanadinha no domingo.

No mundo francófano, um senso de identidade pode fazer a França levar vantagem. Outros 29 países tem o francês como língua oficial. 21 estão no continente africano. Nessa lista nem estão incluídos os chamados territórios ultramarinos da França, como a nossa vizinha Guiana Francesa. Em alguns deles, porém, a revolta com o ex-colonizadores pode levar a torcida pra Argentina.

Dos Estados Unidos, que não conseguem muita coisa nos gramados, mas estão pra geopolítica como o Brasil está (ou esteve) para as Copas, há muita simpatia pelos franceses. Afinal de contas, Macron levou muitas caneladas diplomáticas de Donald Trump. Na lógica de que inimigo do meu inimigo é meu amigo, Joe Biden deverá torcer pelo "soccer" francês.  

Com o governo brasileiro, há uma incógnita desses tempos de amor e ódio. O atual presidente odeia tanto Macron quanto Fernandez. O que vai entrar faz juras de amor aos dois. Se for coerente com sua história de apoio aos latinos, Lula deve declarar torcida pela Argentina. Bicho político que é, sempre vai deixar uma abertura pra não irritar muito o companheiro Macron. Em uma mensagem nas redes sociais, deixou um seco boa sorte aos dois.

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