Rejeição à nova Constituição do Chile liga alerta nas esquerdas latinas
Pesquisadora vê "impacto simbólico forte" no rechaço ao texto, que foi derrota para Gabriel Boric
Fernando Jordão
Visto como uma derrota do presidente Gabriel Boric, o rechaço à proposta de nova Constituição chilena, com 62% dos votos contra o texto, serve de alerta para a esquerda na América Latina. A avaliação é da historiadora da Universidade de São Paulo (USP) Joana Salém, investigadora do Centro de Estudios de Historia Agraria de América Latina (Cehal), no Chile.
+ Leia as últimas notícias no portal SBT News
Segundo ela, embora não haja um efeito direto em termos eleitorais, há "um impacto simbólico e moral bem forte", uma vez que as esquerdas latinas, em especial a brasileira, estavam "de olho no plebiscito chileno, aplaudindo a nova Constituição".
"É uma nova Constituição que dialoga com o feminismo, com a ascensão das lutas indígenas, com o antirracismo e com os direitos sociais, o direito à greve, por exemplo -- que não é universal no Chile atualmente --, com a melhoria das condições de trabalho, com a defesa da educação e saúde pública, moradia digna para todos, ou seja, com uma série de agendas políticas que são típicas da esquerda brasileira também", elenca.
Em relação a Boric, Salém lembra que a chapa do ex-deputado na disputa presidencial -- a "Apruebo Dignidad" -- continha a exata palavra usada para votar "sim" pela nova Constituição -- "Apruebo", contra "Rechazo" para votar não. Por isso, o plebiscito chegou a ser chamado no Chile de "terceiro turno" da eleição presidencial.
"Atualmente, a popularidade do presidente tem sofrido queda, principalmente porque existia uma expectativa muito alta em relação a esse governo para que ele realizasse as reformas e a ampliação dos direitos sociais. Só que existe uma lentidão. Inclusive se diz que esse governo estava esperando a nova Constituição para isso. E, sendo fato ou não, existe um desapontamento popular em relação ao governo, justamente porque se esperava dele algo mais acelerado e assertivo em relação à melhoria das condições de vida. E o Chile está vivendo uma inflação, está vivendo uma crise econômica e social, também como reflexo da pandemia, e até hoje tem uma crise social que não foi resolvida desde 2019. E apesar do Boric ter aumentado o salário mínimo, isso não foi suficiente e a aprovação dele como governo foi caindo. E, como o governo foi associado ao 'apruebo', consequentemente a indisposição da população para aprovar também cresceu."
Pós-rechaço
A especialista aponta que as esquerdas -- no Chile e na América Latina -- devem tirar lições da rejeição à proposta de nova Carta Magna: "A maior parte da classe trabalhadora chilena rechaçou esse texto. Foi um rechaço popular, não foi das elites apenas. E esse rechaço mostra que existem muitos pontos cegos nas leituras que esses setores políticos estavam fazendo da subjetividade popular das maiorias e dos sentimentos dos eleitores. Então existe uma série de pontos cegos que precisam ser lidos e encarados com algum tipo de autocrítica e isso pode servir para a compreensão de outros pontos cegos que as esquerdas possuem em seus próprios países".
Questionada sobre se o texto da Constituição era utópico ou vanguardista e demasia, a historiadora negou -- assim como fez, em entrevista ao SBT News, Maria Elisa Quinteros, que presidiu a Assembleia Constituinte chilena. "Eu acredito que o papel de uma Constituição também é criar horizontes de transformação. A gente pode dizer até que a nossa Constituição de 88 é utópica, porque o artigo 5º, dos direitos socais, se fosse cumprido à risca, a gente viveria em outro país. O país da nossa Constituição é muito mais bonito que o Brasil real. O texto constitucional tem um papel de criação de horizontes, de expectativas. Não é porque se aprovou uma Constituição que ela vai acontecer no dia seguinte. É um processo de construção de consenso e um compartilhamento de valores e buscas de um país", avalia Salém.
Também como a ex-constituinte, a professora cita as fake news como um dos principais fatores que levaram à rejeição do texto. E as coloca como desafio para políticos de todo o mundo: "Eu acho que nenhum país hoje está totalmente pronto para lidar com esse problema, que ainda não tem solução. Porque não se trata apenas de difundir mentiras ou difundir notícias falsas, se trata de criar comunidades de compartilhamento e de auto afirmação dessas notícias falsas que são auto verdades, que acabam sendo verdades em si e blindadas a todo tipo de contestação científica, contestação objetiva ou de análise vinda de outros setores, de modo que surgem bolhas e setores sociais muito fechados que repercutem essas fake news".
"É uma batalha do nosso tempo, que os jornais tenham agências de checagem e que tentem cada vez mais difundir, com a linguagem das redes sociais, as informações checadas e que se crie algum processo de educação política e de educação crítica na leitura dessas informações. Mas a gente ainda está longe de resolver esse problema. Tanto o Brasil quanto o Chile", arremata.