Mesmo com lei, falta de capacitação impede fim de ciclo da violência
8 em cada 10 feminicídios são causados por companheiros ou ex-companheiros, considerando dados oficiais
"Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher". O ditado popular que trata da violência doméstica como sendo algo de caráter privado nunca esteve tão ultrapassado. É preciso meter a colher sim, já que no Brasil pelo menos quatro mulheres morrem por dia, vítimas de feminicídio -- o homicídio decorrente de violência doméstica e familiar em razão da condição de sexo feminino, em razão de menosprezo à condição feminina, e em razão de discriminação à condição feminina.
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O relatório Violência contra meninas e mulheres no 1º semestre de 2022, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mostra que só na primeira metade do ano passado, 699 casos de feminicídio foram registrados no país. Esse número ainda pode ser subnotificado, já que o levantamento feito pelo FBSP considera a tipificação criminal feita pelos policiais na abertura do boletim de ocorrência. Muitas vezes, é somente com a investigação que fica claro que o crime cometido foi um feminicídio, causado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino.
A doutora em comunicação social, Kátia Bizan, afirma que ainda há dificuldade dos policiais no registro correto do crime. "A lei do feminicídio é de 2015 e ainda há treinamento para que policiais consigam diferenciar e fazer o registro corretamente", diz ela.
A psicóloga Isabela Araújo, representante da Associação Fala Mulher, ressalta a importância dos profissionais conhecerem a rede e os serviços de atendimento à mulher vítima de violência antes que o resultado seja fatal. "Se naquela delegacia os profissionais têm conhecimento do fluxo de encaminhamento e atendimento para este tipo de situação, a mulher será levada para serviço especializado e as chances de seguir sendo acompanhada e sair do ciclo de violência aumentam", afirma.
Isabela Sobral, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirmou que o feminicídio é "o resultado de várias violências que a mulher sofre ao longo da vida". No país, 81,7% dos feminicídios são causados por companheiros ou ex-companheiros.
"A existência dessa violência está relacionada a crença de uma superioridade, de que os homens podem fazer isso para dominar suas parceiras", disse a pesquisadora.
Lei Maria da Penha
A lei Maria da Penha, criada em 2006 para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, amplia a visão sobre o que é violência contra a mulher, afirmando em seu Artigo 5º ser "qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial".
A partir dessa nova visão do que é a violência de gênero, é possível interrompê-la antes do resultado letal, com mecanismos como a medida protetiva de urgência, também garantida pela lei.
Para Isabela Araújo, a lei Maria da Penha é referência no que diz respeito à violência contra mulher, por discorrer não só de ações punitivistas mas também preventivas. "Ela propõe como a sociedade civil, para além do Poder Público deve tratar esta temática. Violência e desigualdade de gênero são questões que estão embrenhadas na nossa sociedade e precisam ser discutidas em todos os espaços, por todas as faixas etárias e gêneros", diz ela.
Mas a falta de capacitação dos profissionais que atuam com esta questão, a falta de incentivo do Poder Público para que ações de prevenção aconteçam e a postura da sociedade civil mediante esses crimes são barreiras. "A sociedade civil não pode continuar se valendo de uma postura neutra frente à violência contra mulher, pois todos devemos atuar enquanto agentes de mudança se quisermos exigir um lugar melhor para viver", afirma Araújo.
"Lutar pelo fim do feminicídio é papel de todos nós, enquanto sociedade. O Estado tem grande responsabilidade nesta luta, atuando a partir do Poder Judiciário e Legislativo, para que o direito das mulheres esteja garantido por Lei e que elas tenham representação jurídica, caso alguma situação de violência ocorra. Entretanto, não podemos nos eximir da responsabilidade de que esta é uma questão que atinge a todos e, portanto, deve ser abordada por todos. Até porque, a mudança de um comportamento coletivo, exige a participação e esforço de cada um", completa a psicóloga.
Kátia Bizan concorda com essa visão e a complementa, falando da necessidade de criação de novas políticas públicas que sustentem a lei e combatam a violência contra a mulher.
"Entendo que essa é uma lei fundamental para o mundo, mas ela precisa ser privilegiada e trabalhada com novas políticas públicas que realmente a sustentem num mastro verdadeiro que é seu lugar. Muito já foi feito, mas com os índices de violência contra a mulher que temos hoje, sabemos que não é ainda o suficiente e, então, é preciso pensar em aprofundar as políticas públicas para combater essa grande pandemia silenciosa que vivemos em nossa sociedade", diz Bizan.
Ministério das Mulheres: dificuldades com o orçamento
A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, fez um pronunciamento em cadeia nacional, na noite de 3ª feira (7.mar), véspera do Dia Internacional da Mulher, para falar sobre as políticas de enfrentamento à violência de gênero do governo Lula 3. Ela anunciou uma série de medidas que visam a diminuição dos casos de feminicídio -- que, segundo o Código Penal Brasileiro, é o homicídio "contra a mulher por razões da condição do sexo feminino".
"Em pleno 2023, não é admissível que o país registre um feminicídio a cada sete horas e um estupro a cada 10 minutos. Isso tem que parar", disse Cida Gonçalves.
Em seu discurso de posse, no dia 3 de janeiro, a ministra já havia citado a importância de retomar projetos como a Casa da Mulher Brasileira e o programa Mulher, Viver sem Violência, além da necessidade de recuperar o Ligue 180, central de atendimento à mulher.
Durante seu pronunciamento nesta 3ª feira, ela anunciou a reativação do Ligue 180, com ligação gratuita e funcionamento 24 horas, e afirmou que o Mulher, Viver sem Violência será retomado, com a implementação de 40 Casas da Mulher Brasileira e serviços de atendimento e acolhimento. "Essas casas serão um porto seguro para as mulheres justamente na hora em que elas mais precisam de cuidado e proteção. Lá, elas poderão contar com assistência psicossocial, saúde, segurança pública e acesso à Justiça", disse.
Na área da segurança pública, serão distribuídas 270 viaturas para o patrulhamento garantidor da Lei Maria da Penha e para as delegacias especializadas de todos os estados brasileiros.
Para colocar esses programas em pé, o Ministério terá, em 2023, um orçamento de aproximadamente R$ 122,5 milhões. Esses valores foram alterados graças a PEC da Transição, já que no projeto de Lei Orçamentária de 2023, encaminhado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), estavam previstos apenas R$ 23 milhões para a área.
O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) fez um levantamento sobre a alocação orçamentária de 2022 e mostrou que ela foi a menor da gestão Bolsonaro para o enfrentamento da violência contra mulheres, com pouco mais de R$ 5 milhões para este tema e cerca de R$ 8,6 milhões destinados à Casa da Mulher Brasileira.
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