Relatório aponta 'falta de coordenação' do governo em ações na Terra Yanomami
Dados fornecidos pelos próprios indígenas destacam os avanços e as falhas no combate ao garimpo ilegal, proteção territorial e saúde das comunidades
As associações indígenas Hutukara Associação Yanomami (HAY), Associação Wanasseduume Ye'kwana (SEDUUME) e a Urihi Associação Yanomami, lançaram nesta 4ª feira (2.ago) o relatório "Nós ainda estamos sofrendo: um balanço dos primeiros meses da emergência Yanomami", que analisa os resultados alcançados após seis meses da declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) na Terra Indígena Yanomami pelo Governo Federal.
Os dados e relatos fornecidos pelos próprios indígenas destacam tanto os avanços como as falhas no combate ao garimpo ilegal e na proteção territorial e de saúde das comunidades.
Garimpo Ilegal
Apesar de reconhecer que os esforços para combater o garimpo ilegal apresentam resultados significativos, o relatório aponta que ainda há a persistência de alguns núcleos de exploração que resistem à ação das forças de segurança, além do retorno de alguns grupos de garimpeiros que conseguiram esconder seus equipamentos durante as operações.
Essa situação, de retorno gradual de pequenos grupos de invasores depois de operações pontuais, foi relatada nas regiões do Papiu theri, Parafuri, Xitei e Homoxi, onde os Yanomami informam que garimpeiros seguem trabalhando próximo às aldeias, sendo abastecidos com alimentação e combustível com voos regulares de helicóptero.
Entre os pontos críticos apontados no relatório está a estratégia de "estrangulamento logístico" adotada pelo governo, que consiste no controle do espaço aéreo e no bloqueio dos acessos fluviais e terrestres para combater o garimpo ilegal. A estratégia foi considerada eficiente, mas algumas decisões, como a manutenção dos corredores para a saída espontânea dos garimpeiros ao longo de dois meses, foram alvo de críticas. A ausência de uma coordenação efetiva das ações de combate e assistência também foi ressaltada como um problema.
"Na nossa análise, a principal crítica à estratégia adotada pelo governo para a realização das operações não é a flexibilização do controle aéreo, ou a ação reduzida nas Bases de Proteção (BAPES) da Funai, e sim a ausência de uma coordenação, que além de garantir um maior diálogo com as organizações indígenas e as comunidades, pudesse articular ações de comando e controle, com ações de ajuda humanitária e de atenção à saúde. Nesse sentido, o fluxo ideal das ações visando a estabilização da situação sanitária e política das comunidades seria: i) operações para a neutralização do garimpo; ii) apoio às comunidades vulnerabilizadas com cestas básicas, ferramentas agrícolas e sementes; iii) realização de missões de atendimento à saúde; iv) restabelecimento do serviço de atendimento regular de saúde.", pontua o relatório.
Distribuição de cestas básicas
Quanto à distribuição de cestas básicas, o relatório destaca que 29 comunidades estão em situação de grande insegurança alimentar, e a falta de regularidade na entrega desses alimentos tem comprometido a recuperação econômica futura. As comunidades mais isoladas têm enfrentado dificuldades para receber ajuda humanitária, e a distribuição tem sido concentrada em pistas de pouso com grande capacidade de armazenamento, prejudicando as comunidades mais distantes.
Ainda segundo o relatório, somente 50% das 50 mil cestas básicas prometidas foram entregues durante o primeiro semestre devido a problemas logísticos envolvendo as Forças Armadas. De acordo com as associações, "não foi elaborado um protocolo de entrega das cestas para garantir que elas chegassem em todas as famílias de uma determinada região e tivessem uma distribuição equânime entre as comunidades. Uma das reclamações apresentadas foi que a ausência de uma mediação na distribuição levou a um processo de concentração das cestas nas mãos das famílias que deram a "sorte" de estar no local da entrega, no momento em que a alimentação foi doada".
Ao todo 29 comunidades estão em situação de grande insegurança alimentar, revela o relatório. Com o atraso no abastecimento de muitas comunidades, as lideranças locais alertaram que algumas famílias estão comendo as mandiocas ainda verdes, comprometendo assim a recuperação econômica futura.
Saúde
O quadro de saúde geral da população indígena Yanomami apresentou poucas alterações nos últimos seis meses. A imunização em 2023 atingiu apenas 23 das quase 350 comunidades, com 154 óbitos registrados até julho, representando 73% do total de mortes computadas em 2022. A malária ainda é um problema significativo, com 12.252 casos registrados no mesmo período, representando 80% do total de 2022.
As dificuldades logísticas e a persistência de invasores garimpeiros no território afetam o atendimento à saúde, dificultando a realização de ações preventivas e de tratamentos. A falta de profissionais de saúde e o fechamento de algumas Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSIs) têm contribuído para o aumento da vulnerabilidade socioeconômica e sanitária das comunidades.
O relatório sugere um cronograma para estabilizar gradualmente a situação, incluindo a recuperação da infraestrutura logística e de atendimento, aumento das equipes de saúde, aprimoramentos na vigilância epidemiológica e o fortalecimento do papel dos profissionais indígenas nas equipes de saúde.
O relatório termina com uma série de recomendações ao Governo Federal, entre as principais estão:
- Aprimoramento dos mecanismos de diálogo do governo com as organizações indígenas;
- Fortalecer a articulação entre as ações setoriais e planejar o desenvolvimento das ações de maneira integrada, através de uma coordenação operacional e intersetorial da emergência Yanomami;
- Desenvolvimento de planos de ação regionalizados para regiões sensíveis que combinem em um único cronograma ações de neutralização do garimpo, apoio emergencial, promoção à saúde, reocupação das UBSIs com apoio de forças de segurança, e desenvolvimento de atividades de recuperação socioeconômica das comunidades;
- Garantir a manutenção do controle do espaço aéreo por tempo indeterminado e reforçar o monitoramento nas zonas de fronteira;
- Intensificação das operações de combate ao garimpo nos núcleos que ainda persistem, com a destruição total do maquinário utilizado na extração de ouro e da cassiterita e aplicação das respectivas sanções administrativas;
- Inutilização de todas as pistas de pouso clandestinas e aeronaves apreendidas no interior da TIY;
- Reforço das bases de Proteção já instaladas (Walopali, Serra da Estrutura e Ajarani), conclusão com urgência da BAPE do Uraricoera, e criação de novas bases nos rios Apiaú, Catrimani e Uraricaá;
- Promoção de patrulhas periódicas nas calhas de rio que dão acesso à TIY, e destruição de equipamentos e estruturas auxiliares à logística garimpeira;
- Apoiar o reassentamento de comunidades afetadas pelo garimpo que manifestam o interesse de mudar-se para um novo local por não ter condições mínimas de permanência, com apoio logístico, ferramentas, infraestrutura para atendimento à saúde e acompanhamento próximo durante sua instalação;
- Priorizar investimentos em infraestrutura para reforma e construção das UBSIs e reforma e manutenção de pistas de pouso;
- Reocupação das UBSIs fechadas com apoio de forças de segurança;
- Redimensionar o quadro de profissionais de saúde atuando no território, buscando fortalecer o número de profissionais nas regiões sensíveis;
- Criação de uma força tarefa especial para o combate à malária em todo o território;
- Estudar mudanças no modelo de contratação de recursos humanos na saúde indígena;
- Promoção de ações específicas de combate à desnutrição infantil com acompanhamento dos pacientes com deficit nutricional e implementação de um plano de combate às causas da desnutrição infantil e reforço das equipes EMSI com nutricionistas;
- Fomentar parcerias e cooperações técnicas com organizações especializadas em saúde que possam subsidiar soluções práticas capazes de responder à crise sanitária na Terra Indígena Yanomami.