Força do voto evangélico é desprezada pela oposição
Antropólogo, Juliano Spyer revela como políticos conservadores avançam mais no eleitorado religioso

Leonardo Cavalcanti
O antrópologo Juliano Spyer, 50 anos, acompanhou por 18 meses grupos evangélicos na periferia de Salvador. Saiu de lá com um estudo revelador sobre o grupo religioso para o debate político.
O detalhe: enquanto a direita -representada por parte dos governistas- abraçou os evangélicos, a esquerda -formada por oposicionistas- desconhece o grupo, perdendo terreno, incluindo votos.
No livro Povo de Deus - quem são os evangélicos e porque eles importam (Geração Editorial), Spyer aponta que o grupo religioso votou de maneira mais coesa no presidente Jair Bolsonaro (sem partido), e explica as razões.
"Tornar-se evangélico não é só uma aposta no sobrenatural, mas uma escolha feita a partir da observação da experiência das pessoas que moram no seu entorno, nas periferias e nas favelas", trecho de Povo de Deus
A principal delas: o preconceito dos setores da esquerda brasileira. "Hoje, um em cada três brasileiros é evangélico. Qualquer decisão política vai passar por esse grupo religioso, que só aumenta no Brasil."
O livro de Spyer, com prefácio de Caetano Veloso, começou a circular nas mãos de políticos da oposição depois que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu indicá-lo a parlamentares.
"No Brasil, a consequência de se alienar do debate e hostilizar esse grupo de maneira genérica e desinformada aparece no enfraquecimento de lideranças evangélicas progressistas dentro de sua comunidade, e consequetemente na promoção dos conservadores"
Enquanto isso, Bolsonaro cada vez se mostra mais aliado do grupo, com promessas, inclusive, de indicação de um evangélico para o Supremo Tribunal Federal (STF), o pastor presbiteriano André Mendonça, chefe da Advocacia Geral da União (AGU).
Spyer, aliás, acredita que a indicação de um evangélico para o Supremo não deveria ser um problema: "A presença de um ministro que tenha essas referências tornaria a composição da Justiça mais diversa e representaria mais pessoas, que merecem ser ouvidas".
Quem são os evangélicos e por que eles importam?
Os evangélicos são protestantes brasileiros. Eles chegaram ao Brasil, ou a religião chegou ao Brasil, principalmente a partir da primeira metade do Século XIX. O Brasil era oficialmente um país católico, que não permitia outras religiões.
Mas quando a gente fala de evangélico hoje, particularmente, a gente fala de um tipo de protestantismo chamado de pentecostal, que surgiu nos Estados Unidos no início do início do século XX, e chegou ao Brasil também muito rapidamente, uma religiosidade que é descrita como sendo feita pelo povo para o povo, e tem a linguagem do povo.
Esse grupo religioso importa porque ele, em 1970, representava 5% dos brasileiros; em 2010, já representava mais de 22% dos brasileiros. E, hoje, a cada três brasileiros, um é evangélico. A previsão de estatísticos é que o Brasil completa esse ciclo a partir de 2032 se tornando um país predominantemente evangélico.
Qualquer decisão política, mas também em termos de gosto e de consumo, deve levar em conta esse esse grupo religioso. A política e organizações empresariais não sabem ou conhecem de longe, e em geral tem uma perspectiva sempre negativa em relação a esse grupo, mas esse grupo escolhe presidente, tem a bancada no Congresso das mais fortes do país.
O apoio evangélico foi um dos principais fatores para a vitória de Bolsonaro?
Sem dúvida. Se você cruzar fontes demográficas, e separar as pessoas por intenção de voto segundo a religião, todas as principais religiões, inclusive ateus e agnósticos, votaram meio a meio. Mas dois terços dos evangélicos votaram em Bolsonaro.
Não, não é errado argumentar que o resultado final da eleição veio pelo voto evangélico. No Brasil, a consequência de se alienar do debate sobre esse grupo aparece no enfraquecimento de lideranças evangélicas progressistas dentro de suas comunidades, e consequentemente na promoção dos conservadores.
O evangélico então não necessariamente apoiaria um candidato da direita?
Em primeiro lugar você tem igrejas grandes, que tem projetos de poder e que funcionam apoiando o candidato da vez, buscando essa conveniência para ganhar vantagem. Depois, o evangélico em geral tem valores do ponto de vista de costumes e da moral mais conservadores, e atualmente eles vêm sendo associados à direita, abraçados pela direita.
Por fim, existe uma certa dificuldade da esquerda que vem de uma tradição iluminista e mesmo marxista que condena a religião como algo que esconde a realidade, mantém as pessoas oprimidas.
Assim ignora essas pessoas e as trata como representantes do mal. Falta sensibilidade justamente por parte das pessoas que se importam mais com a questão da justiça social ou deveriam se importar mais.
Em um dos trechos dos livro, o senhor lembra uma crítica do ex-candidato petista Fernando Haddad aos evangélicos durante a campanha de 2018. É possível que a oposição esteja mais atenta a esse ponto em 2022?
Eu tenho dados que apontam nas duas direções. Por um lado eu tenho me surpreendido como o livro tem chegado a lideranças de esquerda, e isso me deixa muito esperançoso de que o esse diálogo aconteça para o bem da democracia do país. Por outro lado não dá para gente esquecer que o evangélico está presente nos grupos de esquerda desde o nascimento desses grupos, como é o caso de Benedita da Silva e de Marina Silva.
Então eu não sei em que medida é essa mudança, se ela vai se dar de fato. Eu falo isso com muito respeito às pessoas que têm dificuldade de experimentar ou de pensar na possibilidade do evangélico fora dessa chave muito simples do evangélico como fundamentalista ou do mercador da fé. Fiz um trabalho de campo durante 18 meses morando num bairro muito distante do centro de Salvador, um bairro pobre de verdade.
Um bairro que tinha uma igrejinha católica, nove terreiros de candomblé e mais de 50 igrejas evangélicas. A princípio foi um choque de realidade perceber a força que essas igrejas tem em termos de representatividade.
O brasileiro pobre precisa do voto para ter iluminação na rua, para ter a rua calçada, para ver o posto de saúde funcionar melhor. Esse abismo dos brasileiros com melhor escolaridade se manifesta também no preconceito, desqualificando as escolhas dessas pessoas, e entre elas a escolha da igreja. Ao entrar nesse universo você se depara com determinadas histórias.
Numa 6ª feira, o homem toma cachaça, volta para casa, e a família apanha. Quando essa família se converte, a violência tende a acabar, porque não pode mais beber. Outra transformação é na leitura, pois o evangélico com baixa educação se sente constrangido no ambiente em que as pessoas estão constantemente lendo a Bíblia. Isso pode servir de motivação, para investir na educação. Isso pode transformar, pois há a chance de curso superior.
Pessoas das camadas mais altas têm como referência o livro da canadense Margaret Atwood, O conto da Aia, de um futuro fundamentalista, controlador, moralista. Eu não tenho um curso de previsão de futuro, então não sei como vai ser o Brasil no futuro e não desacredito nessa narrativa.
Agora, quando eu estava fazendo doutorado na Inglaterra num determinado momento eu e a minha mulher tínhamos casais de amigos brasileiros. Quatro desses casais tinham origem evangélica. Um deles permanecia na religião.
Outros três tinham se distanciado e adquirido uma visão muito crítica em relação às igrejas. Então me pergunto em que medida esse Brasil do futuro dos evangélicos pode ser mais próspero e não se traduz também em um país com pessoas menos fundamentalistas ou menos abraçadas de uma forma tão enfática ao texto divino?
Como o senhor avalia a escolha de um ministro do Supremo "terrivelmente evangélico"?
Eu tenho impressão que o brasileiro em geral tem visões de mundo mais conservadoras, não só os evangélicos. A gente pode lembrar a presença por exemplo do apoio católico também ao governo Bolsonaro. Então, a presença de um ministro que tenha essas referências tornaria a composição da Justiça no Brasil mais diversa e representaria mais pessoas, que merecem ser ouvidas.