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Qualidade do ar: a chance que virou fumaça

Investimento em transporte mais limpo é deixado de lado na transição pós-pandemia

Qualidade do ar: a chance que virou fumaça
poluição em SP
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Por Lis Cappi, Cezar Camilo, Fernando Jodão e Leonardo Cavalcanti

Um laboratório a céu aberto sobre como seriam cidades sem congestionamentos: o que era impensável até pouco tempo atrás, mostrou-se real durante a pandemia. Com a imposição do isolamento por conta do coronavírus, o mundo pôde experimentar uma rotina que deixou claro que, sim, é possível -e necessário- fazer diferente. Mas o que poderia ficar de legado com os aprendizados do período no Brasil, virou uma chance desperdiçada. A retomada das atividades indica os mesmos hábitos de antes, com ainda mais uso do transporte individual.

Logo nos primeiros meses da pandemia, diferentes capitais brasileiras mostraram uma redução significativa na emissão de gases poluentes atribuídos ao transporte. Indicadores da melhora da qualidade do ar também foram associados à mesma causa. Os meses em que a diminuição se mostrou mais intensa foram março e abril de 2020, quando o isolamento foi mais rígido. A percepção foi confirmada em São Paulo, Curitiba e Minas Gerais. Mesmo levando em consideração as condições meteorológicas do período, a conclusão se repete: houve menos emissões, o que significa mais saúde e qualidade ambiental.

Na região metropolitana da capital paulista, onde veículos leves -como carros e motocicletas- são a maior fonte de emissão de partículas à atmosfera, a concentração do monóxido de carbono, geralmente emitida por esses veículos, foi inferior em praticamente todos os meses, se comparado a 2019. Monitoramento da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) coloca abril de 2020 como o mês de mais baixa redução. Além de menos veículos na rua, a falta de congestionamentos fez com que os carros, ônibus e motocicletas, que estavam em circulação à época, poluíssem menos.

"Dois mil e vinte foi um ano atípico devido a pandemia de covid-19 pela série de medidas de restrições que tiveram consequência na redução de atividades e na diminuição de circulação dos veículos automotores, principal tipo de fonte responsável pela deterioração da qualidade do ar nas regiões mais urbanizadas do estado, declara Patrícia Iglesias, diretora-presidente da Cetesb.

Com monitoramento realizado diariamente em quatro áreas próximas a vias de tráfego intenso de São Paulo, a companhia também detectou uma emissão menor de gases provenientes dos veículos de transporte de carga. Tanto em locais onde normalmente há mais circulação quanto em áreas mais afastadas. Mas os níveis de monitoramento voltaram a subir com a retomada da circulação, a partir de maio deste ano.

A diminuição do transporte é também a principal aposta na melhoria da qualidade do ar. Em Minas Gerais, a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Fenam) atribuiu resultados percebidos no início da pandemia à suspensão de atividades. Entre março e abril de 2020, uma estação de monitoramento em Belo Horizonte identificou redução de 45% na concentração de partículas respiráveis em comparação ao mesmo período de 2019.

"Foram verificadas reduções consideráveis no chamado material particulado, conjunto de poluentes constituído de poeira, fumaça e todo tipo de material sólido e líquido que se mantém em suspensão por conta do pequeno tamanho, e também do dióxido de enxofre, que resulta da queima de combustíveis que contém enxofre, como óleo diesel, óleo combustível industrial e gasolina", diz comunicado enviado à reportagem do SBT News.

Abril de 2020 é destaque também nas análises do Instituto Água e Terra do Paraná. "Regiões que têm mais movimento de veículos, como Curitiba, foi onde a gente percebeu a maior queda. Porque, realmente, na primeira semana a circulação de veículos foi parada. E em todas as cidades onde a pandemia foi avançando, houve decretos municipais de restrição, tanto no transporte coletivo, quanto no de pessoas em veículos. A gente viu que a queda foi considerável", declara João Carlos Oliveira, técnico em meio ambiente e qualidade do ar do instituto.

A engenheira civil Patrícia Boson, que tem mais 30 anos de experiência em planejamento e gestão ambiental na área de transportes, lamenta a oportunidade perdida, mas mostra otimismo na troca de meios individuais por coletivos. "Está claro que quanto menos carros nas ruas maior a qualidade do ar." Os desafios, entretanto, não são pequenos. "Para as pessoas abandonarem o transporte individual, é necessário melhor a qualidade do transporte coletivo, deixando a cidade mais humana", diz Patrícia Boson, que é consultora da Confederação Nacional do Transporte (CNT). Para ela, uma cidade mais humana significa uma cidade com pessoas nas ruas: "E aí entram as ciclovias e os próprios investimentos em espaços públicos".

Cidades sem trânsito

A menor circulação de veículos permitiu experimentar o que seria uma cidade sem congestionamentos -- que têm grande interferência sobre as emissões. O Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema) acompanha o fluxo de transportes públicos em São Paulo e constatou que, na pandemia, só ônibus reduziram em até 15% a produção de poluentes e gases de efeito estufa, mesmo sem saírem das ruas. "Foi como se todos eles circulassem em vias exclusivas, com os motores dos veículos operando em boas condições, sem o exigente anda-e-pára", explica o coordenador de projetos do instituto, David Tsai.

Como alternativa, o instituto indica o uso de veículos elétricos e movidos a hidrogênio como forma de zerar as emissões em cidades, além da aposta no transporte coletivo para pôr fim aos congestionamentos e possibilitar uma locomoção mais efetiva pelas limitações de espaços viários. "Não é possível que todos usem automóveis ao mesmo tempo, pois eles ocupam muito espaço por pessoa."

A necessidade de se planejar outras alternativas em transporte para maior qualidade de vida e preservação do meio ambiente também é apontada por Augusto Brasil, professor do programa de pós-graduação em transportes da Universidade de Brasília (UnB). O pesquisador destaca a influência cada vez maior dos veículos na degradação do meio ambiente, principalmente em grandes capitais. "Como a mobilidade é muito intensa, a poluição do ar é muito influenciada pelas emissões veiculares", diz.

O professor considera que um dos maiores aprendizados deixados pelo período de isolamento é o de que a mobilidade pode ser reduzida. "Não precisamos circular tanto. Algum nível de atividade podemos retirar das ruas, e temos aprendido isso tanto no sistema de ensino quanto no trabalho." Uma das alternativas, segundo o pesquisador, seria a adoção de estratégias de rodízio de veículos individuais, além do incentivo à mobilidade ativa, como uso de bicicletas, patinetes ou skates e o deslocamento a pé, com incentivos ao transporte público.

"No pós-pandemia, acho que temos que tirar algumas lições do transporte público: ele precisa se adaptar com mais qualidade nesse caminho ambiental e de mais segurança à saúde da população. Saúde por causa do vírus, mas saúde também pelos poluentes atmosféricos", pontua o docente da UnB.

Por que emitir menos?

Além das preocupações sobre o meio ambiente, a emissão de gases poluentes está diretamente relacionada à saúde da população. E o transporte é apontado como uma das principais causas do problema. "É uma das maiores fontes de poluição do ar que existem. A queima de combustíveis fósseis gera a emissão de poluentes pelos escapamentos dos veículos. Material particulado, óxidos de nitrogênio e monóxido de carbono são alguns exemplos", informa Janaina Antonino Pinto, professora de Engenharia da Mobilidade na Universidade Federal do Itajubá, em Minas Gerais. 

Em artigos científicos e na tese de doutorado, a pesquisadora fez estimativas sobre quais poderiam ser os impactos ao meio ambiente se houver mudanças no fluxo na região metropolitana de Belo Horizonte. Entre os pontos para o objetivo estão: redução dos automóveis nas vias, uso de combustíveis mais limpos e atuação do poder público para fiscalização da frota.

A especialista também aponta que transporte mais efetivo é o que permite o deslocamento de um grande número de pessoas, poluindo menos, ou deixando de poluir. "Então, o transporte de massa, trens e metrôs, o uso de veículos elétricos no transporte público e o incentivo do transporte ativo são algumas ações que podem colaborar", aponta.Todo o esforço tem um só objetivo: viver mais e melhor. A poluição do ar é um problema de saúde pública, que mata, em média, 7 milhões de pessoas no mundo todos os anos, sem dar escolha para quem respira o ar. No Brasil, provoca a morte de de 50 a 60 mil pessoas por ano.</p>

"Já existe hoje evidência científica que a poluição está relacionada a doenças respiratórias, incluindo câncer de pulmão, possivelmente câncer de bexiga, infarto do miocárdio, AVC, parto prematuro, má formações congênitas e alterações e comportamento com aumento da probabilidade de se fazer devolver uma demência precoce, ou seja, um Alzheimer, e isso tem um impacto economico grande", explica Paulo Saldivia, médico patologista e professor da Universidade de São Paulo (USP).

Bicicleta como aposta

O transporte em bicicletas ganhou destaque no período de isolamento e pode ser uma aposta para depois da pandemia. Seja por ser um transporte que permite cuidados frente à covid -pela locomoção ao ar livre sem grandes proximidades a outras pessoas-, seja pela possibilidade de atividades físicas que permitam mais cuidado com a saúde. Desde o início do isolamento, aliás, houve um avanço significativo no comércio de bicicletas. Dados da Associação Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike) apontaram um aumento médio de 50% nas vendas em 2020 em comparação a 2019. Julho foi o mês de maior impacto: alta de 118% em relação ao ano anterior. Em 2021, no primeiro semestre, a importação de bicicletas aumentou 20% em relação ao mesmo período do ano anterior. Considerando os recursos envolvidos na importação de componentes, a Associação Brasileira do Setor de Bicicletas afirma que o período teve o melhor registro desde o início da série histórica, em 2010.

"É um modo de transporte de zero emissões, não polui o ar, não contribui com as mudanças climáticas, além de ser uma importante aliada contra o sedentarismo e para que os espaços sejam mais humanizados", pondera o pesquisador do Iema. "Algumas cidades no mundo também perceberam isso e estão investindo acertadamente em sistemas cicloviários que garantam que os cidadãos possam se deslocar com segurança e conforto", completa.O brasiliense Marcelo Carvalho Castanho, 28 anos, foi uma das pessoas que migrou para o uso da bicicleta durante a pandemia. Inclusive, foi nesse período que ele aprendeu a andar sobre duas rodas. "A bicicleta foi a solução perfeita para a prática de exercícios físicos. Eu precisava sair um pouco do ambiente que estava 24 horas por dia. Andei uma vez na minha vida e tive que reaprender agora", conta o publicitário.

Entusiasta do tipo de transporte, o designer gráfico Rafael Araújo, 30 anos, utiliza a bicicleta como principal forma de locomoção. Diariamente, ele percorre 14km de distância entre casa e trabalho. Um hábito que começou como transporte alternativo há sete anos.

Tsai também destaca como o meio ambiente responde de forma rápida às mudanças nas atividades, principalmente no que diz respeito a transporte: "Fica evidente que se alterarmos os padrões de deslocamento na cidade, teremos imediatamente um lar mais livre de partículas danosas". Para tanto, relembra a importância em se seguir a priorização da Política Nacional de Mobilidade Urbana, que define uma ordem entre os modais de transporte em cidades. Iniciando na caminhada e bicicleta e seguindo por transporte coletivo, urbano, de cargas e automóvel particular, respectivamente. "É coerente com a forma mais eficiente das pessoas se deslocarem, consumindo menos energia, e, portanto, gerando menos poluentes", defende o especialista.

No início, com a escassez de leitos em hospitais -e com o risco maior de exposição nesses ambientes-, ele teve ainda mais receio da irresponsabilidade de motoristas no trânisto. "No caminho para o trabalho, eu poderia sofrer algum acidente e parar no hospital, com alto risco de infecção pelo novo coronavírus", relata. Mas os benefícios se sobressaíram e, com adaptação no percurso e negociação de horários, Rafael voltou às pedaladas: "Principalmente nesse momento da pandemia, acho é uma opção maravilhosa".Incentivo na política.

O trabalho em legislar sobre a utilização de bicicletas como transporte seguro nas grandes capitais avançou durante a crise sanitária do novo coronavírus. Segundo a União de Ciclistas do Brasil (UCB), o trâmite ainda é lento, mas a aposta é que a discussão se estenda para além do período pandêmico."Em termos de Congresso Nacional, o assunto tomou evidência. O número de Projetos de Lei cresceu bastante em relação à utilização da bike em aplicativos de entrega de comida ou correlatos", ressalta o ativista Milvo Rossarola, que coordena o monitoramento legislativo da união.

Embora a bicicleta continue a representar um percentual baixo se comparado com os outros modos de deslocamento, nota-se um aumento de usuários na marca de 80% entre o período pré-pandemia e depois das ações de contenção da covid-19. É o que aponta uma pesquisa do programa de pós-graduação em Engenharia de Transportes e Gestão Territorial da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A amostra do estudo demonstra uma diminuição daqueles que optaram por percorrer as distâncias a pé e um aumento da utilização de bicicletas."As pessoas descobriram que a bicicleta é segura não só como meio de lazer, mas como transporte. Elas descobriram durante a pandemia que é mais seguro você ir para o trabalho de bicicleta do que pegar um transporte coletivo", ressalta o ativista.

Os Poderes também ficaram mais interessados em tratar do tema. Seja em nível estadual, municipal e, principalmente, federal. "Tivemos um avanço muito grande de Projetos de Lei tratando sobre o assunto. Tentando garantir a qualidade do serviço, mas principalmente a questão da segurança das pessoas que compram o produto", ressalta o pesquisador da União de Ciclistas do Brasil. 

Durante as eleições de 2020, em plena pandemia, 100 organizações locais -em 26 metrópoles do Brasil- se inscreveram na campanha "Mobilidade Sustentável nas Eleições", uma ação organizada pela Associação pela Mobilidade a Pé em São Paulo (Cidadeapé), projeto Como Anda, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e a UCB. Entre as cidades participantes, 23 elaboraram cartas compromisso contendo propostas para as candidaturas, sendo elas: 21 específicas para o Poder Executivo e 17 específicas para o Poder Legislativo.

"Infelizmente, o processo ainda é demorado para algumas situações. A demanda da sociedade existe, a população brasileira quer medidas que favoreçam a bicicleta", destaca Milvo. "Nosso trabalho depende da mobilização de entidades locais. Seja através dos nossos contatos junto às bases [políticas] ou das entidades parceiras à UCB", acrescenta.

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