Cargas de esperança
Histórias de quem levou as vacinas por ar, terra e água para que elas chegassem aos braços dos brasileiros
Equipe SBT News
Por Ariane Ueda, Fernanda Bastos, Fernando Jordão, Gabriela Vinhal, Guilherme Resck, Leonardo Cavalcanti, Lis Cappi e Luís Salimon
Às 7h35 de uma manhã chuvosa em São Paulo, o avião da Turkish Cargo tocou o solo do Aeroporto Internacional de Guarulhos com 120 mil doses de vacina. No final daquele dia, 19.nov.2020, mais 606 pessoas morreriam de covid no Brasil. A conta nefasta cresceu de maneira quase exponencial por pelo menos seis meses, até que a imunização finalmente mostrasse resultados na redução de casos e de óbitos. O pouso do Boeing 777, entretanto, é simbólico. A partir dali uma rede de transportes rapidamente se formou. Se a cura ainda está distante, cargas e mais cargas representaram a esperança, todos os dias. O SBT News refez os caminhos das vacinas, desde a chegada dos imunizantes e dos seus componentes ativos nos aeroportos até a distribuição nas fronteiras do país e nos bairros periféricos das capitais.
As histórias de quem levou as vacinas por ar, terra e água até chegarem aos braços dos brasileiros mostram como a conexão dos transportes são determinantes para o sucesso de políticas públicas. No Rio de Janeiro e em São Paulo, logo depois dos desembarques, os imunizantes são acondicionados em caminhões com carrocerias refrigeradas para, finalmente, serem entregues a centros de distribuição e, assim, aos postos de saúde.
Atrás de volantes, manches ou lemes os relatos emocionantes revelam preparo e consciência do trabalho. O comandante Rogério Pacileo Junior é um desses personagens. "Foi a missão mais importante da minha vida", diz o piloto.
Em um país de dimensões e com uma geografia continental, é preciso esforço para fazer com que as doses de esperança chegassem a pontos extremos. "A sensação é de dever cumprido, de vitória", celebra a enfermeira Sandy Graça, que viaja diariamente de barco para vacinar ribeirinhos em Benjamin Constant (AM), a última porção de terra do Brasil, na fronteira com o Peru. São essas pequenas e grandes vitórias que serão descritas a seguir:
Pequim, -16ºC. Depois de 50 horas de voo, o comandante Rogério Pacileo Junior, da LATAM Brasil, pousou o Boeing 777-300ER para buscar insumos para a fabricação das vacinas. "A gente chegou ainda de noite. Estava começando a clarear o dia. Aquele aeroporto era uma novidade, é gigante", lembra.
O voo saiu do aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, fez uma parada em Amsterdã e depois em Pequim. Na missão estavam quatro comandantes, quatro copilotos e a equipe de manutenção. "Foi uma aventura. Nunca imaginei que pudesse fazer parte do início de um negócio como esse. Um desafio porque é um lugar totalmente diferente, cultura diferente, regras aéreas diferentes." O objetivo era buscar 5.600 litros de IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo) para a fabricação da vacina contra a covid.
"O mais legal foi poder contribuir com algo que não era para mim naquele momento. Minha mãe tomou a vacina feita com o produto que veio no avião que eu vim pilotando. Me sinto feliz de saber que uma pequena parte de responsabilidade disso foi da minha empresa, mas através das minhas mãos."
No início da pandemia, o comandante Rogério foi afastado e ficou cerca de dois meses sem voar. Em quase 30 anos de carreira, ele conta que ver os aviões parados era assustador. "É uma situação muito triste. Nunca imaginei ver as aeronaves todas no chão, cobertas para não entrar sujeira, não tomar sol."
Foram os voos para a China que fizeram ele voltar da licença. "Ligaram para perguntar se eu poderia realizar esses voos. Caramba, eu indo pra China." O primeiro voo foi ainda no início da pandemia para buscar máscaras. "O avião voltou carregado. Tinha carga no porão e também no lugar dos passageiros. Avião grande, 74m de comprimento, e estava lotado até o teto de máscaras."
Rogério deve se aposentar ainda neste ano. "Foi muito importante para a minha carreira poder contribuir nesse momento. Já tenho muito tempo de voo e estou finalizando a minha carreira feliz da vida por ter contribuído para uma coisa tão importante e fazendo o que eu amo. Fiquei muito honrado em participar. Foi um presente que ganhei."
Para o carregamento de uma carga de vacinas, a estimativa é que 500 pessoas se envolvam diretamente. Ao menos 30 pessoas participam só na parte do planejamento. Para carregar uma aeronave, é necessário 170 pessoas. Ainda tem as equipes do aeroporto e da Polícia Federal. "É o tipo de operação que nada pode dar errado", conta a diretora da Azul Cargo Express, Izabel Reis, que atua há 36 anos na área da aviação.
"A gente recebeu uma ligação dizendo: 'A partir de amanhã vamos ter os lotes da vacina'. A gente passou a noite inteira discutindo em que voos poderíamos colocar, quais os horários, o que a gente ia fazer, quem ia coletar, quem ia transportar, quais os prazos das entregas das capitais, e a gente considerou até 2 ou 3 dias para o recebimento", diz Reis. "Foi uma corrida ao ouro. Tivemos que mudar todo o planejamento. Foi feita uma nova programação, tivemos que posicionar aeronaves, tripulação, refazer os cálculos do que cabia para transportar e depois fizemos a operação acontecer", lembra.
Todas as áreas da companhia se reuniram em uma sala para verificar a capacidade de cada aeronave e decidir a quantidade que poderia ser transportada. São 5 tipos de aeronaves. Ainda era preciso desenhar a malha, definir qual aeronave ia para cada destino, negociar como seriam entregues os lotes para que o recebimento ocorresse de forma ordenada, além de alinhar a operação com a Polícia Federal para fazer a escolta.
Leandro Silva, Gerente da Azul Cargo Express, lembra que o embarque em Curitiba atrasou, e, na última hora, as vacinas precisaram ser colocadas em um voo de linha com tripulação. "Quando terminou o carregamento um dos comandantes anunciou 'Bem-vindos a bordo. Hoje estamos embarcando o primeiro lote de vacinas '. Isso foi muito legal. Nesse momento você vê que faz algo que recompensa ao ver as pessoas batendo palmas emocionadas.".
Para Otávio Meneguette, diretor da Latam Cargo Brasil, não foi diferente. "Olha, foi extremamente comemorado aqui dentro, porque o primeiro voo, muito além da função profissional, ele veio com uma função aspiracional, pudemos voltar a ter esperança de que a gente vai sair disso", afirma ele. "Foi muito legal a comoção do nosso time, dos clientes, as pessoas comemoravam, gritavam, batiam palma. Nesse momento rompeu uma expectativa e vimos tudo se transformando em realidade."
A operação é complexa e tem que ser bem planejada. Dentro das caixas é como se tivesse uma ampulheta girando ao contrário. Na verdade é o gelo derretendo avisando que a estabilidade da vacina não pode ser comprometida. O gerente de Key Account Doméstico da Latam Cargo Brasil, Marcos Tobias, explica que no caso de destinos mais longos, como Rio Branco, no Acre, e Boa Vista, em Roraima, o cuidado precisa ser maior para que a exposição à temperatura quente seja a menor possível.
"Para o sistema de vacina o planejamento muitas vezes muda. Dependemos da hora que o laboratório fabricante vai liberar a vacina, depois que ele libera tem um time de preparação do gelo, tem um time de preparação do volume, e nem sempre o horário fica dentro do que normalmente a operação comum acontece."
Para a Azul, o transporte das vacinas começou a ser pensado no segundo semestre de 2020. Várias reuniões foram realizadas sobre importação, com a administração do aeroporto para verificar os meios para manter a temperatura das vacinas. Contêineres refrigerados foram alugados. "A gente já estava pensando de onde as vacinas viriam, o que era preciso para operar isso. Se a gente já foi buscar insumos, por que não buscar as vacinas? Normalmente transportamos material biológico e outros tipos de vacinas", diz Izabel.
A Azul realizava em média mil decolagens por dia antes da pandemia. Em abril do ano passado, passaram a decolar apenas 80 voos por dia. "De repente a gente se viu pensando completamente fora da caixa. O que a gente mais tinha era avião parado e tripulação pronta para viajar. A única solução que a gente via para essa situação acabar era ter a vacina, insumos e respiradores", conta.
A companhia nunca tinha voado para a China, mas precisava buscar os respiradores lá. "Foi desafiador porque no planejamento a gente não encontrava lugar para pousar o avião para fazer o reabastecimento. Todos os países estavam fechados", afirma Izabel.
Marcus Navi, Gerente Regional de Operações LATAM Cargo Brasil conta que o maior planejamento deles também foi quando foram buscar insumos na China. "Nesse momento, a gente precisou treinar e capacitar as pessoas para poder promover um transporte de cargas diferente. O transporte de cargas é um bastidor da aviação que quase nem todos enxergam, porque ele fica embaixo da aeronave. Então, em cima fica o passageiro e a carga na parte inferior. Só que nesse momento a carga também ocupou o lado do passageiro. A gente precisou se capacitar, entender as limitações e atender as exigências regulatórias."
"Foi um processo muito interessante e ágil. A gente nunca tinha sido autorizado pela Anac a transportar carga nos bancos. O que antes demorava um ano para autorizar pedidos fora do comum, passaram a acontecer em 30, 40 dias", diz Izabel Reis.
A diretora da Azul Cargo Express ainda lembra que o primeiro lote de vacinas que veio do exterior para a Fiocruz, no Rio de Janeiro, foi feito por uma empresa internacional contratada pelo Ministério da Saúde. Porém, o voo contemplava desde o local de origem somente até o aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Mas a Fiocruz está localizada em outro estado. "Nesta madrugada nosso diretor de Relações Institucionais ligou e disse que precisava fazer as vacinas saírem de São Paulo e levar para o Rio de Janeiro em um avião de grande porte. A gente nem pensou quem ia pagar essa conta. Tínhamos que fazer isso acontecer", conta Izabel.
O 737 cargueiro da Azul estava fazendo o trecho Manaus-Campinas. A rota foi alterada para pousar em São Paulo em vez de Campinas, interior de São Paulo. Mas a carga teria que ser enviada via terrestre até Campinas. "A gente nem sabia quem estava trazendo a carga das vacinas, quem ia fazer a liberação na alfândega, quem eram as pessoas que estariam lá para nos entregar a carga. A gente não estava olhando o individual, mas o coletivo."
No mês de janeiro a falta de oxigênio nos hospitais de Manaus gerou uma corrida contra o tempo para tentar salvar vidas. Marcos, da Latam, lembra que recebia ligação o dia todo com pessoas querendo entender como funcionava esse tipo de transporte. "No avião solidário, a gente transportou quase 70 toneladas de oxigênio de forma gratuita para o Amazonas. Esse voo aconteceu no domingo às 3h da madrugada. Eu passei o sábado todo conversando com fornecedores de oxigênio, empresa que estava doando oxigênio, pessoas físicas que estavam doando oxigênio, hospital que comprou. Tinha muita gente ligando o tempo inteiro."
Os profissionais da aviação que estavam acostumados com o familiares questionando sobre preço de passagem aérea se viram diante de novas perguntas. "Minha mãe mora comigo e ela perguntava: 'A vacina que vai para Belo Horizonte chega em qual dia? Está vindo com vocês? Você já resolveu?'. A gente acabava sendo cobrado até em casa", conta Marcos.
Izabel viveu diversas situações inusitadas e não imaginava atuar em uma pandemia. "Nunca pensei na possibilidade de ajudar a salvar alguém. Agora a gente sabe que tempo é vida. Não me importo de estar trabalhando até 24h em função dessa grande causa. Sei que com um avião posso fazer a vacina chegar no destino em questão de horas. Imagina como seria se não existisse?", finaliza Izabel.
Linha de frente do combate à pandemia de covid-19. Além dos profissionais da saúde, ela inclui motoristas de todo o Brasil, que, há mais de um ano enfrentam medos e dificuldades, superam limitações e trabalham com cuidado redobrado para abastecer hospitais e outras unidades similares com os insumos necessários à manutenção da vida. Motoristas esses que, desde 18 de janeiro de 2021, ganharam também a missão especial de transportar a esperança: as doses de vacinas contra a covid.
Quando lotes chegam ao país por aeroportos, ou ficam prontos para distribuição no Instituto Butantan, em São Paulo, ou na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, entram em cena colaboradores da VTCLOG -empresa com 2 mil funcionários e que foi contratada pelo Ministério da Saúde. Em caminhões refrigerados, eles levam os imunizantes para um Centro de Distribuição Logístico em Guarulhos (SP) ou para um almoxarifado -também pertencente à pasta- próximo à Fiocruz. Nos locais, as substâncias ficam armazenadas em câmaras frias, com temperatura entre 2 a 8°C, até chegar o momento de serem enviadas aos estados -pelo mesmo tipo de veículo-, respeitando o Plano Nacional de Imunizações (PNI).
Segundo Gylson Ribeiro, coordenador da Câmara Técnica Farmacêutica (CT Farma) da Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística (NTC&Logística), o processo "é o mesmo que a rede SUS sempre teve, e sempre as vacinas que o Brasil aplica no seus programas, as de gripe, infantis, são distribuídas pela rede SUS". Esta, nas palavras de Gylson, "é a maior rede de vacinação, uma estrutura imensa, a melhor do mundo, a mais rápida do mundo". A responsabilidade pelo transporte das vacinas é do governo federal, das secretarias estaduais de Saúde e das secretarias municipais, a depender da etapa. As pastas podem contar com seus próprios motoristas ou contratar empresas por meio de editais. Nesse segundo caso, de acordo com o integrante da NTC&Logística, as companhias precisam ter licenças concedidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
"Toda empresa que pretende trabalhar com isso tem que ser qualificada junto à Anvisa, que vistoria, dá essa licença, renovável anualmente, e inclusive não é uma licença barata, porque além de tudo tem as regras, a parte técnica, você tem que ter farmacêutica, a empresa tem todos os manuais de boas práticas, segue uma rotina de cuidados", acrescenta. Na parte do transporte que compete ao Ministério da Saúde, a VTCLOG o faz. Além de levar as doses até a os depósitos federais, depois, ela as encaminha para os polos estaduais de distribuição, processo que pode levar até 48 horas.
Gerson Campos, de 56 anos, é um desses motoristas. Morador de Santo André, no ABC Paulista, começou a trabalhar com transporte aos 18: "Fui lá, tirei a minha habilitação e segui para o meu sonho que era ser motorista e mexer com carrro pequeno até chegar em carros maiores. Mas sempre foi o meu sonho". Antes de entrar na atual empresa -há pouco mais de um ano-, porém, nunca havia transportado medicamentos, somente cargas brutas, como autopeças. Dessa forma, precisou passar ainda por "muito treinamento".
Nos meses que antecederam o momento em que as primeiras doses de vacinas contra o coronavírus ficaram prontas para distribuição no país, já levava máscaras, luvas e outros produtos aos estados. Quando recebeu a informação de que precisaria fazer sua primeira viagem com imunizantes da covid, o primeiro sentimento foi de nervosismo. "Era muita responsabilidade saber que aquela carga, para chegar num ponto final, depende muito de você." Porém, de acordo com ele, a sensação de dever a ser cumprido falou mais alto, e então foi para Belo Horizonte. Como os outros colegas, atende desde o Oiapoque (AP) até o Chuí (RS). "Aqui eu tive a oportunidade de conhecer outras cidades que até então eu não conhecia, nesses meus anos de transporte."
Tendo inclusive perdido o sogro para a covid, em 31 de março de 2020, relembra que, quando recebeu a primeira dose da vacina há cerca de três meses, sentiu uma "tremenda felicidade". "E me orgulho saber que mesmo eu não tendo entregado na minha cidade, tem um dedinho meu ali também. E inclusive até para o pessoal que faz a triagem, tem as meninas lá que aplicam, eu sinceramente tive orgulho em falar assim 'eu trabalho lá no Centro Logístico, a VTCLOG que vem entregar as vacinas aqui para você'", completou. Para o futuro, espera que todos possam passar o próximo Natal normalmente, como antes da pandemia, e que continue transportando: "eu nasci para o transporte, eu não me vejo fazendo outra coisa a não ser transportar. Para mim é um serviço essencial aqui".
Expectativas similares ao do colega Nelson Gonçalves Júnior, de 61 anos, que também carrega as vacinas para o depósito em Guarulhos e, depois, aos outros estados. Trabalhando para a empresa desde 2007, destaca que os dias ficaram mais corridos com a pandemia. Mas, quando teve que transportar sua primeira carga de imunizantes contra a covid, sentiu "a maior felicidade, porque você sabe que são vidas que estão necessitando desse insumo". "Então, você se sente elogiado, você se sente muito querido por essa forma de estar tratando uma pessoa que você sabe que vai salvar a vida dela", concluiu. Já imunizado com a primeira dose também, relembra que teve reação, mas não suficiente para abalar sua alegria de saber estar mais protegido contra o Sars-CoV-2.
Em sua família, o patógeno levou duas tias, um tio e um primo. Quando contou aos parentes que transportaria as vacinas, porém, precisou lidar com a desconfiança em relação à substância: "A gente tem que chegar e falar 'olha, veja bem, o que acontece? Isso daí é um sistema de vacina como se fosse o da gripe. Toda vez você vai ter que estar tomando'". Como seus colegas, na hora de carregar as doses, se atenta por exemplo para a temperatura de armazenagem das doses no veículo, para que não ocorra qualquer variação capaz de comprometer a eficácia. Por outro lado, não tem receio de acontecer algum problema nos caminhos por onde passa, devido à escolta da Polícia Federal. Todos os caminhões são acompanhados por uma viatura.
Já no caso do transporte das doses de um polo estadual de distribuição para os subpolos, ou seja, quando elas chegam aos estados e precisam ser levadas ao interior, a Polícia Militar também pode fornecer agentes para escoltar os veículos, que por vezes são menores. No Rio Grande do Sul, um dos estados que mais aplicou imunizante contra a covid até o momento, por exemplo, o motorista Flávio dos Santos conta que utiliza caminhonetes, assim como os demais profissionais da 9ª Coordenadoria Regional de Saúde (9ª CRS), com sede em Cruz Alta, a 347 km de Porto Alegre. Essa, inclusive, é a distância que Flávio percorre para possibilitar a distribuição de vacinas recebidas pelo estado a 12 municípios distantes da capital.
"A responsabilidade é grande, mas graças a Deus eu tenho feito 100% com muito êxito e com muito desprendimento e vontade, porque a gente sabe que estamos fazendo parte dessa situação hoje que é calamitosa no país todo, mas a gente está fazendo parte disso aí no sentido de vencê-la e acredito que a gente já tenha sentido, pelos acontecimentos do dia a dia, que estamos vencendo", pontua. O motorista relembra que se surpreendeu ao saber que faria o transporte de vacinas da covid e, um primeiro momento, "tremia". "Eu sou sincero em dizer que, no início, foi um balanço de estrutura, pela responsabilidade que tem, tu está transportando saúde, vida para as pessoas", completou.
Familiares e conhecidos o questionavam quando tomariam a vacina e havia até mesmo quem duvidasse do potencial dela: "Falavam 'ah, isso daí não vai funcionar'. Mas a gente que estava na linha de frente sabia que a coisa ia funcionar, e como funcionou". Flávio começou a trabalhar com transporte diretamente para a Secretaria Estadual da Saúde há cerca de dois anos e meio. Considera a equipe -- de quatro membros, contando com ele -- "muito responsável". Na estrada, se atenta principalmente em cumprir os horários e pegar o melhor caminho: "uma das rotas a gente já procura não fazer ela em função disso, no caso de se der um problema na estrada, ela não tem socorro. Tem certos locais nessa rota que não pega nem sinal de internet, de nada".
A 351,9 Km de Cruz Alta, na cidade de Alegrete (RS), atua outro motorista com a mesma determinação e cuidado. Jorge Elias Carvalho, de 51 anos, é servidor público concursado da SES há 26 anos e um dos responsáveis por levar doses de vacina da covid de Porto Alegre até a 10ª Coordenadoria Regional de Saúde (10ª CRS), para que os 11 municípios da região retirem e possam aplicar nos moradores. O trajeto é de 491,4 km, que faz também com caminhonete. Por vezes, retira os imunizantes em Santa Maria -- a 244,1 km de Alegrete --, onde vêm de helicóptero. A primeira carga que levou para o interior chegou na capital gaúcha em 19 de janeiro. "Foi uma coisa assim 'olha, vai ser a esperança de todo mundo, eu tenho que levar com segurança, eu tenho que ser ágil, eu tenho que ter o comprometimento de chegar essa carga tranquila para ser distribuída para os gestores municipais de saúde'", relembra.
Segundo ele, nunca teve qualquer problema de perda de doses durante o transporte. "A gente sempre priorizou chegar essas vacinas bem acondicionadas para serem distribuídas." Já imunizado contra a covid, ele reforça ainda a importância da segurança garantida pela substância: "Quem tomou está protegendo a sua família para também não pegar essa doença. Como a gente está muito na linha de frente, toda hora, todo dia trabalhando, tanto em casa como no trabalho, a gente procura estar sempre preservando a nossa família e as pessoas que estão ao nosso redor também."
O medo de ser infectado pelo novo coronavírus, porém, pode ser paralisante e surgir como mais um obstáculo no caminho do combate à pandemia. Segundo Guilherme Cunha, responsável pelo gerenciamento de projetos e operações na RV Ímola, empresa que realiza o transporte das vacinas para a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, no início da crise sanitária, foi preciso fazer "um trabalho de conscientização de todo mundo que era o nosso papel nesse momento fazer a diferença. O nosso não trabalho faria com que as coisas piorassem". Num contexto em que todos os setores estavam parando para se proteger da contaminação, os motoristas também não queriam ir para os hospitais. "Então, pessoalmente falando, foi um momento que exigiu muito esforço mental da nossa parte", afirma Guilherme.
Vacinado com a primeira dose, ficou emocionado no momento da aplicação. Uma semana antes, havia perdido a avó para a covid-19. No ano passado, chegou a contrair a doença também e permaneceu 15 dias com mal-estar. Guilherme trabalha há dois anos como responsável pelas operações da RV Ímola. Ainda segundo ele, nos primeiros meses da pandemia, os volumes de material a serem transportados aumentaram cerca de 60% e, dessa forma, todos precisaram trabalhar com mais comprometimento. Para transportar as vacinas, utilizam caminhonetes, que ficam de quatro a cinco dias em testes antes de irem para as ruas. Testes "de estresse para garantir que esse conjunto de equipamentos baú + climatização ele consegue garantir a estabilidade da temperatura", explica Guilherme.
A RV Ímola presta serviço para a SMS de São Paulo há cerca de três anos. No total, possui 80 motoristas, mas há equipes específicas para o transporte dos imunizantes da covid, que buscam as doses no Centro de Armazenamento e Distribuição de Imunobiológicos (CADI) -- onde chegam após liberação pelo Centro de Distribuição e Logística (CDL) do governo estadual -- e levam até os cinco Postos de Armazenamento e Distribuição de Imunobiológicos (PADIs) paulistanos, último local por onde passam antes de chegar aos postos de saúde. Entre os integrantes das equipes, está Carlos Alberto Soarez, de 40 anos, que começou a atuar na empresa em 2019.
Ansiedade resume o momento no qual levou a primeira carga. "Até porque nós também tínhamos que tomar essa vacina e eu estava no princípio carregando sem tomar. E não só ansioso por isso, mas também porque todos estavam aguardando. Eu lembro que, quando chegou aqui, nós fomos atender um primeiro hospital, que se eu não me engano foi na zona norte mesmo, tinha muita gente aguardando já para ver a vacina chegar", diz. Em sua família, as duas cunhadas contraíram covid, mas se recuperaram em casa. No dia a dia, agora, Carlos está focado em manter a rapidez das entregas.
A corrida contra o tempo é o foco também do CADI, de acordo com Natalia Gregio, gerente do centro de armazenamento e distribuição. No local, a rotina, fala ela, mudou "radicalmente" quando vieram os primeiros lotes de imunizantes, em 19 de janeiro. "Então hoje a minha demanda chega a ser quatro vezes maior do que antes da campanha contra a covid. A gente teve que se adaptar, todo o RH, o horário, o setor, para que pudéssemos atendê-la", explica. A preocupação maior é garantir a qualidade das vacinas, mantendo a temperatura entre 2º e 8ºC no armazenamento e transporte, por exemplo. Mesmo assim, emoção é o sentimento que Natalia lembra ter sentido quando a vacinação começou no município.
"É uma rotina profissional que a gente está acostumado há bastante tempo, mas acho que pelo apelo da população, se tornou uma coisa que realmente envolveu a emoção das pessoas. Então mais do que uma conquista profissional, e é muito gratificante a gente trabalhar dessa forma, podendo ajudar de alguma forma nesse momento difícil a sociedade", afirma. Ela acompanhou a chegada das doses nos postos de saúde também, no primeiro dia: "Você via no rosto das pessoas a emoção e a gratidão e aquela chama de esperança mesmo, no meio daquele desespero".
Os PADIs para onde o CADI encaminha as doses, no território paulistano, ficam nas zonas norte, sul, leste, centro-oeste e sudeste. Natalia pontua que, desde 2016, nenhuma unidade foi perdida. Segundo o Ministério da Saúde, no país, até a segunda semana de julho, 9,6 mil vacinas contra a covid apresentaram laudo insatisfatório -- por problemas no transporte terrestre --, em avaliação feita pelo Instituto Nacional de Controle e Qualidade em Saúde (INCQS), e tiveram que ser descartadas. O número representava 0,0066% do total de doses distribuídas às unidades federativas até aquele momento.
O Amazonas é formado por 62 municípios, dos quais apenas 13 têm ligação terrestre com a capital, Manaus. O cenário, que se repete -em menor proporção- em outros estados da região Norte, dificulta a elaboração e a execução de qualquer plano logístico. Mais ainda no caso da vacinação contra a covid-19, que conta com especificidades como a necessidade de aplicação de duas doses, os diferentes intervalos entre elas, a depender do imunizante, e a condições de acondicionamento das ampolas. Além, é claro, da urgência do processo em um dos locais mais afetados pela pandemia no Brasil, quiçá no mundo.
"A gente tem um desafio muito grande aqui na região Norte. O Amazonas é o maior estado da Federação, com dimensões continentais, extensões territoriais muito grande e uma densidade populacional muito baixa. Ou seja, a forma como a população está dispersa no território é um dificultador no acesso às políticas públicas de saúde. Também temos mais de 97% de floresta preservada e a maior população ribeirinha do país. Os rios são as nossas estradas", contextualiza o diretor-presidente da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas Dra. Rosemary Costa Pinto (FVS-RCP), Cristiano Fernandes.
Mas a vida sempre encontra um meio. E no caso da vacina, não seria diferente. Diante de todas essas dificuldades, que incluem quase 420 mil casos e mais de 13 mil mortes por covid, é simplista dizer que o meio encontrado foi o transporte fluvial. Na verdade, o meio foi o empenho de trabalhadores que dedicaram dias, noites e muitas horas a bordo de barcos para levar doses de esperança a cada cantinho de Brasil.
São tantas pessoas envolvidas que é até difícil estimar um número. Fernandes arrisca um valor na casa de 100 mil, passando pelos 90 mil profissionais de saúde do estado, até servidores de órgãos que vão do Departamento de Trânsito (Detran) à Universidade Federal do Amazonas. "É uma força-tarefa para conseguirmos avançar. O segredo é o esforço coletivo", define.
O diretor da FVS acrescenta que muitos desses trabalhadores saíam voluntariamente de plantões para fazer hora-extra nos mutirões de vacinação. "A gente conviveu muito com o sofrimento das pessoas e esse sofrimento não foi esquecido. Hoje, a gente quer conviver com o lado feliz. E eu acho que isso se traduziu na vacina. Uma fala muito interessante que ouvi de uma profissional foi: 'Cansei de ver o sofrimento das pessoas. Agora eu quero trazer uma dose de vida'."
A enfermeira Sandy Graça é uma integrante desse batalhão. Ela coordena o Programa Nacional de Imunização em Benjamin Constant, uma das últimas porções de terra do país, na fronteira com o Peru, e uma das 49 cidades amazonenses que não podem ser acessadas por vias terrestres. Em linha reta, a distância até Manaus é de cerca de 1,1 mil km. Mas quem quiser percorrer esse trajeto vai levar, ao menos, 29 horas. Além disso, boa parte dos 44 mil habitantes não mora no distrito-sede, mas em alguma das 65 comunidades ribeirinhas -- das quais 33 são indígenas.
A campanha de imunização no município começou no fim de fevereiro -- quase um mês após o início no âmbito nacional. Segundo Sandy, as equipes iam a cada dia em uma comunidade. "A gente vive de desafios e eu sabia que esse seria um grande desafio", relembra. Hoje, com 899 dos 1.311 moradores de comunidades ribeirinhas da cidade vacinados, ela celebra: "A sensação é de dever cumprido, de vitória".
Clima, custos e crenças
O transporte fluvial é influenciado por fenômenos climáticos de uma forma que não se repete com os modais terrestre e aéreo. Por isso, o planejamento para as áreas em que o único acesso se dá por rio precisa ser pensado de forma minuciosa. "A gente precisa organizar essa logística de forma a ter um acesso mais rápido a determinados municípios, de acordo com a dinâmica dos rios. Costumamos falar que é como um relógio, que tem que estar pari passu com essa dinâmica toda que a gente tem, principalmente com a questão das cheias e das vazante. O período de chuvas facilita o acesso a algumas comunidades, que no período de seca você tem dificuldade de acessar", detalha Cristiano Fernandes.
Por conta disso e da perecibilidade dos imunizantes, às vezes foi necessário combinar o transporte por barcos com aviões, o que encareceu o processo. Juan Mendes, secretário de Saúde do Amapá, explica que, diante de dificuldades financeiras, cidades vizinhas precisaram se juntar para diluir os custos logísticos, principalmente no início do processo de vacinação no país, em que o número de doses era escasso. "Temos um município aqui no estado chamado Mazagão, que tem cerca de 19 mil habitantes e várias comunidades ribeirinhas. Você imagina na fase de distribuição [da vacina] para o grupo prioritário acima de 80 anos. Chegavam para esse município 50 doses para serem divididas em todas as 140 comunidades ribeirinhas. Se você for levar em consideração apenas a questão do custo da dose, o custo de ir nessa comunidade e retornar em um intervalo de 28 dias, no caso da vacina do Butantan, é maior que o custo dessa dose", expõe.
Para Mendes, faltou planejamento por parte do Ministério da Saúde para que houvesse uma compensação e mais doses fossem enviadas a municípios com tais particularidades, de modo a reduzir os custos do processo de imunização. "Isso é mais um aprendizado que tivemos em termos de avaliação. Acredito que, se tivéssemos um suporte, principalmente financeiro, a esses municípios que têm uma logística diferenciada, isso nos daria uma tranquilidade maior. Todos nós estivemos no nosso limite financeiro orçamentário, especialmente em 2021. Foi algo que poderia ser melhorado."
Além das idas e voltas para aplicar primeiras e segundas doses, foram necessárias, ainda, muitas viagens de barco para superar um outro desafio: a descrença -- ou o excesso de crença -- da população. Sandy Graça conta que a aceitação do imunizante pelos ribeirinhos, a princípio, foi péssima. "Como eles vivem isolados, muitos não entendiam direito e realmente achavam que iam virar jacaré, chimpanzé ou que havia um chip para controlá-los. Também existe uma religião chamada Santa Cruz que não aceita receber a vacina porque crê que quem salva é Deus", diz.
Frente a essa situação, os profissionais passaram a fazer viagens apenas para tentar conscientizar a população. Nesses casos, as doses sequer iam nos barcos. Também houve um intenso trabalho com agentes comunitários e lideranças religiosas. "Nas comunidades indígenas, os caciques foram os primeiros a aceitar para serem exemplos. Quando vi, fiquei feliz, porque sabia que os demais também logo aceitariam", recorda a enfermeira. Atualmente, ela afirma que a aceitação vem crescendo, com pessoas buscando a primeira dose quando parentes vão receber a segunda, procurando pela vacina na Unidade Básica de Saúde (UBS) fluvial -- que oferece outros tipos de serviço, mas passou a carregar também o imunizante -- e até indo ao distrito-sede para se vacinar. Aos que ainda resistem, Sandy manda o recado: "A gente não desiste. No dia que aceitarem, a gente leva a vacina".
Logística interfere na vacinação?
As quatro unidades da Federação com o menor percentual da população vacinada com a primeira dose estão no Norte. De acordo com o site CoronavirusBot, que compila informações das secretarias estaduais de Saúde, os últimos do ranking nacional no sábado (7.ago) eram, na sequência, Amapá -- com 36,97% de imunizados com uma dose --, Pará (37,23%), Roraima (39,39%) e Tocantins (41,85%). O melhor colocado da região é o Amazonas (46,99%), em 13º. Acre (44,56%) e Rondônia (43,58%) aparecem em 18º e 19º, respectivamente.
Mas engana-se quem pensa que esse ritmo está atrelado à logística e às dificuldades relacionadas a transporte. O secretário de Saúde do Amapá elenca o perfil da população e questões ligadas ao acesso à internet como principais explicações para o posicionamento no ranking nacional. "Existe um parâmetro de distribuição de vacina que nos estados do Norte se dá de forma diferenciada. Qual é o principal deles? A pirâmide etária, que aqui é diferente do restante do Brasil, especialmente do Sudeste. O que isso significa? Que nós temos uma população mais jovem. Isso foi um fator determinante nas primeiras fases de distribuição. Outra influência diz respeito aos grupos prioritários, entre eles as pessoas com comorbidades, profissionais da saúde e profissionais da segurança. Proporcionalmente, nesses estados do Norte do Brasil, especialmente Amapá, Acre, Roraima e Rondônia, esses grupos são bem diferentes das regiões Centro-Sul e Sudeste", pontua Juan Mendes.
"Um outro ponto muito importante é a questão da dificuldade de alimentação das plataformas do Plano Nacional de Imunização. A gente tem uma dificuldade de acesso à internet em comunidades mais distantes. Então, esses cadastros eram feitos de forma manual e os profissionais retornavam às sedes das secretarias municipais para os dados, a partir daí, serem colocados nos sistemas de informação do Plano Nacional de Imunização. Então não é só uma questão de distância, de dificuldade logística", conclui.
Um cotonete. É daí que vem o diagnóstico positivo ou negativo do exame de covid-19. O instrumento, que incomoda na hora da realização do teste tipo RT-PCR, conhecido como swab nasal e nasofaríngeo, é essencial para a detecção da doença no organismo. E uma das pessoas que o transportam para as clínicas é o Charlen.
Charlen Wellison Cardoso Gomes, 32 anos, e há três como motoboy, antes de transportar os cotonetes foi barbeiro. Começou a entregar medicamentos e outros insumos por necessidade e tentou fazer uma renda como motorista de aplicativo anteriormente. Em março de 2020, o início do trabalho na empresa Brasília Expresso Motoboy coincidiu com o primeiro lockdown no país. "Assim que eu entrei foi quando estavam fechando todos os comércios. Comecei a tomar cuidado por conta da pandemia e a gente não parou. A empresa disponibilizou álcool, máscara e orientou para que o baú -- parte onde a carga fica na moto -- ficasse sempre limpo", relembra.
Seguindo estas orientações, todos os dias, Charlen chega à base dos motoboys da empresa, às 9h, onde aguarda o chamado. Assim que ligam para o transporte dos cotonetes para os testes, o motoboy busca as caixas -- com 20 unidades cada -- na distribuidora, localizada em Taguatinga, região administrativa do Distrito Federal e deixa em clínicas na quadra 102 da Asa Sul, em Brasília, em Planaltina de Goiás e em Águas Lindas de Goiás, municípios no estado vizinho. Em média, o motoboy percorre 200 quilômetros por dia.
Segundo Charlen, no início da pandemia e no segundo auge dos casos, em março de 2021, eram em torno de 120 a 150 entregas por dia de testes e medicamentos. Hoje, o motoboy realiza de 80 a 100 entregas. De acordo com dados do Ministério da Saúde, desde o início da pandemia já foram distribuídos 23.624.908 testes RT-PCR para diagnóstico da covid-19.
Dos 15 colegas motoboys da empresa, três positivaram para a covid-19. Um deles, era Charlen. Após ter contato -- sempre de máscara e mantendo o distanciamento social -- com clientes que acreditavam estar doentes, o profissional lembra dos dias complicados. "Tive sintomas muito fortes, tomei remédio para baixar a febre e três dias depois comecei a ter falta de ar", diz. O motoboy ficou dias dormindo sentado, pois ao deitar tinha a sensação de afogamento. A família toda contraiu a covid-19. As duas filhas de 10 e 3 anos e a esposa de 27. Felizmente, todos estão bem.
Charlen diz que com o seu trabalho, leva certezas para as pessoas. "Nossa base fica muito perto de uma das clínicas que entregamos os cotonetes e vi muitas pessoas chorando ao saber que estavam com covid-19 e que poderiam morrer. Segundos depois, vi gente sorrindo e comemorando por não ter contraído a doença. Eu sei da importância de ter essa certeza e eu entrego isso", ressalta.
As certezas podem ser traduzidas desde os 0,32 gramas de um cotonete para teste de covid-19 até o peso incalculável de uma vida. E o piloto de UTI aérea da companhia Brasil Vida, Phelipe Augusto Fleury, sabe bem a responsabilidade que transporta. Sempre pronto, deixa a mala equipada com roupas para regiões com altas disparidades climáticas. "A equipe trabalha 24h por dia, sete dias por semana. Todos são essenciais para que a viagem possa ocorrer. Realizamos a descontaminação, a troca equipe, e de EPIs, várias vezes durante o dia. Não é um vôo de 'a' para 'b' que leva para 'c'. Um dia pode ter até 25 decolagens. Fechamos uma escala, e no nosso horário temos que estar à disposição da empresa. Fico ponto para o planejamento de voo, preparação da aeronave e abastecimento, com a mala para ir ao pólo norte ou até ao Equador", diz.
Só em 2020, foram 986 voos aeromédicos com pacientes de covid-19 realizados pela Brasil Vida. Em 2021, a empresa já ultrapassou 1.200 voos com doentes contaminados com o coronavírus entre janeiro e junho. E cada um desses voos começou a partir de uma ligação. Dela, uma rede com profissionais de diferentes estados é desenvolvida para realizar a melhor logística de viagem para o paciente com a organização do planejamento de voo, da prospecção de combustível e da utilização de oxigênio hospitalar.
Para o piloto, o principal é tentar tornar um momento difícil na vida das pessoas em uma transporte agradável e plausível. "Estou transportando pessoas em estado grave, mãe, pai, filho de alguém. Sempre pergunto para o acompanhante se já andou de avião, aviso que talvez dê uma balançadinha, mas que o tempo está bom". O piloto tem na memória um voo marcante durante o período da pandemia, um de repatriação.
Passageiros, em sua maioria idosos, estavam em um cruzeiro no Chile e queriam voltar para suas cassa nos Estados Unidos e na Europa, durante os primeiros meses da pandemia. De acordo com o piloto, estes clientes ficaram de 12h a 15h dentro da aeronave e foi preciso ter um cuidado maior com a alimentação. "Tenho uma carinho especial por eles, me agradeceram como se fosse uma coisa de outro mundo. É gratificante, eu recebi e-mails de agradecimento de muitos deles, 'estou em casa', diziam, ou 'hoje comemoramos todo mundo junto', e convites para visitá-los em suas casas quando tudo passar", relembra.
A empresa realiza parcerias com o SUS para realizar transporte aeromédico para famílias mais pobres e, o meio que é caro sai gratuito para essas pessoas. Para Phelipe, o valor de salvar vidas não tem preço, é um valor sentimental. "Eu tenho filhos e transportar uma criança, um bebê marca muito a gente, envolve um sentimento. Então fazer essa situação se tornar o mais agradável possível dentro das possibilidades para que a pessoa sinta um pouco de conforto e esperança".
Carla Domingues, epidemiologista e coordenadora do Programa Nacional de Imunizações de 2011 a 2019
Na sua avaliação, as estratégias logísticas definidas para a vacinação contra a covid foram acertadas?
Em relação à logística de distribuição, sim, porque nós estamos recebendo vacinas de forma fracionada. Uma vez que os contratos só foram assinados a partir de março, então os laboratórios não tinham mais vacinas suficientes. Com a escassez de vacinas, à medida que o Ministério da Saúde recebe, ele tem distribuído para os estados e municípios. Essa estrutura do Programa Nacional de Imunização é muito complexa. Temos um país continental, mas ao mesmo tempo tem uma capilaridade, uma organização muito grande que consegue chegar rapidamente. A vacina no município, saindo da Central Nacional que fica São Paulo, depois passa para as centrais estaduais, que ficam nas capitais. Alguns estados têm centrais regionais, até que chegam ao município e depois à sala de vacina. Então essa estrutura tem funcionado adequadamente. O que não temos neste momento é vacina em quantidade suficiente para atender a demanda do país.
O que poderia ser feito de diferente?
A grande questão é a forma como está sendo distribuída. Todos os estados ficam recebendo proporcionalmente cada lote que chega de acordo com a vacina, então isso aumenta muito a complexidade. Se nós tivéssemos pensado em distribuir de forma regional, cada região recebendo um tipo de vacina, isso seria muito mais fácil. A logística de distribuição e a aplicação da vacina. Evitaria, inclusive, o que nós estamos vendo: a população escolhendo vacina, porque a cada hora chega uma vacina diferente. É isso que trouxe uma maior complexidade, por essa questão política. Então, hoje, cada lote que chega tem que ser fracionado para 27 unidades federadas, fazendo com que haja um município e receba só 50 doses de vacina, por exemplo. Porque aquele lote vai chegar em uma quantidade muito menor.
A ideia de começar a vacinação em todos os estados no mesmo dia, como defendia o ex-ministro Pazuello, é a melhor? Não é necessário levar em conta as peculiaridades de cada UF?
Para começar no mesmo dia, nós deveríamos ter recebido a vacina com muita antecedência. Essa estrutura funciona adequadamente, mas é preciso ter um prazo para se organizar. Então, como a vacina chegou em um dia e a ela começou a ser aplicada no outro, é impossível começar todo mundo no mesmo dia.
Quais os maiores obstáculos para executar uma estratégia nacional de vacinação?
Primeiro é ter vacina em quantidade suficiente. Esse continua sendo o maior obstáculo. Nós estamos vendo que a população brasileira quer ser vacinada. Cada vez que chega um lote de vacina, gera aglomeração, porque todo mundo quer ser vacinado naquele dia. Entendendo que quanto mais precoce ela for vacinada, mais rápido estará protegida. No entanto, o que nós estamos vendo é uma procura muito grande para a primeira dose e as pessoas não estão retornando para tomar a segunda dose. Esse também é um grande obstáculo que temos hoje. A população ainda não conseguiu entender que ela não estará devidamente protegida sem a segunda dose. Então temos uma grande quantidade de primeiras doses aplicadas e uma baixa cobertura para a segunda dose. Precisaríamos ter um grande programa publicitário para que pudesse chamar essa população, mostrar para ela que, apenas com a primeira dose, não estará protegida e, principalmente, relembrando quando, como e onde ela deverá tomar a vacina.
Nessa visão, a questão de o presidente Jair Bolsonaro ter lançado dúvidas sobre as vacinas e a falta de campanhas de publicidade por parte do Ministério da Saúde atrapalharam essa conscientização da população?
Não tenho a menor dúvida disso. Acho que a gente precisa que todos os líderes formadores de opinião falem da importância da vacina, falem que a população deve procurar a vacinação. Quando o líder da nação começa a colocar em dúvida que as vacinas são eficazes e ainda chama os imunizantes de "experimentais"... Como se nós tivéssemos condições neste momento de escolher a vacina. A melhor vacina é aquela que chegar mais rápido no braço do cidadão. Quando ele coloca essas questões faz com que a própria população fique hesitante e ela mesma se ache no direito de escolher qual é a vacina que ela deve tomar.
Quais as especificidades da vacinação contra a covid em relação a outras campanhas?
Sim. Em todas as demais campanhas tínhamos um Ministério da Saúde conduzindo o Plano Nacional de Imunização, definindo a estratégia de vacinação. O que vimos dessa vez? Cada estado fazendo a sua política, a sua definição. Têm estados que já estão vacinando a população de 18 anos, outros de 40 anos. Há um desequilíbrio nesse processo de vacinação, isso confunde a população e faz com que ela muitas vezes saia do seu município para ser vacinada em outro município, porque quer ser logo vacinada e isso desestrutura todo o processo.
O ideal é que a pessoa seja vacinada no local onde ela reside, porque, dessa forma, conseguimos medir a efetividade da vacina em cada local. Se há essa desorganização, fica muito complexo esse processo de avaliação. Nunca vimos acontecer dessa forma, com essa briga ou disputa política. Parece que estamos vivendo uma maratona: cada estado querendo chegar na frente do outro para dizer que vacina melhor. Mas nem sempre quem está chegando primeiro é o que está vacinando melhor, porque pode estar, por muitas vezes, deixando milhares para trás das outras faixas etárias. O Brasil precisa sincronizar as faixas etárias e, principalmente, com a mesma cobertura vacinal - tanto para a primeira quanto para a segunda dose.
O Brasil sempre foi referência em vacinação. A que se deve isso?
O Programa Nacional de Imunização ser considerado uma política de estado e não de governo. Então, independentemente de qual partido político, de qual presidente que estava à frente do país, as ações de imunização sempre foram colocadas como uma ação prioritária. O programa cresceu muito, hoje há 15 vacinas para as crianças, oito para os adolescentes e cinco para os adultos. Compra-se mais de 300 milhões de doses por ano, há 38 mil salas de vacinas. Então essa estrutura cresceu e, principalmente, com a população entendendo a importância da vacinação e comparecendo aos chamados do Ministério da Saúde. Essa estrutura que foi organizada e a consciência da população fez com que esse programa se tornasse uma referência. Pesquisas mostram que mais de 94% da população quer ser vacinada.
Do ponto de vista logístico, houve algo nesta atual campanha que justificasse o fato de o Brasil ter ficado atrás de outros países no ritmo de vacinação?
A gente tá vendo que o Brasil tem capacidade de vacinar mais de dois milhões de pessoas por dia sem nenhum esforço. Então, se nós tivéssemos vacinas em quantidade suficiente no início da campanha, possivelmente a gente já estaria entre os primeiros países do mundo.
Se não fosse o PNI, acredita que a taxa de imunização estaria menor?
Sem o PNI, sem o SUS, nós não teríamos essa estrutura e essa capacidade de vacinação. É graças a isso, essa estrutura do PNI e principalmente essa capilaridade do SUS, é que faz com que a população brasileira receba a vacina seja ela morando em regiões de difícil acesso, seja ela morando em cidades com alta densidade populacional. Então é essa estrutura do SUS e a política de vacinação do país é que garante a vacinação de todos.