Premiê hindu, prefeito muçulmano e rei cristão, mas britânicos não têm um Estado laico
Por lei, religião anglicana é lei secular no Reino Unido. Na prática, essa tradição já foi varrida pra debaixo do tapete
Além de ser o mais novo primeiro-ministro britânico da era moderna, aos 42 anos, Rishi Sunak é também o primeiro não branco e não cristão. O premiê do Partido Conservador é hindu, fé que herdou dos pais de origem indiana, que moravam na África antes de se mudarem para a Inglaterra.
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O prefeito de Londres, Sadiq Khan, do Partido Trabalhista, já tinha sido o primeiro muçulmano a assumir a administração da capital britânica. Na terra onde o Rei é cristão e tem o título de "Defensor da Fé e Governador Supremo da Igreja Anglicana da Inglaterra" - uma espécie de papa - o cenário parece um exemplo perfeito de multiculturalismo e daquilo que chamamos de Estado Laico, conceito que sela a separação de religião e governo.
Não é exatamente assim. Num passado recente do país que já teve três premiês este ano, Boris Johnson deixou de ter o poder de aconselhar a Rainha sobre a escolha de bispos para a Igreja da Inglaterra pelo fato de ter sido batizado católico. A lei é de 1829 e vai valer também para Rishi Sunak. Antes, o Trabalhista Tony Blair assumiu oficialmente seu catolicismo apenas depois de deixar o governo.
Qual a importância disso para o governo e para a população? Nenhuma. Aconselhar o monarca sobre bispos está no fim da lista de prioridades dos primeiros-ministros britânicos. O processo é geralmente tocado pela própria Igreja e apenas formalizado pelo governo e pela monarquia.
A existência de uma lei tão atinga e arcaica é uma contradição, mas não é determinante para uma sociedade onde mais de 70% das pessoas acham que não há importância nenhuma no fato de um primeiro-ministro ou primeira-ministra praticar ou não a fé cristã.
A pesquisa foi realizada em julho pela Deltapoll para a Sociedade Secular Nacional do Reino Unido, que agora pressiona o governo para que a separação entre Estado e Religião seja formalizada. Vai fazer sentido pra 55% dos britânicos que se declaram sem religião e mesmo pra boa parte dos 34% que são cristãos, segundo levantamento feito em dezembro de 2020 pelo Instituto Yougov.
Ironicamente, este é um passo que o Brasil já tomou. Nossa laicidade vem da constituição de 1891 e foi consagrada pela constituição de 1988, ainda que "com as bênçãos de Deus".
Não há ironia mais profunda, no entanto, que o fato do nosso Estado Laico só valer no papel. Pastores que ameaçam seu rebanho e políticos que abusam da fé das pessoas são comportamentos fortemente rejeitados na terra do Rei cristão. Não há discussão sobre religião. Não há pressão do público. Religião não é um fator determinante no jogo político.
"Ah, mas a Irlanda do Norte?". Esqueça essa história de católicos x protestantes. A questão ali é aqueles que se identificam como irlandeses contra aqueles que se identificam como britânicos. Religião é só um pano de fundo, cada vez menos importante.
"Ah, mas e os casos de xenofobia e racismo religioso?". Sim, eles existem. Mas quando emergem, vitimando principalmente as minorias muçulmana e judaica, há uma ampla rede de condenação de todo o espectro político e da sociedade civil. A reação é bem diferente, por exemplo, daquela que se tem no Brasil quando os ataques são proferidos contra templos e praticantes de religiões de matriz africana.
O Brasil laico é um exemplo do que não se deve fazer com um conceito tão fundamental em sociedades modernas. O Brasil laico é pra inglês ver e não entender. Não que o caso deles também não seja um pouco confuso.
O Reino Unido onde religião é lei talvez seja o exemplo, ainda que contraditório, de que a fé - existente ou não - é uma decisão de cada um de nós. Sem alardes, o Reino varre suas contradições seculares pra debaixo do tapete e olha pra frente, enquanto nossa República Federativa despreza sua própria lei pra andar umas casinhas pra trás no tabuleiro da civilidade.
Se na terra não laica do Rei, Deus não é mais assunto no chá das cinco, o Brasil laico dá uma canseira infernal nos céus com tanta criatividade dos pseudo representantes do todo poderoso.