O golpe na Lei das Estatais: porteira aberta para a avalanche da corrupção
Se o Senado não reverter o cenário, ficaremos cada vez mais desacreditados, e distantes do "clube dos ricos"
Quais os requisitos básicos para o exercício de cargos de gestão em empresas? A resposta gira em torno de um tripé formado pela capacitação técnica e experiência na área de atuação, pela idoneidade e pela inexistência de interesses conflitantes com o objeto social. Tais exigências, indispensáveis à sobrevivência de entes privados, deveriam ser muito mais rigorosas no âmbito de sociedades cuja fração majoritária do capital provenha de recursos públicos.
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No entanto, o fisiologismo transformou muitas estatais em "cabides de emprego", sobretudo em níveis hierárquicos superiores, aos quais não se costuma aceder mediante concurso público, e sim por indicações políticas. Ao longo de décadas, os icônicos "afilhados de generais" em nossas BRÁS cederam espaço aos familiares e amigos de políticos, que, além dos salários poupudos em empregos estáveis, também passaram a participar das propinas pagas por contratantes privados às siglas partidárias. O exemplo recente mais contundente de corrupção grossa por meio da distribuição de cargos em estatais à luz de critérios politiqueiros talvez tenha sido o Petrolão, cuja protagonista Petrobras, segundo provas colhidas durante a Operação Lava-Jato e investigações correlatas, vivenciou um loteamento de diretorias, tendo sido cada uma destas entregues a um partido. Como narrado por Paulo Roberto Costa, ex-diretor da companhia, "sempre soube que não se chegava à diretoria da Petrobrás sem acordo político."
Tão estarrecedores foram os dados - e as cifras! - revelados em planilhas, trocas de mensagens, e depoimentos, que o Congresso teve de dar uma satisfação às vozes das ruas. E a resposta chegou com a aprovação da Lei das Estatais (Lei no 13.303/2016), que introduziu alterações relevantes, tais como a maior rigidez nos parâmetros de indicação de dirigentes. Nesse particular, uma das principais novidades foi a proibição de nomeação, para cargos de direção, de profissionais que, nos últimos 36 meses, tivessem atuado como agentes da estrutura deliberativa de partidos, ou na realização de campanhas eleitorais. Tratava-se de medida destinada a evitar pressões políticas sobre processos de tomada de decisões em estatais.
Ainda à sombra dos "propinodutos" descortinados na década passada, outra inovação residiu na limitação de despesas com publicidade, em até 0,5% sobre a receita das empresas, passível de chegar a 2% mediante proposta aprovada pelo Conselho de Administração. Ora, pelo menos desde o início do milênio, não foram poucos os contratos publicitários "de fachada" com órgãos públicos, usados para irrigar os cofres de políticos corruptos.
Contudo, o marco legal acima, reação positiva no combate aos malfeitos ao erário, não tardou a gerar uma contrarreação de parcela significativa da classe política. Tanto assim que a Câmara acaba de aprovar, por ampla maioria, uma revisão na referida lei, para reduzir de 36 meses para 30 dias a quarentena para nomeações à presidência e diretoria de estatais, e para elevar para 2% o teto com despesas de marketing.
Sob a alegação de um suposto prejuízo acarretado pela quarentena mais extensa a dirigentes de partidos menores, nossos deputados permitiram que figuras pertencentes ao universo eleitoral, e desprovidas de reconhecimento em áreas técnicas, venham a fazer alguns saltos ornamentais do mundo das siglas ao da administração de empresas, ainda com o cheiro, os cacoetes e a linguagem da política entranhados na medula. Quanto ao novo limite para despesas publicitárias, independentemente de consulta aos órgãos deliberativos das companhias, nem é necessário frisar que a norma estimulará a gastança desenfreada e os tradicionais conchavos.
Mais grave que o teor da revisão em si, foi o modo como as medidas foram deliberadas, em votação-relâmpago, sorrateira, sem a devida submissão ao crivo das comissões e, muito menos, a um debate amplo com a sociedade civil. Igualmente notável foi a reunião de forças políticas ditas contrárias, da esquerda à direita, em torno de um projeto açodado, cuja aprovação contou com a anuência maciça da base de apoio ao presidente em vias de se retirar, inclusive com o voto favorável de seu filho. Indicativo perverso de que, entre nós, os rótulos ideológicos costumam ser cosméticos, invólucros ordinários de atores unidos, em essência, ao redor de um fisiologismo tóxico.
Enquanto uma medida efetiva na pauta anticorrupção, como, por exemplo, a PEC do fim do foro privilegiado jaz há mais de 1000 dias, nossos deputados optam por atropelar os ritos para aprovar inovações sinalizadoras de que pretendemos seguir complacentes com a corrupção. Logo no presente momento, em que postulamos nosso ingresso na OCDE, não poderia haver escolha política mais desastrosa. Se o Senado não reverter o cenário, ficaremos cada vez mais desacreditados, e distantes do "clube dos ricos". Espero que prevaleça algum laivo de sensatez e patriotismo verdadeiro.
*Corrupção em Debate é uma coluna do Instituto Não Aceito Corrupção (INAC).