Medo vira parte da realidade de crianças na pandemia de covid-19
Especialistas tentam entender impacto do isolamento, mas avaliam que ainda é difícil apontar efeitos a longo prazo
Ao longo do pouco mais de um ano praticando distaciamento social, em função da pandemia da covid-19, crianças e adolescentes tiveram suas rotinas drasticamente alteradas. Embora os efeitos a longo prazo ainda precisem ser apurados, é certo que, longe da escola, amigos e do mundo externo, as habilidades sociais foram severamente impactadas.
Em crianças mais novas, a independência dos pais e o convívio com outros pequenos são aspectos que fazem falta. Tamyrys Melo é professora de balé, tem um filho de quase 3 anos e sentiu a necessidade de retornar ao modo presencial de aulas.
"Ele não sabia conviver com outras crianças, não sabia dividir, estava o tempo todo agitado. Estávamos sempre conversando com ele, mas percebíamos que ele sentia falta de falar, de brincar com outras crianças. Ele falava que queria sair, brincar com os colegas, que queria ir pra escola. O retorno foi um desafio, porque ele sentia falta da minha presença", diz.
Tamyrys destaca que, com boa parte da vida vivida em situação de pandemia, o atual conexto padêmico é a realidade entendida pelo filho. "Ele fala e entende que tem que usar máscara, que tem que lavar as mãos o tempo todo, que ao chegar na escola precisa higienizar o sapato, as mãos, passar álcool gel, caso esteja na rua. Pede pela máscara dele, me lembra da minha", pontua.
Presidente do Departamento Científico de Neurologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Magda Lahorgue explica que os efeitos variam de acordo com a idade da criança: "Certamente quem foi mais afetado pelas aulas on-line são crianças nas séries iniciais, como aquelas em alfabetização. Considerando nosso país, com ampla desigualdade social, a possibilidade de acesso ao ensino on-line também ficou bastante complicada".
Memória e medo
Viviane Salvador, técnica de efermagem, tem dois filhos em idade escolar -- 4 e 9 anos -- e percebeu uma queda significativa no rendimento e no interesse escolar, bem como um aumento no acesso ao celular e à televisão.
"Eles começaram a ficar ansiosos, desenvolveram alguns medos que antes não tinham, como monstros, medo de que eu morresse de covid-19. Mesmo tendo área para brincar no condomínio, ela fechou por conta da pandemia. Então a única opção é assistir TV e ficar no celular", descreve.
Maria Lidia Fernandes, professora e pesquisadora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), tem estudado como vivem crianças e jovens em tempos de isolamento e distanciamento social. A docente observou que as crianças participantes do levantamento criaram memórias negativas, mas também positivas durante o período.
"As memórias são individuais e coletivas, e as crianças da minha pesquisa apontam como está sendo prazeroso o convívio com os pais, as experiências que estão tendo agora, como cozinhar com a mãe, ajudar em atividades domésticas, então muitas estão criando boas memórias. Por outro lado, relatam a saudade dos amigos, das brincadeiras na escola, de vivências específicas da socializaçao escolar", indica.
Ela averigou ainda que o período tem suscitado novos medos e questões: "A pesquisa mostra um sentimento de sobrecarga e responsabilização para desenvolvimento de algumas atividades que extrapolavam sua capacidade sem a presença do professor. Houve, também, muitos relatos sobre morte, perda de entes queridos, de pessoas mais velhas, como avós, além de medo de os pais perderem o emprego".
Para Magda Lahorgue, ainda é difícil entender por completo o que a pandemia causou nas crianças e adolescentes. "Não há como prever, a longo prazo, os efeitos da pandemia e do isolamento social, com privações diversas, mas teremos que acompanhar essas crianças. Principalmente aquelas com menos de 3 anos ou que nasceram durante a pandemia, e também as que já estavam em idade de escolarização e que tiveram suas rotinas totalmente interrompidas", conclui.